Entre Salas e Celas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao brincar literariamente com os esteriótipos, criando personagens que parecem criminosos e não são e/ou que não aparentam ser criminosos e são, Marcelo Semer obriga o leitor a refletir sobre o cotidiano brasileiro.

Entre Salas e Celas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O livro de contos de Marcelo Semer é aparentemente inexpressivo. Entretanto, se prestarmos atenção à estrutura dos textos literários produzidos pelo juiz relacionando-os com a realidade percebemos como e porque “Entre Salas e Celas” tem uma importância humana que transcende a literatura.

Para explicar o que foi dito acima farei uma brincadeira. Abaixo transcrevo alguns fragmentos do livro comentado e do cotidiano brasileiro. Alguns leitores serão capazes de distinguir a realidade da ficção, mas a maioria certamente não será capaz de fazer isso.

1- “… não tinha, sobretudo, cara de quem fosse responsável por aquela quantidade de drogas.”

2- “…enquanto ela chorava e a promotora e a defensora se entreolhavam, duvidando que aquela mulher frágil fosse responsável pela droga apreendida, as peças do quebra-cabeça iam lentamente se formando.”

3- “Foi cordial e cerimonioso. Tão sóbrio e adequado, que eu demorei a perceber que ele era o próprio réu.”

4- “O réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido.”

5- “Deixou-me sozinho com o preso na sala.

Grudei as costas na cadeira e fiquei pensando o que poderia acontecer se aquele réu resolvesse fugir também ou quem sabe me agredir.”

6- “… focando em abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência daquela localidade.”

7- “Lá se vão mais de vinte anos, mas a lembrança do apuro permaneceu. O bom é que isso hoje me ajuda a perguntar primeiro antes de suspeitar; e suspeitar primeiro antes de ter certeza.”

8- “Dois policiais civis de Minas viram os homens, que estavam à paisana, armados e iniciaram a abordagem a eles. Um policial paulista viu a cena e atirou contra os policiais mineiros, iniciando a troca de tiros.”

Todos os fragmentos acima tratam basicamente do mesmo tema: os esteriótipos que supostamente ajudam as autoridades a distinguir os criminosos das pessoas inocentes. Alguns deles foram extraídos do livro Entre Salas e Celas, outros não.

O item 4 se refere a sentença proferida por uma juíza. O item 6 é a reprodução parcial de uma ordem de serviço absurda proferida por um oficial da PM. O item 8 foi copiado da notícia de um fato que ocorreu em outubro de 2018.

A matéria-prima da obra de Marcelo Semer é a ficção. A matéria prima do Direito Penal é a realidade. Mas por vezes as duas coisas ficam misturadas. Assim como a ficção consegue se infiltrar no real para influenciar o julgamento de uma juíza e a atividade de vários policiais, a realidade penetra fundo na ficção quando o narrador de um dos contos (que pode ser o próprio escritor ou um personagem que ele criou) diz que aprendeu “a perguntar primeiro antes de suspeitar; e suspeitar primeiro antes de ter certeza.”

O Direito Penal deveria produzir certeza, mas ele também produz algo muito diferente (uma ficção que se torna realidade e até tragédia). A responsabilidade por essa distorção não pode ser atribuída apenas aos operadores do Direito e aos policiais. Eles são atores e vítimas de uma perversão socialmente construída pela imprensa.

“A imagem do crime e, principalmente do criminoso, são imprescindíveis para a produção do alarme social e do medo da criminalidade. Nesse contexto, o ‘esteriótipo do criminoso’ assume papel relevante, pois será elaborado com base no perfil dos ‘cidadãos de segunda classe’, indivíduos economicamente supérfluos, habitantes das zonas selvagens de sociedades marcadas pela segregação.

Quando identificados pelos meios de comunicação, esses ‘bodes expiatórios’ são desumanizados. Somos levados então a ‘desprezar, estigmatizar, discriminar os pobres, como se essas pessoas não fossem gente’ (COIMBRA, 2001, p. 62).

Esse processo de ‘nadificação do outro’ encontra amplo respaldo na sociedade atual, entre outros motivos, pela ausência de solidariedade, fruto da radicalização do individualismo e parte integrante da estratégia neoliberal de canaliza o medo contra um amplo contingente da população em detrimento de apresentar as verdadeiras causas da insegurança.

Ao propagar o medo do criminoso – identificado neste caso segmentos pauperizados – os mass media aprofundam as desigualdades e a exclusão, reforçando, por conseguinte, a intolerância e o preconceito.” (Criminologia Midiática, Raphael Boldt, editora Juruá, Curitiba, 2013, p. 97/98)

Ao brincar literariamente com os esteriótipos, criando personagens que parecem criminosos e não são e/ou que não aparentam ser criminosos e são, Marcelo Semer obriga o leitor a refletir sobre o cotidiano brasileiro. Os ‘bodes expiatórios’ desumanizados, desprezados, estigmatizados pela imprensa ajudam a definir um perfil social do criminoso. Depois, qualquer pessoa pode ser encaixada nele à qualquer momento.

Há alguns dias “a professora Camila Marques foi detida na escola em que leciona, o campus de Águas Lindas do Instituto Federal de Goiás, por gravar um vídeo de seus alunos sendo presos pela polícia”. Gravar vídeos não é crime capitulado no Código Penal. Se fosse, os fabricantes de câmeras de vídeo e de celulares com este recurso já teriam sido presos junto com os donos das lojas que vendem estes equipamentos.

Um vídeo não é capaz de desfazer o esteriótipo do criminoso criado pelos mass media. Mas ele tem o poder de destruir o esteriótipo que a sociedade faz da Polícia. Além disso, ele é um documento que pode e deve ser considerado prova do abuso que foi eventualmente cometido durante a abordagem de um cidadão inocente que deveria ter sido considerado presumivelmente inocente como prescreve a CF/88.

As vezes a única coisa relevante para o Direito Penal durante uma abordagem policial é o crime que foi cometido pelo agente do Estado. Durante sua jornada de trabalho, ele não deveria apenas e tão somente encaixar as pessoas no perfil de criminoso que foi obrigado a interiorizar em razão do condicionamento imposto por seus superiores e pela imprensa. Marcelo Semer utiliza a ficção para reintroduzir a realidade no real e para recolocar o Direito Penal no seu devido lugar. O livro dele é precioso e poderia muito bem se tornar leitura obrigatória nas academias de polícia.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador