Folha, cadê o Guedes?
por Gilberto Maringoni
A Folha de S. Paulo aproveitou a semana entre Natal e Ano Novo para concretizar uma pauta interessante. Convidou os ministros da Fazenda da década que terminou dia 31 para fazerem um balanço do país. Escreveram Guido Mantega (2006-14), Joaquim Levy (2015), Nelson Barbosa (2015-16), Henrique Meirelles (2016-18) e Eduardo Guardia (2018). De saída, dois marcos saltam à vista.
O PRIMEIRO é ausência de Paulo Guedes, justamente o ministro atual, que conduz a economia em meio à crise da pandemia. É como se além de 2020, o ano sem fim, também tivéssemos a década inconclusa.
O SEGUNDO é que, à exceção de Guardia, todos têm ou tiveram participação direta nos governos do PT e de seus aliados e ajudaram a desenhar a orientação econômica do partido que mais tempo permaneceu continuadamente no governo federal em períodos democráticos. Esse atributo em comum realça o ziguezague praticado na condução da economia.
Mantega e Barbosa têm trajetórias ligadas à academia e ao setor público, enquanto os demais fizeram carreira no mercado financeiro. Mantega também difere dos demais por sua coerente visão desenvolvimentista. Barbosa transita entre o desenvolvimentismo e uma forte visão fiscalista e Meirelles, Levy e Guardia são abertamente neoliberais.
SEM PROJETO CLARO
O ziguezague petista é conhecido. Foi contracionista nos anos Palocci (2003-06), buscou um semidesenvolvimentismo no segundo governo Lula (política fiscal expansiva e política monetária contracionista), mesclou “equilíbrio” com medidas de incentivo focadas entre 2011-14 e aplicou o “maior ajuste fiscal de nossa História”, nas palavras da presidenta Dilma, entre 2015-16.
Os artigos, de certa maneira, expressam tal percurso. Assim, Mantega não faz rodeios sobre seu descontentamento. Produz um texto no qual exalta sua gestão – “O Brasil começou a década perdida com expansão razoável de 3% ao ano e chegou a 2014 com a economia desacelerada, mas com uma dívida líquida baixa (36,7% do PIB) e com abundantes reservas financeiras (US$ 376 bilhões)” – e deplora o que veio em seguida. “Logo depois da reeleição de Dilma Rousseff o país mergulhou numa forte crise política que deixou o governo acuado. (…) Essa crise foi amplificada pelo abandono da estratégia desenvolvimentista praticada até 2014. Com a nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda em 2015 foi inaugurada uma nova fase neoliberal que vigora até hoje”.
Mantega não poupa alfinetadas. “O crescimento da desigualdade social e da concentração de riqueza alimentou fortes conflitos, que desembocaram em mobilizações sociais e geraram uma onda populista de extrema direita (…). Foi assim que surgiram Donald Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no Brasil”.
A CULPA É DO PT
Joaquim Levy pega o bastão e não passa recibo. A culpa da crise foi do antecessor e do próprio PT. “[Em 2015], o Brasil também enfrentou um ambiente externo hostil, com piora dos termos de troca das exportações, inclusive do petróleo, e súbita apreciação do dólar, apertando as condições financeiras da economia. Nesse ambiente adverso, foi preciso enfrentar ainda as consequências de meia década de excesso de despesas públicas, inclusive pelo inchamento dos bancos estatais”.
O raciocínio é ambíguo. Havia contração externa, mas o problema foi a expansão interna. “A necessidade de reorientar a economia brasileira depois dos anos de largueza culminados em 2014 surpreendeu grande parte da população. Para ela, outro Brasil, maravilhoso, havia sido apresentado na campanha eleitoral. A realidade nessas circunstâncias é mais amarga”.
Ou seja, diante da crise externa, a saída foi esquecer as promessas de campanha e cortar gastos, quando na crise o mais indicado é fazer o contrário. Em uma palavra, cometer o tão falado estelionato eleitoral. E aqui sobra mais para o PT e para Eduardo Cunha: “A fadiga com o partido do governo e seus equívocos foi exacerbada pela atitude do então presidente da Câmara de Deputados, cuja sequência de pautas bomba levou à piora da nota da dívida pública e forte queda do investimento, com prolongado impacto no emprego”.
Levy não diz, mas todas as chamadas pautas-bomba eram expansivas e contracíclicas, ou seja, expandiam gastos ao invés de contraí-los. O ex-ministro não titubeia e mostra que a meta principal, a reforma da Previdência que seria aprovada no governo Bolsonaro, começa realmente em sua gestão.
DIANTE DA CRISE, CORTAR E CORTAR
Nelson Barbosa, que dirigiu a pasta por poucos meses, concorda com Levy e assegura que “Em contraste com as ambições brasileiras, o cenário internacional começou a piorar em 2011, devido a turbulências nos Estados Unidos (Obama versus republicanos), Europa (as ‘tragédias gregas’) e China (desaceleração de crescimento). Ainda assim o governo brasileiro tentou manter o ritmo anterior de expansão”. E avança em direção a 2014-16. “A situação internacional piorou ainda mais e contribuiu para 40% da grande recessão daquele período. Os outros 60% foram internos, resultado de erros de política econômica e conflitos políticos”.
O que nenhum dos dois explica são os motivos de, diante da contração externa, o governo puxar o freio de mão em gastos e investimentos e, com isso, trabalhar de fato para aprofundar a crise. Sim, houve a Lava Jato, a mídia, a campanha do ódio etc. Mas não se toca no essencial: diante disso, qual deveria ser a estratégia de quem tinha a caneta na mão?
CHAMA O MEIRELLES
Meirelles claramente tira o corpo fora de tudo. Para ele, não existiu boom das commodities e nem uma política de investimento razoavelmente eficiente na segunda gestão Lula, ações que independiam de sua vontade. “Em janeiro de 2011, quando terminei meus oito anos de trabalho como presidente do Banco Central, o Brasil crescia a uma taxa superior a 7% ao ano, tendo superado a crise financeira de 2008”. Um Midas injustiçado, certamente.
Diante da crise, sublinha “Nossa principal medida foi a aprovação da emenda constitucional que instituiu o teto de gastos no final de 2016. (…) Ao fixar na Constituição o compromisso de que o governo não pode elevar seus gastos além de sua capacidade – preservando investimentos em saúde e educação -, o teto trouxe de volta a confiança no país”.
Faltou dizer: junto, trouxe de volta a miséria, a fome, ampliou a desigualdade e aprofundou o sucateamento dos serviços públicos. Mas Meirelles é coerente com sua visão estratégica. “É preciso fazer reformas duras, como estamos fazendo no estado de São Paulo, para reduzir o peso da máquina pública, o custo dos juros e abrir espaço para expansão do gasto social”.
Por fim, Eduardo Guardia foi um ministro apagado, que segurou o bastão por cinco meses, no interregno entre a desincompatibilização de Meirelles para se candidatar à presidência da República e a posse de Jair Bolsonaro.
O que Guardia faz é repetir mantras liberais aconjunturais e apátridas. “A política econômica do Governo Dilma, com a exceção do ano de 2015, acentuou os desequilíbrios de nossa economia. A injustificável deterioração fiscal foi acompanhada pela elevação da inflação, do desemprego e da taxa de juros”.
FARSA, FACA E FÉ
A série é inconclusa. Repita-se, Paulo Guedes não comparece, sabe-se lá por qual motivo. Possivelmente o brucutu financista teria escrito que Levy, Meirelles e Guardia estavam certos, mas eram gradualistas, cabendo a ele fazer o serviço completo e acelerado. São meras suposições.
Guedes na verdade não faz falta diante dos editoriais da própria Folha. Dia após dia, o diário que se tornou uma espécie de sucursal do Insper, no dizer de Luís Nassif, brande regras de austeridade, cortes e contrações inescapáveis. No 5 de janeiro, por exemplo, a nota principal dos Frias candidamente alardeia que o “Este ano se inicia com a mais dura missão de ajuste fiscal desde que o Plano Real, de 1994, pôs fim ao descontrole inflacionário e permitiu o cotejo de receitas e gastos governamentais”.
Sim, diante da hecatombe, a Folha quer mais sacrifícios. Nessa toada, a economia parece ser regida por seitas obscuras que estão sempre a exigir sacrifícios e dores indizíveis para compensar pecados e prazeres anteriores.
Curioso é que os que clamam por mais sacrifícios sejam sempre os que menos se submetem a eles. Luís Frias – que busca entrar no clube da alta finança – e Paulo Guedes parecem irmanados em uma única e tediosa diretriz: farsa, faca e fé.
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Que tal, Maringoni, pensar em algo mais concreto. O mundo em que vivemos tem condições concretas de todo mundo comer, tomar banho, morar numa casa, ter escolas, mas a maioria foi expropriada de tudo aquilo que significa civilização. Não é porque exista escassez do que quer que seja, mas sim escassez produzida para continuarmos produzindo pobres, isto num momento em que o capital desertou de sua função produtiva e virou dinheiro podre. O rentismo se encontra, no momento, realizando plenamente sua sanha, concretizada numa pilhagem de grande parte da população, mas sobretudo, daqueles que vivem do seu trabalho. Guedes é a mão bem visível dessa tarefa suja, abjeta. Maringoni, a disjuntiva Socialismo ou Barbárie, tem como solução uma revolução que ponha nas mãos do povo todo esse imenso potencial de forças produtivas preso nos grilhões de uma forma social incapaz de sobreviver à sua plena utilização.