Fomos contaminados!, por Ana Laura Prates

Fomos contaminados!

por Ana Laura Prates

            Fomos contaminados e contraímos COVID-19. Meus jovens filhos e eu. Apesar de nossa rigorosa quarentena, de nossa decisão racional e nossos esforços afetivos e efetivos para nos isolarmos de amigos e familiares queridos, apesar de nossa mudança radical de rotina, do cansaço extraordinário por acumular trabalho e estudo com os cuidados domésticos. Apesar de tudo, fomos contaminados. Como Psicanalista, por formação, experiência e profissão, sei que não há garantia, que não há totalidade, e que o furo faz parte da estrutura que nos constitui enquanto seres falantes. O furo se apresenta nas mais variadas formas, quase sempre invisível, porque é uma sua característica de furo não ter imagem própria. A forma, justamente, serve para camuflá-lo e fazê-lo passar despercebido e sorrateiro. Fora do nosso controle e de nosso campo de visão. Tentamos abordá-lo pela linguagem, e realmente aposto que essa é a melhor e mais frutífera via de fazê-lo, porque a linguagem é o que nos humaniza e através dela nos tornamos sujeitos desejantes. Aliás, dedico a ela minha vida! Mas – e esse talvez seja o aspecto mais preocupante da distopia em que estamos vivendo – a palavra vem sendo cada vez mais desgastada, agredida e desvalorizada. O que se fala não mais se escreve – como diziam os antigos – e quando isso acontece, realmente estamos em grande perigo, pois é o próprio laço social que é atingido.

            No começo da Pandemia, escrevi alguns artigos para essa coluna do Jornal GGN enfatizando que só seria possível abordar a Pandemia pela lógica do coletivo. Escrevi sobre minha preocupação com o que chamei de “vírus do individualismo”, escrevi sobre a ausência de uma pretensa identificação com o outro que pudesse nos dar um “senso comum”, escrevi sobre o descaso com a morte e com os rituais fúnebres que nos humanizam, e sobre o desprezo à memória e aos mais velhos, guardiães do que se transmite entre gerações. Oxalá não tenha sido em vão, mas agora já escrevo de outro lugar.

            Fomos contaminados. Meus jovens filhos e eu. O vírus furou nosso sistema de proteção, a palavra vacilou e contraímos COVID-19. Nossos corpos viraram um perigo para o outro, a partir do momento em que fomos informados de que uma pessoa com quem excepcionalmente tivéramos contato testara positivo. Digo isso porque não é possível confiar totalmente nos testes. Eu mesma só positivei na segunda testagem, meu filho na terceira e minha filha, após três PCRs negativos está com sorologia reagente. Cada um de nós apresentou sintomas, os mais variados: gastrointestinais, conjuntivite, dor nos olhos, cansaço, fadiga, febre, mesmo enquanto ainda testávamos negativo. O furo no PCR tem sido atestado por inúmeras pesquisas mundo afora, embora ainda seja usado como passaporte para aglomerações e livre circulação. Meu filho e eu evoluímos para lesões no pulmão, que só foram diagnosticadas através de tomografias, já que, felizmente, nossa saturação de oxigênio não chegou a cair abaixo de limites aceitáveis. Fizemos as tomografias a tempo de tratar as lesões antes de precisarmos de oxigênio, graças à leitura clínica precisa feita por nossos médicos. Posso testemunhar que nunca me senti tão doente em toda a minha vida, mesmo apresentando um quadro moderado.

            Fomos contaminados, e vivemos a COVID-19 com a condição genética de cada um de nós, nossas fragilidades e forças imunológicas, os medos e angústias humanos diante da ameaça da doença e da morte. Mas a vivemos também em condições absolutamente privilegiadas. Privilégio de classe social, de território, de raça e de acessibilidade às informações científicas disponíveis e aos tratamentos para as consequências da doença. Mesmo com um bom plano de saúde, muitos exames fundamentais não foram autorizados e precisaram ser pagos em separado, mostrando mais uma vez o quão lamentável e perversa é a privatização da saúde. Os diversos médicos que consultamos, na medida em que os sintomas iam aparecendo em cada um de nós, foram aqueles de nossa confiança, alguns deles já nos acompanhando durante toda a vida. Faço questão de nomear aqui, agradecendo a atenção, competência e dedicação, em ordem alfabética: Ana Claudia Brandão (pediatra), Cyrillo Cavalheiro (hematologista), Jaime Roizemblatt (oftalmologista), Jorge Afiune (pneumologista), Lucia Passarelli (cardiologista), Maria Cecília Bortoletto (dermatologista) e Priscila Serrano (geriatra e clínica médica). Não houve um dia sequer, durante as semanas da evolução da doença, em que não pensei que, não fossem nossos privilégios a situação poderia ter se tornado ainda mais delicada, e potencialmente grave. Quantas mães e filhos não terão morrido desde o início da Pandemia no Brasil por falta de um gerenciamento sanitário adequado por parte no Ministério da Saúde, por falta de uma política pública eficaz de rastreamento, diagnóstico e tratamento, pelo deliberado sucateamento do SUS, pela propagação de falsos “tratamentos precoces”, pelo fato da população ter sido deixada sem assistência, sem informações, sem testes, sem acompanhamento e orientação, e agora, sem vacina. As condutas cruciais para diminuir a chance de internações, como tomografia e testagem de coagulação não estão acessíveis à maior parte da população, que chega aos hospitais quando a famosa “tempestade de citocina” já está fazendo estragos enormes e os custos econômicos e, sobretudo, humanos passam a ser escandalosamente altos.

            Fomos contaminados, e vivemos a COVID-19 também com nossas vulnerabilidades. Uma mãe de família acometida por uma doença sobre a qual pouco ainda se sabe, cuidando de um jovem com Síndrome de Down igualmente adoecido, com todas as incertezas e temores sobre como seria a evolução em um corpo mais frágil do ponto de vista imunológico. Uma jovem com sintomas mais leves, precisando assumir os cuidados da casa em um contexto incerto e instável. É interessante observar como, diante das fragilidades muitos de nós respondemos nos ancorando em um suposto saber revestido de certezas, comandos e censuras para aplacar nossas angústias: tome o remédio X, meu médico receitou Z, todo mundo está tomando o coquetel H, na Europa o protocolo é W, se testou negativo é porque não tem, não devem sair de casa para fazer exames para não contaminar ninguém, use já o remédio experimental Y, atenção às sequelas cognitivas, etc. Curiosamente, ao contrário dos leigos, o que mais escutei dos meus médicos foi: não sei, vamos pensar, pergunta para o Dr. A o que ele acha, li alguns artigos e mudei de ideia, conversa antes com a Dra. B, pela minha experiência, há controvérsias a respeito, é tudo ainda experimental, se sabe muito pouco sobre o sistema imunológico humano, os testes não são totalmente seguros… Aprendi que os que suportam o não saber são principalmente aqueles que aquecem nossos corações com palavras amorosas de apoio, ofertas de ajuda, rezas das mais variadas crenças sem se importar com a falta de crença do alvo, canja quente ou chocolate na porta de casa, um vaso de plantas protetoras ou de flor, uma vela amarela sempre acesa.  Gestos incomensuráveis de amor e carinho.

            Vivemos a COVID-19 e, pela primeira vez, entendi na pele os ensinamentos de Georges Canguilhem, grande intelectual francês, em seu extraordinário livro “O Normal e o Patológico”.  Ele parte da pergunta sobre como a norma biológica incidiria nos seres humanos, já que na natureza a existência de anomalias, ou seja, a desigualdade entre os indivíduos é a norma. Ele conclui que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível. A vida é posição de valor, ela é, portanto, uma atividade normativa. Assim, anomalia vira sinônimo de anormalidade quando ela se torna um obstáculo ao exercício das funções diante de um ideal de saúde, que passa a ser, historicamente, do interesse da Medicina. Do ponto de vista estritamente biológico, portanto, não há fatos que sejam normais ou patológicos em si mesmos. Daí que o adoecimento humano precisa ser pensado a partir da norma social, ou seja, normas relativas umas às outras num sistema social. O normal, portanto, é a norma manifesta no ato, sendo a normalização um fato cultural. A norma social não é imanente, não é interna, está repleta de antagonismos e dissidências e está longe de se colocar como um todo.

            Para Canguilhem, o homem, mesmo sob o aspecto físico, não se limita a seu organismo. Ora, portanto, para julgar o que é normal ou patológico para o corpo é preciso olhar além dele, já que o corpo humano é produto de uma atividade social. A doença, dessa forma, é a transformação da relação do indivíduo com o meio e pode ser ao mesmo tempo privação e reformulação. Assim, se a doença não deixa de ser uma espécie de norma, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes.O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.

            Fomos contaminados! Estamos vivendo a COVID-19 em nossos corpos, em nossas famílias, em nossas cidades, em nossos países. A COVID-19, enquanto acontecimento humano expõe a cada dia que na verdade estamos todos contaminados por esse pathos social, de modos diferentes e incomensuráveis, mas inexoravelmente confrontados com uma nova norma diante da qual, perplexos, ainda não sabemos bem como agir. Afinal, muitos, felizmente, não foram contaminados pelo novo coronavírus e esperamos, na melhor das hipóteses, que nunca cheguem a desenvolver a COVID-19 graças às vacinas. Mas é impossível não estarmos contaminados pela Pandemia, essa sim está afetando nossos corpos falantes de modo irreversível, mesmo que nada se queria saber sobre isso, ou mesmo que se julgue saber em demasia. É preciso, mais do que nunca, apostar na Ciência, sem esquecer, entretanto, que ela não deve ocupar o lugar da verdade absoluta – que de resto, não existe – outrora ocupado pela Religião do Papa e atualmente almejado por outros fundamentalismos. É preciso, ainda, incluir o furo e é essa a nossa função, como Psicanalistas, cuja matéria prima do trabalho é justamente a linguagem que nos humaniza e nos torna incompletos, frágeis e desejantes. É preciso revalorizar a palavra! Mas é preciso, sobretudo, que não nos esqueçamos de que nossos atos e decisões, por mínimos que sejam, promovem efeitos em rede que afetam outros corpos e também o corpo coletivo. E nunca haverá verdadeira saúde, a não ser coletiva. Precisamos com urgência ultrapassar a norma com a qual estávamos habituados e instituir novas normas diante das novas situações que se nos foram colocadas na nova década do século XXI. Não desejo a ninguém um novo normal. Desejo saúde nova!

Redação

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