Ideologia, novos atores e disputa política nos EUA, por Leonardo Ramos e Caio Gontijo

do OPEU – Observatório Político dos Estados Unidos

Ideologia, novos atores e disputa política nos EUA

por Leonardo Ramos e Caio Gontijo

As transformações políticas (doméstica e internacional) dos últimos anos, em especial no que diz respeito à emergência e ao fortalecimento de forças de (extrema) direita, tornam necessária uma análise crítica deste processo. Neste sentido, a Revista Práxis e Hegemonia Popular organizou recentemente um dossiê temático voltado exatamente para essa questão – “Avanços da direita em perspectiva no mundo”, com contribuições sobre os problemas do neoliberalismo neste contexto, as relações contemporâneas entre Estados Unidos e China e os impactos da ascensão da direita para a educação superior no Brasil.

Nossa contribuição para o dossiê – Ideologia, novos atores e disputa política nos EUA – diz respeito à emergência de novos atores na disputa política atual nos Estados Unidos e os elementos ideológicos presentes neste processo. Buscamos assim manter nossa análise no nível superestrutural da ideologia, com apenas algumas menções ao nível da base material produtiva e reprodutiva. O recorte temporal que importa para nossa análise diz respeito às transformações ideológicas que ocorrem desde a emergência do Occupy Movement até a vitória de Trump, em 2016, vitória esta que é vista como um movimento visando a um fim, mas que acaba realizando seu contrário.

Partimos de Gramsci para entender tais processos e, neste sentido, analisamos a eleição de Trump como uma vitória cesarista em um momento de crise orgânica. Tendo em vista o objetivo inicial, buscamos detalhar os elementos ideológicos constitutivos de tal processo eleitoral para, em seguida, apresentarmos o período de 2016-2020 como um período de retorno às “formas mais democráticas”, distante do que teria sido o “democratismo” formal vigente até então. Disto, segue-se uma apresentação da conjuntura mais imediatamente atual, marcada pela pandemia do coronavírus e pelas eleições presidenciais de 2020. Por fim, apresentamos uma conclusão que busca sintetizar os argumentos até então apresentados tendo como foco a questão da ideologia presente na política contemporânea dos Estados Unidos. E é para esta conclusão que voltamos nossas atenções neste momento.

Partindo de uma perspectiva crítica, o momento atual da política dos Estados Unidos demanda paciência “histórica”. Desta paciência deverá vir a calma para reconstituir idealmente o movimento real do processo: da pré-história a Trump, marcada pela crise de 2007-08, Occupy Movement e Tea Party e a saga tipicamente “democratista” de Barack Obama, de empolgação infantil a decepção profunda; até a emergência de Trump, a alt-right e seus intelectuais: síntese “nova”, que assume a estética da transgressão e da inconformidade contra diversos consensos do último “bloco histórico”, compreendidos reificadamente por alguns setores da população.

O cenário político atual dos Estados Unidos apresenta diversos problemas para os quais “respostas” distópicas estão sendo propostas. De um lado, a resposta de Trump, que consiste em conflitar com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e incitar seus apoiadores para tentar terminar a quarentena a fim de “salvar” os empregos (e subempregos). De outro, a resposta dos democratas, que consiste em negar Trump, sem um conteúdo positivo original de Joe Biden, que despreza o Green New Deal e o Medicare For All.

Estas duas “respostas” demandam reflexão sobre os elementos ideológicos em plena operação hoje nos EUA e, para tanto, apresentamos quatro teses que concluem nossa análise:

Tese 1 (sobre o passado) – Trump foi a síntese de duas sensibilidades

Donald Trump se beneficiou da dinâmica de guerra cultural entre a direita troll e o call-out esquerdista, ou, dito de outra forma: o “ridículo corrosivo” contra o “politicamente correto”. Mas uma justa medida entre “estrutura” e “superestrutura” nos informa que a vitória de Trump em 2016 foi uma síntese original entre: 1) o “velho” desespero “imediato” da escassez material das classes mais baixas, prejudicadas pela desindustrialização neoliberal das últimas décadas nos EUA, cuja máxima manifestação é o Tea Party; e 2) a “nova” obscenidade “ridícula corrosiva”, ligada à militância “transgressiva” que cresceu com a Internet, cuja máxima manifestação é a alt-right.

Tese 2 (sobre o presente) – Trump pode ser o primeiro momento de um novo bloco histórico

O cesarismo regressivo “ridículo corrosivo” de Trump não é “a última trincheira do neoliberalismo”. O “interregno” e a “crise orgânica” de Gramsci foram apontados quando de sua campanha em 2016, dos quais ela seria um “sintoma mórbido”. Hoje, a situação já avançou para um momento posterior. A possibilidade de reeleição de Trump, junto à derrota definitiva da alternativa Bernie Sanders, podem terminar por conformar, de vez, a transição “entre” a crise orgânica e um novo bloco histórico. Isso não significa que os desbalanceamentos, dos quais a “crise” é composta, tenham sido resolvidos, mas que a atual “tempestade perfeita” que soma a anterior crise orgânica à pandemia do coronavírus seja um momento determinante de um próximo bloco histórico.

Tese 3 (sobre o presente) – A falácia da “unidade da esquerda”

O equívoco do Partido Democrata ficou evidente quando preteriu o único candidato que poderia representar algo “novo” e, a partir da evidência de sua maior vantagem sobre Trump nas pesquisas eleitorais, vencê-lo e mobilizar a sociedade civil e política para a construção de um novo “bloco histórico” mais relativamente progressista. Muito se fala sobre a necessidade de unidade dos setores progressistas; contudo, o primeiro erro é pressupor que estes setores são suficientemente numerosos para vencer. O segundo é considerar que, de fato, todos sejam progressistas, independentemente dos adjetivos que dão a si mesmos. Mas o terceiro e mais grave erro é a crença cega na “unidade”. Essa visão carrega uma analogia implícita da soma matemática entre fatores positivos, mas desconsidera que a somatória de dois elementos resulta em uma quantidade menor que apenas um dos elementos somados. Este é o caso com Bernie Sanders que, sozinho, é mais forte que somado a Joe Biden.

Tese 4 (sobre o futuro) – Os EUA pós-coronavírus

Sendo o vencedor das eleições Trump, ou Biden, mas sem a capacidade de articulação e expressão de uma “liderança intelectual e moral”, a realidade distópica do atual mundo do trabalho precarizado poderá se reificar como o novo “normal” (e a crítica a ele deixará de figurar como “concreta”, localizada no tempo, com políticas e ideologias a serem responsabilizadas, e se tornará uma estéril crítica abstrata contra o “todo existente”, resultando em um consenso passivo com o atual estado de coisas).

Além disso, como Gramsci especificava na apresentação do líder “cesarista” do tipo condottiero, o líder Trump em tempos de guerra (como analogicamente a pandemia tem sido tratada) será capaz de relativizar tantas mortes por haver “salvado” tantas outras vidas. Os setores progressistas ou se reinventam e superam de vez os Biden, Clinton etc. “no sentido” de Bernie Sanders, mas superando-o em erros que ainda não estão claros, mas que devem ser objeto de análise o mais urgente possível, ou não voltarão ao poder pelas próximas décadas, quando a presente “geração”, a “memória” do presente, tiver sido completamente substituída por outras.

Leonardo Ramos é professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor visitante da Universidad Nacional de Rosario (UNR) e pesquisador associado ao INCT-INEU e ao Instituto de Estudos da Ásia, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Contato: lcsramos@pucminas.br.

Caio Gontijo é doutorando em Ciências Sociais na Universidad de Buenos Aires (UBA). Contato: caiovgontijo@gmail.com.

Redação

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  • Tudo lindo e maravilhoso na teoria mas na prática quem quer voltar ao poder é o Deep State, Biden se vencer será apenas um fantoche.

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