Kafka no Itamaraty, por Paulo Roberto de Almeida

do Diplomatizzando

Kafka no Itamaraty, por Paulo Roberto de Almeida

Na madrugada da segunda-feira de Carnaval de 2019, depois de ler a imprensa do domingo recém findo, de ter selecionado dois artigos que reputei relevantes para a política externa – meu terreno de atuação nas últimas quatro décadas –, um do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, outro do ex-ministro Rubens Ricupero, e de ter a eles agregado um artigo-resposta do atual chanceler, fui dormir, após ter postado os três textos no blog Diplomatizzando, convidando a um debate sobre a diplomacia do governo Bolsonaro. Fui acordado poucas horas depois pelo chefe de gabinete do chanceler, que comunicou minha exoneração, “com efeito imediato”, do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, que exercia desde agosto de 2016, por acaso depois de uma longa travessia do deserto durante todos os governos lulopetistas, quando não tive nenhum cargo na Secretaria de Estado das Relações Exteriores, tendo sido relegado ao que os colegas diplomatas chamam desdenhosamente de DEC, Departamento de Escadas e Corredores.

Encarei com certo estoicismo o lazer forçado, passando a maior parte do tempo na Biblioteca do Itamaraty, transformada em meu escritório quase permanente, onde aliás redigi livros sobre a política externa, entre eles Nunca Antes na Diplomacia (2014). Resignei-me a um novo limbo naquele ambiente de saber, e lá fiquei durante dois meses, quando também aproveitei para escrever e publicar um novo livro, que aliás não tinha nada a ver com o governo em curso: Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018). Em maio, fui comunicado que estava sendo lotado na Divisão do Arquivo, passando a estar sob a chefia de um Primeiro Secretário, mas que eu não deveria me preocupar com isso, pois tudo era apenas “formalmente”.

A despeito de ter consultado a própria alta chefia da Administração sobre as minhas novas atribuições, numa me foram atribuídos quaisquer encargos ou tarefas naquela unidade, de onde deduzi que eu estava, uma vez mais, relegado a um novo limbo na carreira. Dei continuidade, pois, às minhas atividades de estudos e pesquisas, e aproveitei para escrever um novo livro, desta vez sobre a política externa do atual governo, livremente disponível em meu blog: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty. Imagino que o mesmo deva ter causado certa comoção no Gabinete do chanceler, mas só fui descobrir como meses depois, no final de novembro, por meio de uma transparente publicação no Boletim de Serviço do Itamaraty, lido por todos os funcionários do Serviço Exterior, em todo o nosso planetinha redondo, segundo a qual eu teria incorrido em “vinte faltas injustificadas” entre maio (quando de minha lotação nos Arquivos) e agosto. Procedi à imediata justificação de todas aquelas faltas, sendo que duas eram de um sábado e domingo, uma terceira de um evento oficial no Comando Militar do Planalto, onde compareci a convite do Ministério da Defesa, no qual se encontrava o próprio chanceler (que deve ter ficado muito irritado ao me ver na sala VIP, conversando com generais, almirantes e brigadeiros; sou professor eventual nos cursos da ESG); as demais faltas correspondia todas a eventos acadêmicos: bancas de mestrado e doutorado no Uniceub, onde sou professor, e cursos ou seminários a convite de outras instituições acadêmicas.

Minhas justificativas foram “indeferidas” em menos de três dias, e no dia 1/01/2020 fui contemplado com seu reflexo no meu contracheque: exatos R$ 210,16, ou seja, menos de um quinto de um salário mínimo. Conclui que o chanceler estava mesmo com muita raiva de mim, a ponto de me deixar sem um mínimo recurso alimentar naquele mês. Os descontos se referiam apenas a três distantes meses de 2019, assim que fui novamente contemplado em 13 de março com nova publicação acintosa no Boletim de Serviço, registrando “dez faltas injustificadas” entre setembro e outubro, o que deve prenunciar novas publicações do mesmo teor nos próximos meses. Mais uma vez justifiquei cada uma delas, fornecendo inclusive as provas de cursos e seminários, ademais de uma atividade da cadeira Jean Monnet, a convite da própria Delegação da EU no Brasil (tudo documentado no blog Diplomatizzando: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/uma-trajetoria-diplomatica-do-limbo-ao.html). Um processo kafkiano tinha começado contra mim, orientado pela alta cúpula.

Uma observação quanto à meticulosidade burocrática desse sistema de registro de faltas: ela é seletiva, ou propriamente míope. Nenhum dos vários outros embaixadores colocados em disponibilidade pelo esforço de “saneamento etário” empreendido pelo chanceler Ernesto Araújo foi jamais contemplado com tal distinção honorífica de ter o seu nome publicado no Boletim de Serviço como sendo um reles funcionário “relapso”, passível, portanto, de sofrer todo o furor da Lei. Antigamente, nos tempos em que os animais falavam, como gosta de lembrar o ex-chanceler Celso Lafer, os intelectuais que se exerciam nas lides intelectuais eram até admirados e encorajados pelo Itamaraty, como registrado na belíssima obra que ele publicou em 2001, sob a direção do acadêmico diplomata Alberto da Costa e Silva: O Itamaraty na Cultura Brasileira, uma coleção de ensaios cobrindo a vida e a obra de algumas dezenas de representantes das letras e das humanidades que eram ou se tornaram diplomatas, desde o século XIX até o grande intelectual José Guilherme Merquior.

O embaixador Rubens Ricupero, por sua vez, a quem comuniquei a nova postura do Itamaraty, transformado em bedel severo de diplomatas pertencentes a certas “tribos”, escreveu-me o seguinte: “estou de fato convencido de que uma administração que se recusa a empregar o funcionário em trabalho útil implicitamente reconhece que abriu mão dos serviços que ele poderia prestar. Em tais condições, não parece admissível que essa administração exija presença física como se se tratasse do cumprimento de pena de reclusão em regime fechado. E veja, hoje em dia em direito penitenciário, se considera que a administração penal tem o dever de oferecer trabalho até aos condenados! Desejo a Você muita sorte nesta luta pelo Itamaraty e em defesa de sua própria dignidade.”

A julgar pela imagem atual da diplomacia brasileira no exterior, as piores faltas do Itamaraty não são exatamente as do seu corpo profissional.

Paulo Roberto de Almeida, é embaixador e professor no Uniceub

Redação

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