Karl Polanyi: Alternativa ao Debate Polarizado, por Fernando Nogueira da Costa

Karl Polanyi: Alternativa ao Debate Polarizado

por Fernando Nogueira da Costa

Karl Polanyi (1886-1964), em sua obra A Grande Transformação, publicada em 1944, tornou-se referência para o debate sobre o capitalismo contemporâneo. Seu xará, Karl Marx (1818-1883), morreu três anos antes de seu nascimento. Não presenciou o embate entre Estado e Mercado, desdobrado em duas Grandes Guerras Mundiais e uma Grande Depressão no século XX. O Capital, sua obra máster, não tem uma Teoria do Estado.

Ambos pensadores sistêmicos têm em comum uma visão holística. É oposta à lógica mecanicista do individualismo metodológico de compartimentar o capitalismo em várias iniciativas particulares, causando a perda da visão global. A evolução criativa forma um “todo” maior ou distinto da soma das suas partes. Marx e Polanyi buscam entender os fenômenos de uma maneira integral, por oposição à análise de seus componentes em separado. As interações destes não podem ser explicadas como um não afetasse o comportamento do outro.

A Grande Transformação critica o liberalismo de mercado, cujo pressuposto é a ideia de tanto as sociedades nacionais, quanto a economia global, ambas poderão ser organizadas por meio de autorregulação dos mercados. No debate polarizado entre os defensores do capitalismo de livre mercado e os do socialismo realmente existente, Polanyi não se submete aos interesses estritos da casta dos mercadores nem aos da casta dos trabalhadores organizados. Como socialista e membro da casta dos sábios intelectuais, propõe uma aliança de sua casta com a dos trabalhadores para um reformismo à la socialdemocracia nórdica, combinando Estado e Mercado, ambos submissos aos interesses maiores da Comunidade.

Em seu levantamento da história do liberalismo de mercado, revelou as consequências trágicas dos projetos de plena liberalização econômica implementados no passado. Também de origem austríaca, embora criado em Budapeste, Polanyi apresentou uma alternativa às teses de Ludwig von Mises e de seu discípulo Friedrich Hayek. Mises e Hayek tentavam reafirmar a legitimidade intelectual do liberalismo de mercado, fortemente abalada pela I Guerra Mundial, a Revolução Russa e a utopia do socialismo.

Polanyi sentiu os efeitos mundiais do crash do mercado de ações de Nova York em 1929, como a falência do Kreditanstalt, um dos maiores bancos da Áustria, em 1931. Tudo isso precipitaria a Grande Depressão e a ascensão do nazi fascismo. Chegando Hitler no poder, em 1933, Polanyi com sua ideologia socialista emigrou inicialmente para a Inglaterra e, depois de uma passagem pelos Estados Unidos, na primeira metade dos anos 40, quando escreveu “A Grande Transformação”, erradicou-se no Canadá.

O livro está organizado em três partes. A primeira e a terceira centram-se nas circunstâncias imediatas resultantes na Grande Guerra, na Grande Depressão, na ascensão do fascismo na Europa continental, no New Deal nos Estados Unidos e no primeiro plano quinquenal na União Soviética. A pergunta-chave é: por que um período prolongado de relativa paz e prosperidade na Europa, de 1815 a 1914, deu lugar a uma guerra mundial seguida por um colapso económico?

A Segunda Parte (o núcleo do livro) fornece a resposta de Polanyi à pergunta. Para ele, os pensadores ingleses do século XIX tentavam responder aos efeitos disruptivos da revolução industrial inglesa ao elaborarem a Teoria do Liberalismo de Mercado. Pregavam a sociedade subordinar-se ao funcionamento de mercados autorregulados. Essa crença se tornou o princípio organizador da economia mundial.

A ação agressiva dos defensores do liberalismo de mercado produziu uma violenta reação de proteger a sociedade frente ao livre mercado. As instituições governantes da economia global, destacadamente o padrão-ouro, criavam tensões crescentes entre as nações. A Grande Guerra e a Grande Depressão foram consequências diretas das tentativas de organizar a economia global com base no liberalismo de mercado. A segunda “grande transformação” – a ascensão do fascismo – é resultado da primeira, ou seja, da ascensão do liberalismo de mercado.

Na construção da sua tese, Polanyi recorre às leituras de História, Antropologia e Sociologia para dar contribuições originais sobre o papel da reciprocidade ou cooperação e da redistribuição nas sociedades pré-modernas, as limitações do pensamento econômico neoclássico e os perigos da mercantilização da natureza. Embora concorde com boa parte da crítica feita por Keynes ao liberalismo de mercado, Polanyi não pode ser considerado um keynesiano. Ele sempre se apresentou como socialista. Na verdade, criticava qualquer espécie de determinismo econômico, inclusive o do marxismo.

Seu conceito-chave é incrustação (embeddedness): implantação ou forte adesão a um corpo. O pensamento econômico neoclássico tem uma concepção da economia como um sistema de relacionamentos entre mercados capazes de ajustarem entre si a oferta e a procura através do mecanismo dos preços relativos. Embora alguns economistas do mainstream reconheçam o mercado por vezes ter a necessidade do auxílio dos governos para superar as falhas do seu funcionamento, quase todos continuam a basear-se nesta representação de um modelo de equilíbrio geral. Para Polanyi, esta concepção difere da realidade das sociedades humanas historicamente conhecidas, até ao século XIX, sempre com a economia humana incrustada na sociedade.

Devido a essa “incrustação”, a economia não é autônoma, como um sistema complexo à parte. Está subordinada à ação de outros componentes como a política, a religião e as relações sociais de um sistema complexo maior. Este emerge ou se configura a partir das interconexões entre todos seus componentes, inclusive a própria economia. As transações no mercado dependem da confiança mútua entre os agentes econômicos e/ou da imposição jurídica dos contratos para a diminuição da incerteza do futuro.

Em lugar da subordinação histórica da economia à sociedade, os pregadores de mercados autorregulados defendiam a subordinação da sociedade à lógica do mercado. Em vez de existir uma economia incrustada (embedded) nas relações sociais, seriam as relações sociais incrustadas no (e subordinadas ao) sistema econômico.

Polanyi não afirma o triunfo do capitalismo no século XIX ter significado a economia ter sido desincrustada com êxito da sociedade, acabando por dominá-la. Os economistas neoclássicos sempre encorajaram os políticos a criar uma legislação para a sociedade determinante da economia ser efetivamente desincrustada. No entanto, nunca puderam alcançar esse objetivo, face à reação social.

O objetivo de uma economia de mercado desincrustada e plenamente autorregulada é um projeto utópico no sentido de não pode existir. Isto porque um mercado com processo de auto alimentação de uma alta especulativa de preços é incapaz de se auto ajustar sem uma crise catastrófica para a sociedade.

Uma economia de mercado inteiramente autorregulada requer os seres humanos e o meio natural serem convertidos em meras mercadorias, provocando a destruição tanto da sociedade como do meio ambiente. Polanyi distingue entre mercadorias reais e fictícias. As reais são produzidas para serem vendidas no mercado. Mas os “fatores de produção” – terra, trabalho e moeda – são mercadorias fictícias, porque não foram originalmente produzidos para venda no mercado.

Polanyi, primeiro, defende uma tese moral: ser um erro tratar a natureza e os seres humanos como mercadorias, cujos preços serão determinados pelo mercado. Pelo contrário, eles têm autonomia ou capacidade de se autogovernar: traçar as normas de sua conduta, sem sentir imposições restritivas de ordem estranha.

Segundo, defende uma tese referente ao papel do Estado na esfera da economia: ajustar a oferta de dinheiro e de crédito a fim de evitar os perigos da inflação e da deflação; gerir as variações da demanda por empregados, assegurando proteção durante os períodos de desemprego, educando e formando os futuros trabalhadores, e tentando controlar os fluxos migratórios; manter a continuidade da produção alimentar, colocando os agricultores a salvo das flutuações das colheitas e da volatilidade dos preços. Além disso, regular o uso do solo urbano através da regulamentação ambiental e das suas condições de utilização. Em suma, o papel do Estado de gerir as mercadorias fictícias o impossibilita de ser desincrustado da economia. E dadas as mercadorias fictícias, é impossivel a desincrustação da economia em relação à sociedade.

Outra tese polanyiana diz respeito ao “duplo movimento”. As sociedades de mercado seriam configuradas por dois movimentos opostos: o movimento do laissez-faire buscando expandir o âmbito do mercado e o contra movimento de proteção emergente como resistência à desincrustação da economia. Na verdade, os próprios capitalistas desencadeiam periodicamente ações de resistência contra a incerteza e as flutuações produzidas pela autorregulação dos mercados. Preferem estabilidade e previsibilidade.

Tanto o liberalismo de mercado como o marxismo sustentam as sociedades não terem senão duas escolhas: ou o capitalismo de mercado ou o socialismo de planejamento central. Excluem quaisquer outras alternativas. Em contrapartida, Polanyi define o socialismo como a tendência imanente da civilização humana superar a autorregulação do mercado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. Tanto os mercados quanto a democracia têm papel-chave nas sociedades socialistas quando os interesses da Comunidade se sobrepõem aos do Mercado e do Estado.

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018). http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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