Mangueira, discussões religiosas e a carne mais barata do mercado, por Bruno Reikdal Lima

Para religiosos é necessário estabelecer critérios para reconhecer ou retomar os conteúdos que constituem a religiosidade firmada na tradição iniciada pelos seguidores de Jesus.

Mangueira, discussões religiosas e a carne mais barata do mercado

por Bruno Reikdal Lima

Vimos domingo na Sapucaí um enredo social e religiosamente engajado:  a Mangueira questionava onde estaria Jesus se nascesse em nossa terra hoje. A favela como seu território, representado com rostos de pessoas socialmente excluídas, com especial destaque para um jovem negro crucificado e baleado. Claro que o objetivo era uma crítica forte e uma provocação tanto a violência contra as comunidades marginalizadas, quanto contra fundamentalismo religioso que legitima a exclusão e a violência.

As reações em diferentes setores evangélicos e católicos puseram em questão mais uma vez a falsa ideia de que há uma separação entre religião e política, entre religiosidade e posicionamentos ideológicos. Uma manifestação cultural que nos lembra da velha expressão de Marx de que a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica. E nesse caminho aberto pela avenida, vimos em um instante uma inversão de posições bastante curiosa: de movimentos religiosos uma posição mais cética quanto a relação entre religião e política (condenando o uso da religião para fins ideológicos) e a celebração por parte de grupos evangélicos e católicos progressistas da imagem religiosa para a transmissão de uma mensagem política (coisa que anteriormente foi bastante condenada, claro, em referência ao uso dos púlpitos e das missas para campanha eleitoral – algo distinto da festa no fim de semana).

Discussões teológicas foram trazidas a tona. De um lado, em geral, a afirmação de várias identidades de Jesus, e de outro, também em sentido amplo, o esguio passo de dizer que Jesus não pode ser reduzido a uma luta social, pois ele era Deus. Quando não, em alguns grupos de certas tradições, a crítica de que Jesus na Palestina do século I em meio a pobres, escravizados e marginalizados era quase um acidente aleatório, apenas para cumprir um papel dentro de um plano divino de sacrifício para a salvação da humanidade. De todo modo, a crítica de que Jesus retratado daquela maneira da escola de samba era insuficiente para apresentar o Jesus verdadeiro, que seria o divino mais preocupado com a salvação eterna das almas do que “apenas” com a vida imediata das pessoas que sofrem com sistemas e relações de opressão e exclusão.

Tivemos, portanto, teólogos conservadores preocupados com a mensagem que uma escola de samba estaria passando de Jesus, e teólogos progressistas exaltando aquelas representações. E não há como não tomar posição frente a cada conflito. No limite, dado enfrentamentos cotidianos efetivos, acabamos nos aproximando de certos grupos e nos distanciando de outros. Pessoalmente, a tradição de fé da qual faço parte, minhas experiências religiosas comunitárias e nas leituras bíblicas que realizo, Jesus se viesse hoje para nossa terra, como era o mote do enredo da Mangueira, estaria nos territórios periféricos, encarnado junto aos necessitados e criticando as legitimações religiosas da exclusão e da segregação.

Isso não significa, contudo, que representar Jesus em cada grupo identitário seja o melhor caminho crítico para reorientar as igrejas e instituições religiosas. Na verdade, precisaríamos de um passo grande de crítica a todos os sistemas religiosos comuns, que reforçam, legitimam ou mesmo justificam as relações de exploração e violência. E isso precisa passar não apenas ou propriamente pela imagem de Jesus, mas pela maneira como se interpreta o texto de fé e com quais tradições religiosas estabelecemos empatia se queremos seguir certos preceitos.

Isso posto, para religiosos é necessário estabelecer critérios para reconhecer ou retomar os conteúdos que constituem a religiosidade firmada na tradição iniciada pelos seguidores de Jesus. A comunidade de Mateus, por exemplo, em seu evangelho narra uma parábola em que no dia do julgamento, Jesus separaria aqueles que estariam consigo dos que quereria distância. Para os que entrariam em seu reino, o critério o “tive fome e me deram de comer. Tive sede e me deram de beber. Fui estrangeiro e me hospedaram em suas casas. Estava nu e me vestiram. Estava doente e cuidaram de mim. Estive preso e vocês foram me visitar”. Ao passo que esses “eleitos” para o reino responderiam que não sabiam quando tinham feito isso a Ele, e em resposta ouviriam: “quando fizeram isso ao menor desses meus irmãos, foi a mim que fizeram”. Os separados para se afastarem de Jesus fizeram exatamente o contrário, não dando de comer, de beber, de vestir, não recebendo o estrangeiro, não cuidando do doente e nem do preso, teriam que ouvir: “quando se recusaram a atender o menor desses meus irmãos e irmãs, foi a mim que recusaram a atender”.

Nesse sentido, quem se posiciona em favor de quem está privado de condições para a vida, de quem está necessitado, está cumprindo um papel muito mais efetivo para a Jesus do que quem se recusa a cumprir esse dever (ou ao menos deixa de ter isso como fundamento de suas tomadas de decisão). Nos tempos de Jesus, os doentes e os pobres eram considerados pecadores permanentes: os doentes por estarem com enfermidades e, se assim o estavam, deveria ser castigo divino. Os pobres (a grande massa do povo), porque eram incapazes de cumprir com os sacrifícios exigidos pela lei. Estavam sempre em débito, não poderiam participar das festas e das celebrações de culto, não poderiam cumprir o rito de perdão dos pecados. Resultado: pecadores e condenados socialmente por “natureza”. Com eles que Jesus almoçava.

As mulheres, culturalmente já negadas, compunham grande parte do grupo de excluídas. Viúvas que não recebiam assistência, garotas que eram violentadas fosse por soldados romanos ou por algum homem do povo, eram rejeitadas e marginalizadas, assim como as empobrecidas que vendiam sua força de trabalho, fosse doméstico ou sexual, em troca de algum rendimento para a manutenção da casa. A estas mulheres Jesus exaltava e com elas se relacionava diarimente.

Jesus, então, nas narrativas dos evangelhos, está sempre com esses grupos, servindo-os e atendendo suas necessidades. O mesmo deveria ser feito por seus discípulos. Jesus não apenas como uma boa pessoa, mas alguém socialmente engajado, preocupado com a vida da comunidade e a garantia de atendimento das pessoas postas para fora pelas elites locais e pelo templo, que lhes negava a inserção social, reforçando apenas seu caráter de “foras da lei”, de pecadores, de pessoas incapazes de cumprir com os mandamentos divinos, logo, indignos de serem reconhecidas.

O filho de Deus, portanto, estava com essas pessoas, encarnado. Seu posicionamento religioso é posicionamento de fé, é cumprimento dos mandamentos divinos que converte as relações cotidianas, sociais, materiais das comunidades. Cada passo crítico abala todas as relações e mediações, todas as instituições e ordens estabelecidas. Não está separado o conteúdo de sua mensagem e de sua vida vivida aqui, entre nós, de sua divindade ou do fato de ser divino. Em verdade, essa é sua completude, sua totalidade, sendo inteiro em tudo o que fazia – e como e com quem fazia. Nesse sentido, a comunidade de João responsável pela edição e compilação de suas cartas escreve na primeira epístola que é preciso testar as mensagens dos falsos profetas, e que a verdadeira mensagem “reconhece que Jesus Cristo veio em carne humana”, e aquela que não reconhece essa verdade seria um espírito anti-Cristo. Lembrar da corporalidade de Jesus, seu lugar, quem era e porquê fez o que fez no contexto em que fez é fazer jus ao conteúdo de uma mensagem que é de Deus e não falsa – mais um critério importante.

O desfile da Mangueira fez questão de apresentar um Jesus imaginado encarnado hoje. Essa representação é uma abertura, não um conteúdo que soluciona problemas. Uma abertura pois ajuda a aproximar o contexto e os interlocutores de Jesus em seu tempo, o lugar social que ocupavam, as violências, exclusões e perseguições que sofriam. Curioso, pois não foi apresentado um Jesus “justiceiro social” (como muitos grupos tem declarado), e sim um Jesus oprimido, marginalizado, pobre. Foi posto na carne mais barata do mercado, a carne negra. Isso não faz dele um militante, e sim alguém a quem deveríamos dar de comer, dar de beber, vestir, hospedar, curar e visitar. A carne mais barata do mercado é jogada pra morte todo dia, simplesmente por não ter valor, desprezada pelos homens e considerada culpada de antemão, sem nem ao menos ter feito algo de errado, necessariamente.

Como descreveu Elza Soares, a carne barata do mercado é aquela que vai de graça para os presídios e precisaria ser visitada, que vai parar debaixo do plástico e deveria ter alimentada e saciada, que vai de graça para o subemprego e que deveria ter sido incluída, que vai para os hospitais psiquiátricos e deveria ter sido cuidada. Jesus viria – como veio – “barato”, em família que sofre preconceito por ter uma adolescente que aparece grávida no meio da comunidade sem estar casada e que o noivo afirma não ser dele a criança em gestação. Viria da carne que tem que fugir de sua terra, pois a cabeça do menino pobre estava a prêmio. Ameaçava a ordem social vigente com um rei corrupto. Aliás, como bem diz também a Elza, é a carne que faz a história de um povo no braço, mas que não se revolta frente ao desprezo e abandono porque o revólver já está engatilhado e o vingador eleito “muito bem intencionado”.

A Mangueira apresentou Jesus como essa carne. Não com um grande discurso teológico, mas dando uma possibilidade de retomarmos a pessoa de Jesus, o Jesus encarnado – que nem por isso deixa de ser divino, senão o contrário. A carne que cotidianamente é roubada, tomada, massacrada e mastigada. Carne que deveria ter chance de partilhar da vida, de gerar vida. A redução a imagens de Jesus é limitada. Mas a recuperação de sua vida corpórea, real, efetiva, em seu lugar e contexto é possível. Temos a abertura. Somos lembrados de que precisamos de novos critérios para perceber como deve ser orientada a mensagem de Jesus.

Redação

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador