Nabucodonosor e Daniel, por Walnice Nogueira Galvão

Os reis assírios e babilônios renderam muita obra de arte. Entre elas a monumental “Morte de Sardanápalo”, de Delacroix, no Louvre

Gravura de William Blake, na Tate Britain

Nabucodonosor e Daniel

por Walnice Nogueira Galvão

A saga de Nabucodonosor, rei assírio-babilônio que emprestou seu nome à ópera Nabucco, de Verdi, encontra-se na Bíblia, no livro de Daniel, que registra as proezas deste profeta maior dos hebreus. Levado como escravo para a Babilônia, lá se distinguiu miraculosamente: era decifrador de sonhos, um precursor de Freud, enfim. 

Daniel, atirado na cova dos leões por se recusar a abjurar sua fé, saiu intacto porque um anjo o protegeu. Interpretou sonhos de Nabucodonosor  e acabou guindado a altas posições. O rei finalmente o dispensaria de cultuar os deuses locais, permitindo que permanecesse fiel a Jeová. Por isso, corre a lenda, que Verdi aproveitou em sua ópera, de que o rei afinal se convertera.

Mas a Bíblia também conta que, por castigo divino, Nabucodonoso foi acometido por uma moléstia mental, regredindo a animal. É o que mostra uma tremenda gravura de William Blake, hoje na Tate Britain, em que, seguindo ao pé da letra as Escrituras, o ímpio rei é mostrado de quatro, emporcalhando-se pelo chão, com unhas transformadas em garras e coberto por algo semelhante a penas de pássaro.

Já se vê que o episódio bíblico dá origem a duas alegorias seminais, que fecundariam as artes pelos milênios afora: uma do exílio, que aparece na ópera de Verdi,  e outra da queda de um poderoso – tema, em outra constelação, como se sabe, da tragédia grega. 

Uma alegoria do segundo caso é o festim de Belsazar, ligado à saga,  pois a Bíblia o dá como filho de Nabucodonosor. Em pleno banquete, o rei cometeu um sacrilégio, servindo a seus convivas os vasos de ouro e prata pilhados do Templo de Jerusalém. “Mane mane tekel upharsim” foram as palavras em aramaico, que Daniel foi convocado para traduzir,  magicamente escritas na parede pela mão de Jeová, profetizando a queda do sacrílego rei. É o que vemos numa belíssima tela de Rembrandt, intitulada, justamente, “O festim de Belsazar”, pertencente à National Gallery de Londres.

Por que em aramaico? O livro de Daniel é um dos dois que, junto com Esdras, tem inserções de aramaico, o restante do Velho Testamento sendo escrito em hebraico.  Língua falada na região, o aramaico vicejou especialmente no centro da Síria e entre os nabateus de Petra e de Palmira. 

O episódio bíblico está vivo até hoje num tradicional hino das igrejas protestantes:

“Numa orgia nefanda/ O rebelde Belsazar/ Com os grandes do seu reino/ Todos eles a folgar…/ Mão de Deus na caiadura/ Escrevendo apareceu…”

As sonoridades rebarbativas dos nomes desses reis atraíram Guimarães Rosa e constam de uma lista no conto “São Marcos”, de Sagarana – ali figurando pela imponência de seus significantes, infinitamente exóticos. Nada têm a ver com o entrecho, mas, a bem dizer, num conto que postula o poder das palavras, sabe-se lá… Eis a lista, inscrita num gomo de bambu vivo:

“Sargon

Assarhaddon

Assurbanipal

Teglattphalasar, Salmanassar

Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor

Belsazar

Senakherib”

Os reis assírios e babilônios renderam muita obra de arte. Entre elas a monumental “Morte de Sardanápalo”, de Delacroix, no Louvre, obra-prima da pintura romântica e do Orientalismo tal como o representava a imaginação ocidental. E mais um exemplo da queda do potentado.

Quanto ao nome de Nabucodonosor, trata-se de uma invocação ao poderoso deus Nabu, ou Nebo, para que proteja as fronteiras do reino, forma usual de composição dos nomes próprios de dignitários na alta Antiguidade. Os egípcios tinham o mesmo costume, como se verifica no nome do grande faraó Ramsés (Filho de Ra, o Deus Sol) ou o mais conhecido Tutancamon ou Tut-Ankh-Amon (“A Imagem Viva do Deus Amon”).

Uma correspondência atual entre nós plebeus seria a quantidade de onomásticos com recados nem tão secretos à divindade: Deusdedit (Deus Deu, em latim) e Deusdá, Teófilo e Teodoro (Amigo de Deus e Dom de Deus, em grego), Emanuel (Deus Conosco, em hebraico) etc.  Isso para não falar em Jesus, ou Cristo, ou então as inúmeras Nossa Senhora, por interposto topônimo (Lourdes, Fátima), epíteto ou atributo: Aparecida, Glória, Graça, Rosário, Dores, Conceição, Carmo, Penha. Soam hoje tão naturais que nem mais lembramos de acoplá-las a “Maria”.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

1 Comentário

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  1. Patinando nesse passado, que se pretende imortal, vamos comprometendo o nosso futuro, sempre ameaçado pelo retorno do que já foi superado.
    Neste mundo não precisamos ter pressa, pois daqui não se sai vivo e nem se vai a lugar nenhum.

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