Neoliberalismo de Temer é o saudosismo da selvageria, por Márcio Valley

Neoliberalismo de Temer é o saudosismo da selvageria, por Márcio Valley

Vontade é uma disposição íntima para realizar determinada ação ou omissão. A vontade somente se concretiza materialmente se encontradas, externamente ao agente, as condições ideais para tal. Poder, portanto, é a capacidade de produzir tais condições ideais de materialização da vontade. Em outras palavras, poder é a capacidade decisória unilateral de realização da vontade. Quanto maior a possibilidade de concretização das vontades do agente, maior o seu poder.

No estado de natureza, o poder de cada indivíduo é quase ilimitado, somente encontrando barreiras na extensão da própria força física e na capacidade de resistência do outro. Assassinato, estupro e roubo, para ficar nesses exemplos, integram o rol de ações inerentes à natureza animal. Um leão desafiante, ao vencer e, ocasionalmente, matar o macho alfa anterior, tomará pela força a propriedade do bando e passará a ter preponderância sexual sobre todas as fêmeas do grupo. Para iniciar seu reinado, matará todos os filhotes do bando. As fêmeas não somente aceitarão a nova liderança e a matança dos próprios filhotes, como entrarão imediatamente no cio, para satisfazer o novo rei e lhe conceder os próprios descendentes. Os leões não dominantes, para dar vazão ao instinto de reprodução, estuprarão eventualmente as fêmeas desgarradas, cujos filhotes serão aceitos no bando pela suposição de que são crias do macho alfa. Todas essas ações – assassinato, roubo, infanticídio e estupro – não constituem, obviamente, crimes na natureza, mas contingências naturais absolutamente normais e, segundo biólogos, saudáveis para o equilíbrio natural e para a saúde genética.

No estado de natureza, pois, se o indivíduo for suficientemente forte, sua vontade se imporá sobre a dos outro. A imposição de uma vontade sobre a outra é justamente o que se chama “poder”.

Quando o ser humano passou a viver em sociedade, um dos principais motivos que o conduziu a aceitar reduzir seu próprio poder individual, se não o principal, foi justamente a intenção de reduzir o poder individual do outro e selecionar, por via da ação cultural, as ações moralmente aceitáveis no seio da coletividade. Em benefício de todos, ações que eram naturais em termos de ação individual, passaram a ser criminalizadas. Resumindo: desde o início, a experiência social não criou o Estado para ampliar o poder individual, mas para reduzi-lo. O Estado serve, ou deveria servir, ao propósito de mitigar a capacidade do indivíduo mais forte de ferir o direito alheio à vida, à integridade física e à propriedade.

Nesse sentido, a cantilena neoliberal de redução do Estado significa, nada mais, nada menos, do que diminuir o poder estatal de interferir na ação que um indivíduo exerce sobre o outro. Mais especificamente: visa ao retorno ao estado de natureza.

O neoliberalismo é sinônimo, assim, de saudosismo da selvageria, da barbárie e da lei do mais forte que imperava no estado de natureza. O neoliberalismo, em essência, é um libelo contra o que se entende por humanidade, contra tudo o que nos diferencia da animalidade selvagem. É uma ação não-cultural, portanto.

A palavra liberalismo provêm de “liberdade”. Liberdade, no sentido sofista pretendido pelo neoliberalismo, seria representado pela expressão francesa laissez faire, com significado aproximado de “faça e deixe fazer”. Seu paroxismo conduziria à possibilidade de escravização do ser humano, resultado que, durante milhares de anos, já foi considerado normal pela humanidade na luta pela sobrevivência. Na verdade, materialmente falando, a escravidão já está de volta em diversas regiões do planeta, agora caracterizado pelo pagamento de salários aviltantes e sonegação dos direitos humanos mais básicos, como o do respeito à dignidade da pessoa. Não há mais necessidade de grilhões, pois a falta de dinheiro impede a mobilidade; capitães do mato são dispensáveis, pois, nos setores sem especialização, há fartura de mão de obra sobressalente para os que deixam de retornar ao trabalho; senzalas são obsoletas, as favelas e outros locais de submoradia tomaram esse lugar.

Liberdade de verdade, no entanto, somente é possível através da sociedade humana organizada, ou seja, por meio da existência de um Estado forte capaz de inibir a vontade individual. Parece um contrassenso, mas não é. Liberdade total corresponde à possibilidade de poder absoluto individual de decidir o que, quando e como fazer o que se deseja fazer. É o leão matando os filhotinhos para assumir o poder. É a natureza em estado puro, selvagem e indisciplinada. No caso do ser humano, é a possibilidade de crianças de sete anos submetidas a jornadas de 12 horas, como já existiu na História.

A liberdade do ser humano cultural é a liberdade responsável. Trata-se de limitar o interesse individual ao interesse da coletividade. Tal limitação somente pode ser efetiva se imposta pela força do império estatal. Justamente em função da necessidade de estabelecer a ideia comum de liberdade responsável, o neoliberalismo está naufragando, ou já naufragou, nos países centrais, somente ainda insistindo em seus efeitos nefastos nos periféricos.

No que concerne ao Brasil, o neoliberalismo, praticado na gestão do PSDB no governo federal e que agora retorna travestido de governo golpista de Michel Temer, mas com o mesmo PSDB controlando as marionetes nos bastidores obscuros do poder, simboliza o retorno da opressão, da sonegação dos direitos trabalhistas mais básicos, da revogação da Lei dos Sexagenários e do ataque aos cofres públicos pelos mais poderosos, beneficiados por juros estratosféricos.

No limite, se não refreado a tempo, a fraude do neoliberalismo conduzirá à redução de porções cada vez maiores do poder do Estado. Chegará o dia em que o leão desafiante matará o líder, afugentará os outros machos, assassinará os filhotes e estuprará as leoas e ninguém poderá reclamar.

Afinal, faça e deixe fazer.

no blog do Marcio Valley: Neoliberalismo de Temer é o saudosismo da selvageria

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Redação

7 Comentários

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  1. Os indianos acreditam que não
    Os indianos acreditam que não conseguimos ver a realidade, porque ela é obliterada pelo Véu de Maya:
    https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Maya_(filosofia)

    Sob Lula e Dilma o Véu de Maya brasileiro foi aperfeiçoado de tal maneira que a maioria da população passou a acreditar que não estava condenada a ficar submetida sob um capitalismo progamaticamente excludente e brutal.

    Enquanto as migalhas eram jogadas aos pobres, os ricos ficaram mais ricos. Agora eles se tornaram mais arrogantes e petulante.

    Temer rapidamente destruiu a ilusão. Ao revogar direitos sociais, trabalhistas e previdenciários ele removeu o Véu de Maya que encobria a dominação e, não por acaso, ela se tornou mais brutal e visível.

    Quando o povo se levantar e ir realmente para a guerra de classes que Michel Temer começou… vai testar bem pouco do Brasil. E então os capitalistas lamentarão o fato de ter removido o Véu de Maya que garantia as vidas e os livros deles. Porque a perda direi, pois em se tratando de induismo sou adepto de Mali (a deusa da morte, implacável devoradora de homens).

  2. Os indianos acreditam que não
    Os indianos acreditam que não conseguimos ver a realidade, porque ela é obliterada pelo Véu de Maya:
    https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Maya_(filosofia)

    Sob Lula e Dilma o Véu de Maya brasileiro foi aperfeiçoado de tal maneira que a maioria da população passou a acreditar que não estava condenada a ficar submetida sob um capitalismo progamaticamente excludente e brutal.

    Enquanto as migalhas eram jogadas aos pobres, os ricos ficaram mais ricos. Agora eles se tornaram mais arrogantes e petulante.

    Temer rapidamente destruiu a ilusão. Ao revogar direitos sociais, trabalhistas e previdenciários ele removeu o Véu de Maya que encobria a dominação e, não por acaso, ela se tornou mais brutal e visível.

    Quando o povo se levantar e ir realmente para a guerra de classes que Michel Temer começou… vai testar bem pouco do Brasil. E então os capitalistas lamentarão o fato de ter removido o Véu de Maya que garantia as vidas e os livros deles. Porque a perda direi, pois em se tratando de induismo sou adepto de Kali (a deusa da morte, implacável devoradora de homens).

    1. Pois é, Fábio, por vezes

      Pois é, Fábio, por vezes penso o mesmo, ou seja, se não quebrar o pau a coisa não anda. Porém, pelo bem de nós brasileiros, desejo que a política cumpra o seu papel de conciliação dos interesses conflitantes. Grande abraço.

  3. O fato do neoliberalismo ser uma bosta não quer dizer que…

    Diz o Márcio Valley:

    “Liberdade de verdade, no entanto, somente é possível através da sociedade humana organizada, ou seja, por meio da existência de um Estado forte capaz de inibir a vontade individual”.

    Ora, o fato do neoliberalismo ser uma bosta não quer dizer que o estado, principalmente o estado forte, seja caviar. O estado, seja ele máximo ou mínimo, é uma bosta tão fedorenta quanto o neoliberalismo.

    O Estado, máximo ou mínimo, não é um instrumento de liberdade, mas um órgão de dominação de uma classe por outra.

    Em Estado e Revolução, Lenin escreveu:

    “De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as contradições e a luta de classes, “corrigem” Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível. Para os professores e publicistas burgueses e para os filisteus despidos de escrúpulos, resulta, ao contrário, de citações complacentes de Marx, semeadas em profusão, que o Estado é um instrumento de conciliação das classes. Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submisso de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a submissão de uma classe por outra; atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos de luta contra os opressores a cuja derrocada elas aspiram.

    Assim, na revolução de 1917, quando a questão da significação do papel do Estado foi posta em toda a sua amplitude, posta praticamente, como que reclamando uma ação imediata das massas, todos os socialistas-revolucionários e todos os mencheviques, sem exceção, caíram, imediata e completamente, na teoria burguesa da “conciliação” das classes pelo “Estado”. Inúmeras resoluções e artigos desses políticos estão profundamente impregnados dessa teoria burguesa e oportunista da “conciliação”. Essa democracia pequeno-burguesa é incapaz de compreender que o Estado seja o órgão de dominação de uma determinada classe que não pode conciliar-se com a sua antípoda (a classe adversa). A sua noção do Estado é uma das provas mais manifestas de que os nossos socialistas-revolucionários e os nossos mencheviques não são socialistas, como nós, os bolcheviques, sempre o demonstramos, mas democratas pequeno-burgueses de fraseologia aproximadamente socialista.”

    1. Rui Ribeiro, tenderia a

      Rui Ribeiro, tenderia a concordar com seu pensamento se meu texto fosse prospectivo, imaginando um futuro utópico, mas possível. Mas, não. Falo sobre o presente mais imediato, no qual capitalismo e Estado ainda são uma realidade. Mais que isso: uma realidade necessária. O seu comentário, contudo, foi bastante oportuno. Abraços.

      1. Obrigado a você, Márcio, por essa explicação

        Não sabia que você estaria falando do imediatismo. Nisso, até o Noam Chomsky, concorda. Você já leu sobre a teoria da jaula?

        Eu achei que você achasse que o Estado é o domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas, conforme alertou Engels:

        “Segundo a representação filosófica, o Estado é a «realização da Idéia», ou o reino de Deus na terra traduzido para o filosófico, domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. E daí resulta, pois, uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que com o Estado se relaciona, a qual aparece tanto mais facilmente quanto se está habituado, desde criança, a imaginar que os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não poderiam ser tratados de outra maneira do que como têm sido até aqui, ou seja, pelo Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se ter já dado um passo imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na monarquia hereditária e jura pela república democrática. Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de fato, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.”

        Mais uma vez, obrigado pela explicação, Márcio, e desculpe-me.

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