O filme ‘Indústria Americana’ e a reestruturação trabalhista da ordem neoliberal, por Walace Ferreira

A questão do trabalho é fundamental no sistema econômico neoliberal, daí a sanha pelas reformas que temos assistido nos últimos anos no Brasil e que o atual ministro da economia é um ferrenho defensor desde os tempos de Chicago. 

O filme ‘Indústria Americana’ e a reestruturação trabalhista da ordem neoliberal

por Walace Ferreira

Em plena pandemia de coronavírus parei para assistir o filme “Indústria Americana” (2019) e pude reviver estudos preocupantes sobre a reestruturação produtiva e a nova ordem capitalista em curso. A multinacional chinesa Fuyao vale-se da globalização para expandir sua rede escolhendo Dayton/Ohio, Estados Unidos, cidade de forte depressão pós-crise financeira de 2008. O espaço escolhido é uma antiga fábrica da General Motors (GM), fechada naquele contexto.  

Encontrando milhares de desempregados em Dayton, a empresa chega trazendo esperança, mas não tarda para que trabalhadores americanos da Fuyao, muitos da época da GM, se percebam envolvidos em precárias condições de trabalho. A China leva aos EUA e ao mundo formas de trabalho desregulamentadas que ajudaram o país de base comunista a potência econômica que é hoje. Esse método é caracterizado pela exploração da mão de obra em termos de exaustão de horas, baixos salários, disciplina militarizada no chão da fábrica, centralização de decisões, negação de sindicatos democráticos e uma ideologia segundo a qual trabalha-se para o povo chinês independente de onde se esteja no globo. Além disso, encontra terreno fértil num sistema econômico liberal presente em boa parte do mundo capitalista e defendido pelos Estados Unidos, com alguma diferença de intensidade, desde os anos 80.

O neoliberalismo estimulou a globalização da qual a China tem se aproveitado para internacionalizar suas empresas. A reestuturação produtiva capitalista, marca desse novo estágio capitalista, é exemplificada na própria natureza produtiva da Fuyao, fabricante de vidros de carros, realizando uma etapa da produção automotiva. Estamos falando da terceirização produtiva que barateia a produção e amplia os lucros. A preocupação central da Fuyao é que a qualidade e a produtividade na fábrica norte-americana assemelhem-se com a matriz chinesa, garantindo a credibilidade da marca num mercado altamente competitivo. 

Se o sentido do trabalho tem suas especificidades culturais – na China se trabalha para a nação, nos EUA se trabalha pelo dinheiro que alimenta a ideologia consumista -, o neoliberalismo trata de dar-lhe um sentido único. Isso aparece claramente no vislumbre de operários americanos quando viajam e conhecem a matriz chinesa, de modo que um deles chama seus conterrâneos norte-americanos de tagarelas e sugere colocar uma fita em suas bocas para ficarem calados e produzirem mais. Revela uma psicologia que apoia a exploração típica desse momento histórico, destituída de sentimento coletivo e de mútua proteção. Algum tempo depois, ele e outros colegas são demitidos e a gestão da fábrica recebe executivos chineses. 

A questão do trabalho é fundamental no sistema econômico neoliberal, daí a sanha pelas reformas que temos assistido nos últimos anos no Brasil e que o atual ministro da economia é um ferrenho defensor desde os tempos de Chicago.  Os danos para a classe trabalhadora permeiam todo o documentário. A começar pelo esforço da Fuyao em inibir qualquer organização sindical genuinamente operária. Embora a legislação norte-americana permita os sindicatos, ela é desestimulada, corroborando a lógica neoliberal de defesa pela livre negociação entre empregado e patrão. Os trabalhadores que insistiram em montar um sindicato foram boicotados e/ou demitidos. Não há nada de mais neoliberal do que a ideia de que o sindicato atrapalha a produção e perde-se dinheiro (para a empresa), palavras ditas pelo presidente da multinacional. Nada mais neoliberal que esta concepção de desorganização do trabalho, gerando exclusão e concentração de renda. 

O trabalhador, na nova ordem econômica capitalista, começa a sofrer diante do desemprego, cuja situação de desespero reduz o custo do seu serviço. No começo do filme, muitos trabalhadores vão trabalhar na Fuyao para receber até 1/3 do salário recebido na GM e ainda atribui-lhe o título de melhor trabalho da cidade, agradecendo pelo simples fato de estarem empregados. Sofrem ainda, diante da pressão por alta produtividade e a comparação com o trabalhador chinês. Enquanto o americano dedicava 8 horas diárias ao trabalho e possuía 8 dias de folga por mês, o chinês trabalhava 12 horas, tendo apenas duas folgas mensais. A pressão e a insalubridade também fazem parte da nova ordem produtiva. Na Fuyao, trabalhadores passam a se acidentar, demonstrando como a segurança do trabalho vai sendo desvalorizada frente às demandas de produção. No caso de chineses que agora estavam na fábrica americana era comum a presença de marcas físicas de acidentes anteriores sem que isso tivesse sido interpretado como violação a direitos.  

No fim do filme, mostra-se a substituição de operários por máquinas, gerando mais desemprego. É o impacto da indústria 4.0, a automação industrial cada vez mais intensificada e que reduz postos de trabalho. Operários são desafiados continuamente a se ajustar às recentes contingências produtivas, mais abrangentes e complexas. Assim sendo, continuam empregados apenas aqueles cuja qualificação não pode ser substituída pela tecnologia. 

Por fim, o documentário me leva a mencionar um trecho descrito por Giovanni Alves no ensaio “A subjetividade às avessas” (2011), no qual o sociólogo aponta criticamente como o sistema capitalista neoliberal tem lidado com a produção, o trabalho e o trabalhador:

“A elevação dos índices de desemprego aberto no decorrer da década neoliberal contribuiu não apenas para fragilizar o poder de barganha dos trabalhadores assalariados e aumentar as taxas de exploração, intimidando o sindicalismo combativo de luta de classes; mas possui uma função sociorreprodutiva, ou seja, criou a sociabilidade adequada aos consentimentos espúrios, às renúncias de direitos sociais e de conquistas trabalhistas históricas e aos envolvimentos estimulados pelo medo do desemprego. No novo ambiente proliferam valores, expectativas e utopias de mercado, impregnados de individualismo liberal que aparece como novo pragmatismo” (ALVES, 2011, p. 126).

Referência:

ALVES, Giovanni. A captura da subjetividade. In: ALVES, GIOVANNI. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.

Walace Ferreira – Professor de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Redação

1 Comentário

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  1. É por isso que um novo keynesianismo humanitário, ao estilo da Europa e EUA dos 30 anos dourados (1945-75) é impossível, pois o custo do trabalho, para ser lucrativo, está num patamar muito baixo. Então, ou se paga mal e superexplora o trabalho, como na China, ou se substitui pessoas por máquinas, como na Alemnha e EUA, gerando desemprego estrutural.

    O trabalho que sobra para as pessoas é precário, mal remunerado e sem direitos, mal dando para pagar as contas. O capitalismo está em colapso e não tem mais solução.

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