O florescimento lucrativo do capitalismo de vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O capitalismo de vigilância se carateriza por uma punição suave (a expropriação forçada de excedente comportamental) imposta por empresas privadas com ou sem autorização estatal.

O florescimento lucrativo do capitalismo de vigilância

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Após narrar como o excedente comportamental foi descoberto e começou a ser explorado pelo Google e descrever o ciclo de expropriação de informação através do qual o capitalismo de vigilância realiza seu imperativo (a criação de múltiplas e rotas sustentáveis que garantam o fornecimento crescente de excedente comportamental), Shoshana Zuboff conta como a nova modalidade econômica se espalhou. As primeiras empresas a colocarem os pés nesse novo território virgem foram o Facebook, Microsoft e Verizon.

“… The ‘Like’ button, introduced widely in April 2010 as a comunications tool among friends, presented an early opportunity for Facebook’s Zuckerberg to master the dispossession cycle. By November of that year, a study of the incursion already underway was published by Dutch doctoral candidate and privacy researcher Arnold Roosendaal, who demonstrated that the button was a powerful supply mechanism from which behavioral surplus is continuously captured and transmitted, installing cookies in users’s computers whether or not they click the button. Presciently describing the operation as an ‘alternative busines model’, Roosendaal discovered that the button also tracks non-Facebook members and concluded that Facebook was potentially able to connect with, and therefore surveil, ‘all web users’. Only two months earlier, Zuckerberg had characterized Facebook’s growing catalogue os privacy violations as ‘missteps’, Now he stuck to the script, eventually calling Roosendall’s discovery a ‘bug’.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019,p. 159)

Tradução:

“… O botão ‘Curtir’, introduzido amplamente em abril de 2010 como uma ferramenta de comunicação entre amigos, apresentou uma oportunidade inicial para o Zuckerberg do Facebook dominar o ciclo de expropriação. Em novembro daquele ano, um estudo da incursão já em andamento foi publicado pelo candidato a doutorado e pesquisador de privacidade holandês Arnold Roosendaal, que demonstrou que o botão era um poderoso mecanismo de suprimento do qual o excedente comportamental é continuamente capturado e transmitido, instalando cookies nos computadores dos usuários se eles clicam ou não no botão. Descrevendo a operação como um ‘modelo alternativo de negócio’’, Roosendaal descobriu que o botão também rastreia membros que não são do Facebook e concluiu que o Facebook era potencialmente capaz de se conectar e, portanto, pesquisar, ‘todos os usuários da web’. Apenas dois meses antes, Zuckerberg caracterizou o crescente catálogo de violações de privacidade do Facebook como um ‘erro de digitação’. Na oportunidade ele se referiu ao script, chamando a descoberta de Roosendall de ‘erro’. ”

Após percorrer as fases de habituação (o botão Like foi rapidamente instalado em 1/3 dos websites mais visitados da internet) e adaptação (Zuckerberg fez um acordo com o FTC para encerrar as acusações de violação de privacidade) o Facebook concluiu a fase de redirecionamento.

“…By 2014, the corporation announced that it would be tracking users across the internet using, among its other digital widgets, the ‘Like’ button, in order to build detailed profiles for personalized ad pitches. Its ‘ comprehensive privacy program’ advised users of this new tracking policy, reversing every assertion since April 2010 with a few lines insert into a dense and lengthy terms-of-service agreement. No opt-out privacy option was offered. The truth was finally out: the bug was a feature.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 161)

Tradução:

“… Por volta de 2014, a corporação anunciou que rastreará os usuários pela Internet usando, entre outros dispositivos digitais, o botão ‘Curtir’, para criar perfis detalhados para apresentações de anúncios personalizadas. Seu ‘programa abrangente de privacidade’ aconselhou os usuários desta nova política de rastreamento, revertendo todas as afirmações desde abril de 2010 com algumas linhas inseridas em um contrato de termos de serviço denso e demorado. Nenhuma opção de privacidade de exclusão foi oferecida. A verdade finalmente foi revelada: o erro era uma característica intencional.”

A ganância falou mais alto. Quando criou o Facebook, o jovem Zuckerberg queria conectar todas as pessoas e se recusava a monetizar seu website. Assim que descobriu que estava administrando dezenas de milhões de perfis que poderiam ser economicamente explorados ele começou a vender espaços aos anunciantes. Todavia, a ganância por lucros crescentes levou o Facebook a mergulhar de cabeça no capitalismo de vigilância.

Para valorizar a propaganda personalizada e segmentada é necessário fazer predições cada vez mais precisas sobre os comportamentos futuros dos usuários de internet e de telefonia móvel. A extração de quantidades crescentes de excedente comportamental havia se tornado um imperativo https://jornalggn.com.br/artigos/o-imperativo-da-expropriacao-e-suas-consequencias-politicas/ e o Facebook descobriu uma maneira simples e aparentemente inocente de vigiar as pessoas para coletar a matéria-prima indispensável.

Quantas vezes você mesmo acionou o botão Like no Facebook ou em páginas de internet em que ele foi inserido? Quanto dinheiro Zuckerberg lucrou usando seus Likes para traçar o seu perfil analisando seu comportamento “on line” e vendendo aos anunciantes as predições sobre o seu comportamento futuro? Ok. Essas duas perguntas são apenas retóricas. É evidente que você não conseguirá respondê-las. Apenas o próprio Zuckerberg está em condições de saber isso. Mas ele evidentemente não vai compartilhar esse lucrativo segredo empresarial com você ou com qualquer pessoa. Há uma diferença qualitativa essencial entre quem dá um Like e quem explora o resultado desta operação singela.

O caminho percorrido pela Microsoft foi um pouco diferente. A empresa criada por Bill Gates já era um colosso da internet quando o Google e o Facebook estavam abrindo caminho para os lucros crescentes sustentáveis criando e começando a explorar o capitalismo de vigilância. Todavia, a Microsoft parece ter percebido que as regras do jogo haviam mudado.

Não bastava a Microsoft ser uma empresa multinacional rentável. Era preciso vigiar os consumidores dos seus produtos para transformar excedente comportamental numa montanha de dinheiro. A empresa já tinha um buscador, mas o Bing não era rentável. Não era, mas rapidamente ele se tornou rentável.

“…Bing’s search engineering team built its own model of the digital and physical word with a technology it calls Satori: a self-learning system that is adding 28,000 DVDs of content every day. Acoording to the project’s senior director, ‘It’s mind-blowing how much data we have captured over the las couple of years. The line would extend to Venus and you would still have 7 trillion of pixels left over. All those pixels were being put to good use. In its Octuber 2015 earnings call, the company announced that Bing had become profitable for the first time, thanks to around $1 billion search ad revenue from the previos quarter.

Another strategy to enhance Bing’s access to behavioral surplus was the corporation’s ‘digital assistant’ Cortana, to which users addressed more than one billion questions in the three months after its 2015 launch. As one Microsoft executive explains, ‘Four out five queries go to Google in browser. In the [Windows 10] task bar [where Cortana is accessed] five out five queries go to Bing… We’re all in on search. Searchs is a key component to our monetization strategy.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 163)

Tradução:

“… A equipe de engenharia de pesquisa do Bing construiu seu próprio modelo da palavra digital e física com uma tecnologia chamada Satori: um sistema de autoaprendizagem que adiciona 28.000 DVDs de conteúdo todos os dias. De acordo com o diretor sênior do projeto, ‘É impressionante a quantidade de dados que capturamos ao longo dos últimos dois anos. A linha se estenderia a Vênus e você ainda teria 7 trilhões de pixels restantes. Todos esses pixels estão sendo bem utilizados. Em sua chamada de ganhos de outubro de 2015, a empresa anunciou que o Bing havia se tornado lucrativo pela primeira vez, graças a cerca de US $ 1 bilhão em receita de anúncios de pesquisa do trimestre anterior.

Outra estratégia para aprimorar o acesso do Bing ao excedente comportamental foi a ‘assistente digital’ da empresa, Cortana, para a qual os usuários responderam a mais de um bilhão de perguntas nos três meses após o lançamento em 2015. Como explica um executivo da Microsoft: ‘Quatro em cada cinco consultas vão para o Google no navegador. Na barra de tarefas do [Windows 10] [onde a Cortana é acessada], cinco a cinco consultas vão para o Bing… Estamos todos pesquisando. As pesquisas são um componente essencial da nossa estratégia de monetização.”

Em seu livro Vigiar e Punir, Michel Foucault fez um exame profundo dos mecanismos estatais de vigilância e punição (hospitais, escolas e prisões) empregados para criar distinções sociais e estruturar a sociedade e o poder político na França. O capitalismo de vigilância se carateriza por uma punição suave (a expropriação forçada de excedente comportamental) imposta por empresas privadas com ou sem autorização estatal.

Uma sociedade sem mobilidade social e dividida entre os que vigiam e punem (a França estudada por Foucault e literariamente rejeitada por Victor Hugo na obra Os Miseráveis) é economicamente injusta, socialmente instável e politicamente previsível. Todavia, os movimentos populares de reivindicação que surgirem podem ser criminalizados. O uso da força bruta é legitimado pela própria natureza criminosa, doentia ou inculta daqueles que ousarem se rebelar.

A sociedade dominada pelo capitalismo de vigilância é rígida, injusta e imprevisível. Em razão do seu imperativo, essa nova modalidade econômica estrutura e divide a sociedade em duas castas sem qualquer comunicação.

De um lado estão os capitalistas da vigilância que detém os conhecimentos e as condições tecnológicas para coletar gratuitamente quantidades crescentes de excedente comportamental com ou sem autorização dos internautas e usuários de Smartphones. Do outro estão os fornecedores da matéria-prima que será explorada com lucro exclusivamente pelos traficantes de previsões. Não por acaso, a distância entre ricos e pobres aumentou assustadoramente nos EUA justamente no período em que o capitalismo de vigilância nasceu e começou a se impor.

Na França estudada por Foucault a resistência popular se expressava nas ruas através de movimentos políticos. Como resistir politicamente a uma tendência econômica lucrativa e crescente que se estabeleceu com a tolerância do Estado? Se a internet for utilizada para organizar essa resistência o capitalismo de vigilância será inevitavelmente reforçado. Não só isso, a vigilância que tem uma finalidade comercial pode rapidamente se transformar numa arma política apontada contra aqueles que tentam dificultar a realização do imperativo de extração de excedente comportamental.

A história da migração da Verizon para o capitalismo de vigilância envolve a criação de um “cookie zumbi” que não pode ser desligado ou deletado pelo usuário e a compra de uma empresa de internet (a AOL).

“Any serious challenge to the giant surveillance capitalists must begin with economies of scale in behavioral surplus capture. To that end, Verizon immediately redirected its supply routes thougt AOL’s advertising platafoms. Within a few months of the acquisition, Verizon quitly posted a new privacy notice on its website that few of its 135 million wireless customers would ever read. A few lines slipped into the final paragraphs of the post told the story: PrecisionID is on the move again. Verizon and AOL would now work together ‘to deliver services that are more personalised and useful to you… we will combine Verison’s existing advertising programs… into the AOL Advertising Network. The combination will help make the ads you see more valuable across different devices and services you use.’ The new notice assert that ‘the privacy of our customers is important to us,’ though not important enough to compromise the extraction imperative and alow raw-material providers to challenge the corporation’s dispossession program. Opt-out procedures were available but, as usual, complex, difficult to ascertain, and time-consuming. ‘Please note’, the post concluded ‘that using browser controls such as clearing cookies on your devices or cearing your browser history is not an effective way to opt out of the Verizon or AOL adverising programs’.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 169/170)

Tradução:

“Qualquer desafio sério aos gigantes capitalistas de vigilância deve começar com economias de escala na captura de excedentes comportamentais. Para esse fim, a Verizon redirecionou imediatamente suas rotas de fornecimento, com base nas plataformas de publicidade da AOL. Alguns meses após a aquisição [da AOL], a Verizon publicou um novo aviso de privacidade em seu site, que poucos de seus 135 milhões de clientes sem fio se deram ao trabalho de ler. Algumas linhas entraram nos parágrafos finais da publicação: o PrecisionID está em movimento novamente. A Verizon e a AOL agora trabalhariam juntas ‘para fornecer serviços mais personalizados e úteis para você… combinaremos os programas de publicidade existentes da Verison… na AOL Advertising Network. A combinação ajudará a tornar os anúncios que você vê mais valiosos em diferentes dispositivos e serviços que você usa.’ O novo aviso afirma que ‘a privacidade de nossos clientes é importante para nós’, embora não seja importante o suficiente para comprometer o imperativo de extração e permitir provedores de materiais para desafiar o programa de expropriação da corporação. Os procedimentos de exclusão estavam disponíveis, mas, como sempre, eram complexos, difíceis de determinar e demorados. ‘Observe’, a publicação concluiu ‘que o uso de controles do navegador, como limpar cookies em seus dispositivos ou manter o histórico do navegador, não é uma maneira eficaz de desativar os programas de publicidade da Verizon ou da AOL’.”

A jogada da Verizon/AOL foi contestada na FCC resultando num acordo. O valor do acordo foi irrisório (1,35 milhões de dólares). A decisão proferida pela FCC, em 27/10/2016, em favor da proteção da privacidade dos usuários de internet, não afetou as empresas sujeitas ao Federal Trade Commission (caso da Verison). A empresa simplesmente seguiu em frente e comprou a Yahoo por 4,4 bilhões de dólares para ter a escala necessária de excedente comportamental que lhe permitisse desafiar seriamente a predominância do Google e Facebook no mercado publicitário de comportamentos futuros.

“New and established companies from every sector – including retail, fitness, insurance, automotive, travel, hospitality, health, and education – are joing the migrratory path to surveillance revenues, lured by the magnetism of outsized growth, profit, and promise of the lavish rewards that only the financial market can confer.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 172)

Tradução:

“Empresas novas e estabelecidas de todos os setores – incluindo varejo, ginástica, seguros, automotiva, viagens, hospitalidade, saúde e educação – estão se unindo ao caminho migratório para obter receitas de vigilância, atraídas pelo magnetismo de crescimento, lucro e promessa de enormes recompensas generosas que somente o mercado financeiro pode conferir.”

O padrão criado pelo Google e seguido por Facebook, Microsoft e Verizon conseguiu se impor. A universalização do capitalismo de vigilância transformou os usuários de internet e telefonia móvel em fornecedores primários de uma matéria-prima inesgotável gratuita. Mas isso é apenas o começo de uma nova era. Aspectos cada vez mais opressivos desta nova economia que remodela o mundo de acordo com o perfil que pode ser feito das pessoas são narrados por Shoshana Zuboff.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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