Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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O que não tem governo nem nunca terá!, por Ana Laura Prates

Freud, o pai da psicanálise, foi quem subverteu a definição de Rousseau, o pai da educação, de que a infância seria o sono da razão, definindo essa fase da vida como o despertar do desejo.

O que não tem governo nem nunca terá!

por Ana Laura Prates

Em 1992, eu era uma jovem psicóloga em início de carreira, e comecei a trabalhar na pediatria da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Fui então chamada pelo infectologista para ajudá-lo a lidar com uma situação que lhe causava muita angústia: a incipiente clínica de crianças HIV positivas, todas elas vítimas de transmissão vertical (de mãe para filho) e muitas já com os sintomas da AIDS, para a qual, à época, ainda não havia tratamento. Essas crianças apresentavam, então, um paradoxo para o imaginário que envolvia a epidemia da AIDS, iniciada nos anos 80. A crença, claramente homofóbica, de que se tratava de uma “doença de gays” baseava-se na fantasia de promiscuidade atribuída aos homossexuais. Alguns chegavam a proferir que teria sido um castigo divino. Até que as primeiras crianças começaram a nascer infectadas, levando inexoravelmente à realidade de tantas mulheres com sorologia positiva. É verdade que algumas dessas mulheres teriam sido infectadas através de transfusões com sangue contaminado, ou por compartilharem agulhas contaminadas no uso de drogas injetáveis. Em outras, o vírus fora transmitido por seus parceiros, que por sua vez tinham se contaminado através daqueles meios. Minha experiência com esses casos, entretanto, revelou algo diferente. Muitas daquelas mulheres, bem como seus companheiros, nunca tinham recebido transfusão, tampouco eram usuárias de drogas injetáveis. O elo perdido, portanto, era a sexualidade, que passava à cena principal através de um vírus. Aquelas crianças, usuárias da saúde pública e oriundas de típicas famílias brasileiras de baixa renda das grandes cidades, declaradas heterossexuais, estavam longe do estereótipo que habitava o imaginário preconceituoso de então e, no entanto, revelavam algo até então encoberto sobre a sexualidade de seus pais. Foi um início de carreira freudiano!

Hoje, quase trinta anos depois, parece inacreditável que precisemos voltar a esse assunto: o de que não existe sexualidade normal, o de que a disposição sexual humana tem formas variadas e é basicamente bissexual – para nos atermos ao binarismo vigente. Com essas afirmações, oriundas de sua experiência clínica, Freud escandalizou a sociedade vienense do final do século XIX e deu início a uma verdadeira subversão que influenciou de modo decisivo as transformações culturais do século XX. Ele revelou que as águas azuis do Danúbio eram bem mais agitadas do que queriam transparecer os vestidos da mesma cor rodopiando pelos salões ao som de Debussy: relações homossexuais, traições, rivalidades, atrações e prática proibidas, tudo isso e mais um pouco, que acontece desde que o mundo é mundo, rolava nos bastidores daquelas famílias de bem. Hoje, se escutasse as afirmações da ministra Damares, e a campanha governamental que pretende pregar a abstinência sexual dos adolescentes, em pleno país do carnaval, é provável que o Dr. Freud reconhecesse aí a confirmação de sua teoria sobre o recalque e os efeitos patológicos de seu retorno sintomático, em nível pessoal e social.

Freud, o pai da psicanálise, foi quem subverteu a definição de Rousseau, o pai da educação, de que a infância seria o sono da razão, definindo essa fase da vida como o despertar do desejo. Ele ousou afirmar, a partir da escuta de seus pacientes, que a sedução (ou o que se chama hoje de abuso) não é um fator determinante para despertar o desejo sexual nas crianças, já que ele surge espontaneamente. Cai por terra, assim, a visão geral de uma época que via a infância como uma fase assexuada. Almodóvar nos mostrou o despertar do desejo infantil, de modo magistral, e com uma precisão surpreendente, no filme “Dor e Glória”. A cena na qual o menino Salvador se vê sendo visto por aquele que virá a ser a matriz de seus futuros objetos de desejo, é de uma delicadeza e sensibilidade comoventes. Ele arde, então, de febre e de desejo; desejo esse que será, para sempre, motivo de dor e glória.

Essa “descoberta” freudiana, aliás, é comentada por Foucault em sua “História da sexualidade”, lembrando que os interditos seculares, explícitos ou silenciosos em relação à sexualidade infantil, só fazem mostrar que ela sempre esteve presente, ainda que negada de diversas formas. Isso não significa, evidentemente, que não haja casos de abusos, que a sexualidade infantil seja equivalente à de um adulto e muito menos que as crianças possam praticar o que chamamos de “relações sexuais”. Aliás, pelo contrário, se pensarmos bem, é a sexualidade adulta que conserva aspectos de prazeres que, em outras áreas da vida já foram esquecidos. A cama, longe de ser apenas o lugar onde se pratica o coito, é um verdadeiro playground onde se chupa pra lá, lambe pra cá, morde acolá, fica de gatinho, dá tapinha, fala com vozinha fina, chama o parceiro com apelidos ridículos, etc. etc. etc. Não à toa os apetrechos vendidos em sex shops são chamados de “brinquedos”.

O fato de que a sexualidade seja algo presente nas relações humanas desde o nascimento, portanto, está longe de ser uma autorização para a prática libidinosa entre adultos e crianças. Muito pelo contrário, Freud fundamenta sua teoria em uma tese posteriormente corroborada pela antropologia: a de que a interdição do incesto é o que nos humaniza, daí que as relações sexuais sejam interditadas entre gerações. Foi o antropólogo francês Levi-Strauss quem “leu” o famoso “Complexo de Édipo” de modo muito mais radical do que o de uma novela na qual o Joaozinho quer a mamãe só pra ele e, por isso, desenvolve fantasias agressivas em relação ao papai. Isso, no máximo, explicaria a existência de crianças mimadas e mal educadas nas famílias pequeno burguesas a partir do século XX. Para esse problema, a atual solução Supernanny é mais do que suficiente. A tragédia grega, por outro lado, transmite algo muito mais universal e radical, que podemos dar o nome de “maldição do sexo” – e da morte, poderíamos acrescentar, já que eles são indissociáveis. Essa “maldição” consiste no fato de que, desde que fomos desnaturalizados pela linguagem, nossa sexualidade não é mais regulada pelo instinto – que é regido pela necessidade de procriação tendo em vista a preservação da espécie –, mas sim pela lei insensata que cria as relações de parentesco e junto com elas as proibições e tabus sexuais. Essa lei é insensata porque ela é antinatural e arbitrária; daí a variedade com a qual ela se apresenta ao longo da história, e nas diferentes culturas. A religião, que não deixa de ser uma resposta diante da angústia de nos sabermos mortais, também é uma invenção humana que cria obrigações e interdições em relação à sexualidade. Nessas alturas, imagino que já tenha ficado claro que desejo e interdição são irmãos gêmeos concebidos no mesmo ato! Alguns também já devem ter suspeitado que, se nossa sexualidade é por definição, desnaturalizada, esse negócio de “papai e mamãe” não passa mesmo de uma novela de época.

Para ser mais explícita, a verdade é que nossa civilização é sustentada por um conflito que jamais será totalmente resolvido, entre, por um lado, nossa sexualidade ingovernável, e por outro as tentativas de governá-la. Qualquer projeto de “educação sexual” que pretenda governar o ingovernável, sem levar em conta esse paradoxo, está fadada ao fracasso. Eu mesma estou tendo a experiência de participar de um grupo de trabalho para a produção de um material para prevenção de abuso sexual de crianças com deficiência, e temos nos deparado concretamente com essa dificuldade. A coisa piora ainda mais com a disseminação do discurso oficial de que falar de sexualidade com as crianças, nas escolas, seria uma doutrinação sexual, e não um modo de ajudá-las a se defender de situações violentas. Ao contrário, transmitir para as crianças e adolescentes que é normal explorar o próprio corpo, que inclusive é importante conhecê-lo, bem como reconhecer suas várias manifestações de prazer e desprazer, e que é igualmente normal ter curiosidade em relação ao corpo do outro é o primeiro passo para o reconhecimento de situações desconfortáveis e abusivas, e de que é possível falar que não, para quem quer que seja, e pedir ajuda quando necessário.

Assim, se Freud estiver certo sobre a sexualidade humana – e nossa experiência de escuta clínica atesta que sim – é possível extrair pelo menos duas conclusões: A primeira é que qualquer tentativa de impedir, reprimir, negar, punir, restringir e governar a sexualidade não apenas é inútil e fadada ao fracasso, como desnecessária. O recalque está em nós! Por mais que tentemos, nunca conseguiremos uma satisfação completa; sempre haverá uma falta e, portanto, uma busca. Grande parte dos problemas das relações afetivas e sexuais que tratamos em nossos divãs envolve esse paradoxo. Aliás, aqui é importante nos lembrarmos da contribuição de Marcuse, que entende que, para além dos discursos mais ou menos repressores sobre a sexualidade, aquilo que realmente produz um “a mais” de repressão – além do recalque estrutural que nos constitui enquanto seres civilizados – chama-se capitalismo. O fato de nossos corpos irem aos poucos sendo transformados em máquinas de produção e consumo tem um efeito muito mais eficaz – porque atinge em cheio o tesão, o vigor e a disposição – do que qualquer blá blá blá religioso, que pode fazer o sujeito entrar na lógica do crime e castigo, com graves consequências, mas dificilmente evitará que a pulsão cumpra um de seus destinos. A segunda é que, qualquer tentativa de combater o excesso de repressão com imperativos do tipo “Goze!” vai inexoravelmente provocar uma reação contrária e, embora pareça contraditório, isso ocorre pelo mesmo motivo: tanto quanto nossos impulsos e fantasias sexuais, que teimam em desobedecer nossa moral e nossos bons costumes, o recalque tende a se recrudescer quando se sente ameaçado. A tal da “mais repressão” é uma espécie de monstro que se alimenta de imperativos. Sabe aquele branco que dá na hora da prova quando você “tem que” lembrar? Com o tesão é igual! As “impotências” masculinas e a frigidez estão aí para comprová-lo.

Em resumo, podemos dizer, a partir da psicanálise, que a “mais repressão” sempre irá programar a transgressão – expressa em sintomas e atos inconscientes e inconsequentes como prática de sexo inseguro, colocar-se em situações de risco, gravidez precoce, abusos sexuais, etc. – e que a resposta pela via do imperativo tende a programar a inibição e, na pior das hipóteses, o impedimento que em alguns casos ganha contornos violentos – impotências, vícios em pornografia, celibatários voluntários ou ditos involuntários, homofobia, misoginia, frigidez, workaholics, etc. Em suma, sujeitos que fazem de tudo para não transar.

Desse ponto de vista, a proposta do atual governo seria apenas grotesca, não fosse a gravidade do contexto no qual ela se coloca. É notável que não se trate de uma campanha isolada, mas de um projeto de poder fundamentalista, misógino, racista e neoliberal muito bem articulado e planejado. Ora, se pensarmos bem, o direito de ir e vir, o direito à saúde e ao lazer, o direito a não ter sua casa e seu corpo invadidos, etc. é válido para quem? Por outro lado, a proibição ao aborto, às drogas, e agora ao sexo, é válida para quem? Que tipo de “não dito” está por traz desse novo imperativo: Abstenham-se?! Que classe social, que raça, que sexo, que gênero vocês acham que será alvo desse imperativo cruel e antiético? Quem será culpada (sim, no feminino) se desobedecer à nova ordem? Que tipo de moral virá depois? O que a Sra. Damares sugere que esses jovens façam, no lugar de transar? Já que está bem claro que eles tampouco podem ir aos bailes nos bairros e comunidades, uma das únicas alternativas de diversão para quem não tem passe livre pela cidade? Que rezem? Ou que vão entregar pizza nas festinhas liberadas de outros jovens para quem vale tudo?

Frente a esse projeto nefasto e devastador que vem sendo implantado pelas forças ocultas que tomaram o poder em nosso país, está mais do que na hora de despertarmos do sono da razão com um desejo decidido, e usarmos nossa libido e inteligência para combater as verdadeiras causas disso que está nos deixando doentes, tristes, amedrontados, cansados, desanimados, apáticos, atordoados, cúmplices. Em uma palavra: sem tesão. Para tanto, vamos precisar inventar respostas bem mais ousadas e eficazes do que gritar “que transem!” nas redes sociais.

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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