O que representa Bolsonaro no mundo capitalista
por Michel Aires de Souza Dias
O filósofo alemão Theodor Adorno (1978, p. 85-6) em seu artigo – A massa, afirmou que “os horrores que hoje ameaçam o nosso mundo não são produzidos pelas massas, mas por tudo aquilo e por todos aqueles que se servem das massas, depois de terem-nas engendrados.” Podemos seguramente afirmar que Bolsonaro é um desses engenheiros da alma que se servem das massas para manipulá-las. Contudo, não se trata de um tocador de flauta que conduz as massas a seu bel prazer. Ele não representa o demagogo solitário na sociedade que emprega de modo deliberado instrumentos técnicos de persuasão para obter a adesão das massas. Ele também não é um louco ou líder messiânico que consegue penetrar no comportamento e na vida psíquica dos indivíduos. Na verdade, ele está a serviço de certos grupos e representa um desses “expoentes de forças e interesses sociais mais poderosos, que conseguem predominar contra as massas e com a ajuda destas” (ADORNO, 1978, p.86).
Não há dúvida a que forças e interesses sociais Bolsonaro serve. Como uma espécie de operador do mercado e do capital financeiro, ele está a serviço de uma coalizão financeira-rentista, de burguesia agrária e da tecnoburocracia empresarial. Com seu trabalho sujo, ele e seu séquito de políticos “preparam o terreno para o livre fluxo do capital transnacional, cujos líderes, globais e locais, são os verdadeiros senhores do poder e que os eliminarão de cena tão logo se tornem desnecessários” (ROLNIK, 2018).
Nessa distopia globalizada, Bolsonaro representa um dos capangas do capitalismo financeiro, para usar uma expressão de Rolnik. A palavra capanga na moderna teoria social pode ser entendida como “racket”. Bolsonaro é um racket. A palavra racket vem da linguagem coloquial americana e significa o estado de extorsão ou melhor dizendo o grupo que extorque. Segundo Regatiere, a história da palavra mostra que onde quer que ela apareça no desenvolvimento das línguas, ela se refere ao uso da força. Entre os significados que mencionam está o de alongamento, que teria dado nome ao instrumento medieval de tortura denominado rack, em português era chamado potro ou cavalete. Foi em Chicago que a palavra adquiriu o significado criminal. Foi em 1890 que a palavra aparece nos registros legais da Corte Municipal dessa cidade, definindo o termo como associação criminosa. O termo se referia naquela época a aliança entre homens de negócios, líderes sindicais, políticos e figuras do submundo que buscam obter controle em certas atividades econômicas. É uma forma organizada para exploração. O termo também aparece ligado as máfias organizadas em torno do contrabando de bebidas, ocasionada pela queda de demanda com a crise econômica de 1929.
Adorno e Horkheimer nos anos de 1940 sempre acompanharam as discussões em torno dos racktes e com isso passaram a delinear uma teoria sobre eles. Em seus estudos, eles começaram a compreender que a sociedade contemporânea estava se modificando enquanto estrutura de classe. Entre as classes sociais surgia uma multiplicidade de grupos organizados que estavam a serviço de elites burocráticas e cujos membros se tornaram cada vez mais dependentes. Esses grupos agiam como “racktes”, ou seja, como um bando de gangster bem organizados que se comportavam de acordo com o princípio de proteção em busca de obediência. Assim como as máfias faziam, abordando de surpresa os comerciantes e oferecendo proteção a eles mediante pagamento. Havia um princípio análogo na prática organizativa de grupos de interesse. Neles, via de regra, os economicamente mais fortes ou mais inescrupulosos dão o tom e fazem valer seus interesses particulares e de seus membros (FETSCHER apud REGATIERE, 2019).
Segundo Regatiere (2019), Horkheimer e Adorno começaram a empregar o termo racket para designar um mecanismo de constituição e atuação de grupos que defendem seus interesses diante de outros grupos, reconhecendo e protegendo seus membros. São grupos que estão sempre em conflitos com outros grupos pela apropriação de bens. Esses grupos usam a competição, o roubo, as fraudes e até mesmo a guerra para atingir seus objetivos. O padrão dos rackets deveria servir para expor o modo de funcionamento da sociedade monopolista constituída por grupos detentores de poder econômico e político. Cada um deles, “exerce uma função específica no processo social e usa essa função para obter uma parcela tão grande quanto possível de poder sobre as pessoas, bens e serviços” (HORKHEIMER apud REGATIERE, 2019, p. 146).
Como avalia a professora Olgária Matos (2008, p.149), “a modernidade capitalista não se dá mais a conhecer através de classes sociais e suas formas de organização, solidariedade, ethos e valores, mas encontra-se a margem da lei, como se constata nas práticas dos grupos, cliques ou gangues – os rackets.” Eles se constituem como especialistas, managers de todo tipo, dirigentes, políticos, engenheiros altamente qualificados, advogados, líderes empresariais e todo tipo de predador que busca defender seus interesses e dos grupos sociais que representam. Adorno descreveu a figura dos rackts na sociedade em uma passagem de Minima Moralia:
Se, como ensina uma teoria contemporânea, a sociedade é uma sociedade de rackts, então o seu modelo mais fiel é justamente o contrário do coletivo, a saber, o indivíduo como mônada. Na prossecução dos interesses absolutamente particulares de cada indivíduo é onde se pode estudar com maior precisão a essência do coletivo na sociedade falsa; e pouco falta para que, desde o princípio, se deva conceber a organização dos impulsos divergentes sob o primado do eu ajustado à realidade como uma íntima quadrilha de bandidos com chefe, séquito, cerimonial, juramentos, traições, conflitos de interesses, intrigas e tudo o mais (ADORNO, 2001, p.35).
Os rackets são indivíduos que mimetizam a realidade e se ajustam a ela de tal forma que suas atitudes e emoções são sempre violentas. Eles agem de forma enérgica em busca de seus objetivos. Essa é uma característica de Bolsonaro que representa a forma mais acabada de racket. Como átomo isolado, determinado pela totalidade reificada, ele reflete a imagem do mercado como rapinagem e exploração. Como sujeito agressivo, que se adapta ao ambiente opressivo de seu meio, ele personifica o princípio opressor da sociedade. Com isso, aquilo que parece representar o mais individual, na verdade representa o mais geral. (ADORNO, 2001).
A serviço do capitalismo financeiro, como um verdadeiro Racket, o papel de Bolsonaro é o desmonte do Estado-Nação, que liquida o pacto-social da constituição cidadã de 1988 e subjuga o Brasil as forças imperialistas. Com isso, coloca o Estado a serviço das políticas neoliberais, que buscam desregulamentar o mercado de trabalho, desnacionalizar os serviços públicos, enfraquecer os sindicatos, entregar a previdência social aos bancos, privatizar a educação e a saúde públicas, e reduzir o papel do Estado na economia. Como avalia a psicanalista Rolnik (2018), o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes temporariamente no poder. São como seus capangas que se incumbirão do trabalho sujo imprescindível para a instalação de um Estado neoliberal: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – entre os quais, prioritariamente, as esquerdas em todos os seus matizes.
Referências
ADORNO, Theodor Wiesengrund. Minima moralia. Lisboa: Edições 70, 2001.
ADORNO, Theodor Wiesengrund e HORKHEIMER, Max. A massa. In: ADORNO, Theodor Wiesengrund e HORKHEIMER, Max. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1978, p.78-92.
MATOS, Olgária Chain Feres. Transparência. In: AVRITZER, Leonardo et al. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
REGATIERE, Ricardo Pagliuso. Capitalismo sem peias: a crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do esclarecimento. São Paulo: Humanitas: FAPESP, 2019.
ROLNIK, Suely. A nova modalidade de golpe: um seriado em três temporadas. In: Esferas da insurreição. São Paulo: n-1, 2018. P.146-193.
Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
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