O simbólico e o abismo: ou porque devemos temer a destruição da Lava a Jato
por Fernando Horta
Desde 2013, houve um trabalho simbólico no Brasil para deslocar Lula, Dilma, o PT e toda a esquerda da posição que tinham alcançado pelos feitos de seus governos. O desespero das classes mais altas e dos grandes empresários e capitalistas no Brasil tinha um pé na questão material, em função da valorização constante da mão de obra e outro no simbólico, enquanto se cristalizava na mente da imensa maioria dos brasileiros o fato – inconteste – de que tinham sido os governos do PT – é somente nos governo do PT – que a fome tinha acabado e a desigualdade diminuído sensivelmente.
Era inegável que para a imensa maioria da população o PT havia prometido E ENTREGADO um país menos injusto e com oportunidades que, apesar de continuarem não sendo iguais, eram sim, muito mais equitativas socialmente do que tinham sido nos 500 anos de história deste país. O PT fez um brilhante trabalho de mudar a realidade da maioria das pessoas em termos que elas cristalizavam como positivo. Não foi à toa que venceu quatro eleições seguidas para a presidência e teria vencido uma quinta não fosse o conluio do ex-juiz com o ex (com sorte!) procurador.
Houve um ataque coordenado sobre este consenso simbólico. Nas classes populares a teologia da prosperidade se apropriava indevidamente dos benefícios materiais dos governos de esquerda, colocando “Deus” no lugar das políticas de governo e aproveitando-se da lucratividade do engodo mágico-religioso se materializar pelas políticas de redução da pobreza. Estas seitas de neopentecostais devem a sua existência aos governos de esquerda e deverão o seu fim ao ressurgimento do ciclo neoliberal que ajudaram a recriar.
Para a classe média, ressentida por ter comparativamente menos ganhos que os mais pobres, retomou-se o preconceito, racismo e um liberalismo torto que se baseia na apropriação da noção de ética como espelho do pensamento individualista e elitista. Um juiz e um procurador aliciarem estudantes, empresários e mídia para lucrar com palestras é algo possível. Um torneiro mecânico enriquecer lícita e declaradamente com o fruto da construção política de suas ações é inaceitável e criminalizado. Reconfiguração de um conceito torpe de “ética” baseado na ideia do combate A QUALQUER CUSTO aos governos populares aproximou as populações do ideário fascista, e os liberais (como os do PSDB) não entenderam a tempo que estavam se destruindo em vez de destruírem a esquerda. O sumiço da força política do partido de FHC e a eleição de Bolsonaro são prova inconteste disto.
Agora, por intervenção de um jornalismo investigativo de verdade neste país, coisa que possivelmente nunca tivemos, a história foi adiantada em 10 ou 15 anos. O que antes caberia “à História” desvendar, como diziam as manifestações e preces da esquerda durante todos os processos golpistas, ficaram armazenadas em algum celular de um membro de consciência pesada do MP que certamente vazou para o jornalista norte-americano Greenwald. O castelo de cartas cuidadosamente montado no Brasil desde 2008 vem caindo, uma a uma, através da estratégia bem-sucedida do The Intercept. O objetivo dos jornalistas não é provar juridicamente os crimes de Moro, Dallagnol e da farsa da Lava a Jato, eis que sabem que dentro de uma espiral fascista como o Brasil vive, as instituições estão totalmente contaminadas e já quase corrompidas. O que busca o The Intercept é o que a esquerda como um todo, e o PT como partido, deveriam ter feito quando ainda detinham o poder de governo e nunca fizeram: criar uma narrativa que reorganize o simbólico na vida da maioria da população.
Greenwald é a quintessência do jornalismo do século XXI. Um jornalismo que não se preocupa com as manchetes de primeira capa, mas que preza a alteração sensível dos padrões de entendimento pelo uso constante e organizado da informação que eles detém. Num sistema de racionalidade amortecida e quase morta, os choques das primeiras páginas e manchetes se perde pela constante cantilena dos cultos, dos blogs e dos jornais noturnos de notícias. Destruir mitos é um trabalho lento e muito perigoso.
É aqui que eu gostaria de sua atenção. Para uma parte significativa de pessoas no país, Lula foi deslocado da posição de liderança benevolente e capaz e no lugar foi colocado esta coisa abstrata chamada “Lava a Jato”. A destruição no campo do simbólico desta nova entidade que ocupava os locais de modelo de atuação, de valores sócio-políticos e de janela para o futuro deixará um numeroso grupo de pessoas órfãs. Esta experiência é bem descrita ao longo da História. Os Incas e os Aztecas, quando confrontados pelos espanhóis que vinha do mar tiveram grande dificuldade de combatê-los, pois os habitantes do novo mundo tinham os seres que desembarcavam em navios como “deuses”. A nobreza europeia da “Belle époque” levou quase 100 anos (1789-1870) para se ressignificar e aceitar os efeitos das revoluções burguesas como exemplo de nova sociedade. Mesmo na antiga URSS, os comunistas não conseguiram apagar a figura do “grande pai”, que os czares representavam, e entenderam melhor para o esforço da segunda guerra que este posto fosse reocupado pela construção de um Stalin.
O que quero dizer é que a destruição da Lava a Jato como lugar simbólico de valores benevolentes, práticas corretas e possibilidade de futuro, vai trazer muita violência ao país. Não estou aqui tratando da correção das ações que devem ser tomadas contra os crimes de Moro e Dallagnol. Falo do resultado incontornável da destruição de um símbolo proto-fascista que embalou a sociedade brasileira pelos últimos quatro anos. Javert, no livro “Les Miserables”, quando confrontado com a ruptura de seu mundo simbólico, protagoniza o momento mais crítico de introspecção do romance. Se Jean Valjean poderia, mesmo tendo incorrido em crimes, ser virtuoso e inocente deles, então ele, Javert, era o criminoso. E o tinha sido por todo o tempo. Espremido entre o mundo simbólico do certo e do errado como categorias estanques e a realidade crua que lhe batia na face, o personagem se suicida, eis que seu mundo se esfacelava e levava junto sua consciência, que se entendia acima de tudo como “justa”.
No romance de Vitor Hugo, o tempo é o senhor da mudança e os atores resignam-se por força de sua inteligência, vivência ou inexorabilidade existencial. Na vida real, temo que uma parte significativa dos apoiadores da Lava a Jato prefiram ver um país com sangue nas ruas do que reconhecer que estiveram errados e enganados por mais de quatro anos. Especialmente autoridades do judiciário e militares. E creio que eles jogarão o país num regime de ainda maior violência, autoritarismo e ruptura institucional para salvarem suas consciências, seu mundo simbólico e seus mitos. Se é verdade que o homem é dependente da materialidade, como mostra Marx no século XIX, o século XX afirma e reafirma que nossa estrutura de compreensão desta realidade é simbólica, é narrativa, é subjetiva e nos é vital.
Ninguém aceita pacificamente a morte dos seus deuses. Ainda mais aqueles que lucram, vivem e se diferenciam socialmente do resto pela existência deste mundo simbólico. A Lava a Jato destruiu uma parte do Brasil para poder existir e vai destruir outra parte ainda maior quando for desmascarada.
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Na verdade, não acho que se deve temer a ruína da operação Lesa-Pátria porque os que são seus fanáticos defensores se sustentam apenas do silêncio da maioria.
Para mim, o problema não é a queda da farsa ou a orfandade dos incautos porque as pessoas que o articulista considera que idolatram a operação, por de fato acreditarem na sua lisura, são poucos; a maioria o faz por oportunismo e por conveniência para representar seus interesses de classe e de manutenção do país sob o jugo do conservadorismo hipócrita tão bem descrito por Nelson Rodrigues e tantos outros.
O que considero de fato o problema é não é a crença na operação, que não resistirá aos fatos revelados, mas a consagração do álibi do combate à corrupção num país em que muitos sobrevivem do jeitinho, portanto, a hipocrisia covarde, o espírito de caça às bruxas, típico de momentos históricos como a Inquisição, o nazismo, o fascismo, o macartismo, o stalinismo, e outros pretextos fundamentalistas para a eliminação do inimigo e a instauração da bárbarie como solução final. E isso aqui hoje atende pelo nome de antipetismo, e continua forte porque o partido está fatigado e com seu líder preso por uma operação internacional de destruição nacional, não há esquerdas no país em condições de fazer a disputa – estão todas cansadas das guerras acumuladas; em fase de mudança geracional cheia de vácuos, esta aparentemente ignorada como projeto político concertado entre partidos e movimentos sociais, o que dá espaço para todo tipo de oportunistas…; dispersas por suas próprias crises (partidos como PCdoB, PSB, a tentativa de criação da Rede, todos em crise de identidade ou descaracterizados antes ainda de se firmar como alternativa à esquerda) e pelo tiro no pé que deram muitos (PSOL, os movimentos de rua de 2013) ao entrar em conflito com o PT sem terem seus próprios projetos de país, de mobilização popular e exercício do poder definidos, onde se viram depois no dilema de fazer a contraposição dentro da Grande e desconhecida Esquerda, e se opor ao Golpe, o que no conjunto da obra coloca as esquerdas em ponto morto, tentando entender o que houve com o país e consigo próprias, e se reposicionar umas em relação às outras e no cenário político nacional totalmente destruído por décadas de escândalos e más administrações, tendenciosidade da mídiabutre, ataques do capital em forma de sabotagem de governos populares e cooptação via financiamento de campanhas, burocratização de quase todos os partidos e movimentos sociais que mantinham alguma confiança do povo de que a política era algo mais que o bode expiatório de todas as mazelas da sociedade. Essa é a nossa crise. A maior de todas. Como recuperar a confiança das pessoas, restabelecer a verdade dos fatos, isolar os fanáticos – dentre os quais, uma minoria o é por convicção, rs; a maioria é gangue financiada por dinheiro de mercadores da desgraça -, promover a repactuação (e não conciliação) social em torno de valores e projetos nacionais minimamente civilizados concordar sobre as regras comuns a todos e não jogar junto. O problema não são os picaretas havan e donos de bordéu, ou os fanáticos amarelos manipulados que de fato são os entusiastas da operação antinacional (este pessoal odeia o Brasil e a forçação de barra em ostentar símbolos nacionais trai um profundo ressentimento com o que o país de fato é) mas a maioria que decidiu a eleição ao escolher não ir votar; aqueles que votam no “quanto pior, melhor” ou em figuras caricatas (“pior que tá não fica”), aqueles que perderam a fé no país e em si mesmos. E nisso a cultura (o esporte já foi fator de orgulho, de identidade e comunhão nacional, agora é só mais uma parte da farsa; veremos nas Olimpíadas…) e a comunicação são fundamentais: a Globélica já é rejeitada por número crescente de pessoas, mas o problema é sempre: quem ocupa o vácuo? Não tenho visto as esquerdas, pelos motivos expostos e muitos outros, organizadas para isso, para oferecer ao povo não apenas narrativas mas um projeto de país a longo prazo que o recupere não apenas na economia mas na sua soberania integral que inclui a sua identidade e a sua autoestima, e a capacidade de autocompreensão e de participação destemida na construção nacional – para o quê, votar ou se recusar a fazê-lo, é um sinal importante de vitalidade democrática; por isso, entender os que escolheram abstenção em 2018 e não reagem ao caos é fundamental para saber o que estamos nos tornando como sociedade.
Infelizmente, depois de muito recusar o derrotismo de colegas e amigo – para eles, é realismo, sou obrigada a admitir a minha derrota: não acredito que sairemos disso tão cedo porque nunca vi em 30 anos – contando a partir da idade em que tomei conhecimento do mundo fora de meu círculo individual, a adolescência – um país tão amortecido, tão sem alma, sem temas e pessoas unificadores de algum sentimento de identificação social e de civilidade pacífica: o maior crime que cometeram contra o Brasil e contra o Lula não foi este palerma preguiçoso – a confirmar o que outro pilantra me disse um dia, em tom de ameaça, de que “serviço público não é para quem trabalha” – do falso pastor, negociando migalhas e faturando merreca de pacote de lazer em parque aquático (5 mil para quem ganha 30 mil ou 400 mil com palestras é se sujar por muito pouco, um ladrão por convicção e não por ambição, rs; acabei de pensar se ele se vestiu de pato amarelo para brincar no tobogã…) – mas a tentativa de destruição do símbolo de auto-estima popular do país, de fermentarem entre nós ódios e dissensões que envenenaram o tecido social não pelos fascistas envergonhados que saíram do esgoto e que sempre foram a origem e motivação, na moita, de nossas desigualdades e apartheid social, mas por terem mobilizado, ou desmobilizado, os pacatos, os simples, os comuns, os que se cala(ra)m diante da barbárie ou engrossa(ra)m o coro dos ignorantes apenas por terem sido (g)lobotomizados – desde a retórica globélica de criminalização das esquerdas, do PT, seus líderes, dos movimentos sociais progressistas de esquerda até a cooptação do povo pelo credo neoliberal na ideologia de suas novelas e entretenimento (o que é o tal caldeirão se não um festival de adestramento neoliberal descarado, com sua meritocracia de auditório?), de seus patrocinadores e de seu pseudojornalismo: não podemos esquecer que a Globélica é uma máquina ideológica ininterrupta e subliminar e não apenas no jornal antinacional, onde é mais explícita e arrogante; e falo da Globélica porque as outras emissoras não têm seu alcance geográfico nem sua condição de porta-voz do pensamento nacional, nem sua estabilidade como produto audiovisual e ideológico na visão da maioria das pessoas.
Será um trabalho longo de reconstrução nacional. As fendas e feridas abertas pelo conluio golpista não se fecharão do dia para a noite – basta ver o que viraram países invadidos pelos USA em todo o mundo, USA que são o grande planejador por detrás do Golpe e sem os quais este não teria acontecido nem estaria em pleno andamento. A operação lesa-pátria, as elites nacionais e institucionais do judiciário, legislativo e do sistema financeiro foram apenas os executores, ora conscientes ora manipulados, da vontade do falcão do norte, um carcará metido a besta, a quem o único líder capaz de enfrentar e vencer, Lula, está preso sem qualquer reação decente de ruas ou redes ou do maldito stf para que seja solto PELA SIMPLES APLICAÇÃO DA LEI e não por politicagem, bando de fdp.
Estamos mortos como país e como sociedade, admito com tristeza.
E espero que um dia a ressurreição seja possível.
Chico Buarque e João do Vale – “Carcará” (1982)
https://www.youtube.com/watch?v=4L0DInKUnzc
Sampa/SP, 16/07/2019 – 23:40
Ambos os textos o de Cristiane e o de Fernando dão uma dimensão do que está a nossa frente. Para matar Lula precisavam sobretudo matá-lo simbólicamente. Soltaram todos os monstros da caixa de Pandora, e os que tinham a chave acreditavam ter controle. Os monstros tomaram conta, e tanto fizeram até que cada alma dentro deste país se sentiu sozinha. Todos ao redor são suspeitos, e a solidariedade é culpada de tudo. A mensagem central é políticas solidárias são criminosas. Os espoliadores espertos que não controlam, mas surfam nas ruínas deste vandalismo vão lucrando com a ideologia do eu sozinho, a quem denominam de liberal Marcham ao lado, destruindo materialmente o país, mas usando como símbolo o indivíduo. Abriram a caixa de Pandora e pouco se importam com as consequências desde que lhes rendam lucro. Alguns dos que abriram foram deglutidos pelos monstros que embora pareçam dóceis ao obedecer seus donos, já beberam o sangue e o poder. Não vão parar até que tudo seja apenas ruínas. Não sobrará nem mesmo para a ganância. Como diz o monstro de plantão, estou fazendo uma ‘quimioterapia’.