Pensando bem, Toffoli tem razão: devemos desidratar a Constituição, por Lenio Luiz Streck

do ConJur

Pensando bem, Toffoli tem razão: devemos desidratar a Constituição

por Lenio Luiz Streck

Leio na ConJur que [o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias] “Toffoli diz ser preciso ‘desidratar’ a Constituição para destravar a economia”.

E aí pensei no seguinte:

Talvez, o ministro Dias Toffoli tenha razão. Talvez só nos reste mesmo desidratar a Constituição. E sabem por que faço essa assertiva absolutamente paradoxal?

Explico. Devemos desidratar a Constituição porque ela é boa demais. Ela exigiu — e já digo isso usando o verbo no passado — demais de nós. A Constituição de 1988, como dizem famosos e não famosos juristas, concedeu direitos demais. Parte do baixo clero jurídico chega a dizer que a Constituição deu deveres de menos. Enfim…

Ocorre que as pessoas esquecem que, ao “dar direitos”, a Constituição constitui. Ela obriga. Ela constitui-a-ação, como escrevi há 25 anos. Porque traz junto desses direitos as responsabilidades que eles impõem.

A Constituição exige que sejamos uma democracia. Mesmo que não queiramos. Exige que cumpramos o que o país escolheu prometer.

Nossa Constituição exige cidadania. Exige de nós que saibamos respeitar o Estado Democrático de Direito. Tudo isso está interligado. É triste, mas eu repito o que venho dizendo junto com autores como Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni: a Constituição está sendo erodida.

É exatamente por isso que me permito afirmar: a Constituição exigiu demais dos juristas e políticos brasileiros. Ouso dizer, tristemente, que não fomos e não somos merecedores desta Constituição.

A CF/88 exigiu algo que não tínhamos e não temos. Para entender melhor o que quero dizer, recorro ao Os Irmãos Karamazov, em que Dostoiévski apresenta a fábula d’O Grande Inquisidor, na qual Ivan Karamazov conta a seu irmão mais jovem, Alyosha, uma fábula segundo a qual Jesus Cristo volta à Terra e é preso pela Inquisição. No cárcere, o grande Inquisidor diz a seu ilustre prisioneiro que “resistir às tentações do Mal em seu período no deserto foi sua ruína”. “Você exigiu demais de nós”.

Ao resistir — diz o Inquisidor a Jesus — “você também passou a exigir demais do homem, incapaz de resistir às tentações da mesma maneira”. Segundo o Grande Inquisidor, o homem é fraco, incapaz de oferecer qualquer resistência quando é tentado (uma confissão: quando estou meio down, releio esse texto — é tão denso; profundo; lancinante; já tentei ler para uma plateia e não consegui chegar até o final, pela emoção que o texto exala).

Lendo que devemos desidratar a nossa Constituição, tenho a convicção de que fomos incapazes de resistir às tentações advindas de um direito menor, dos moralismos, dos punitivismos e quejandos. Não fomos fortes.

Não resistimos às teses pragmatistas tipo “os fins justificam os meios”. Como disse o Grande Inquisidor a Jesus, parecemos incapazes de resistir às tentações que nos são constantemente apresentadas.

Daí minha ousadia em afirmar: Sim, ministro Toffoli, temos de desidratar a Constituição… porque não fomos ortodoxos na sua aplicação. Fomos e somos lenientes. Eis os ingredientes para essa tempestade perfeita:

i) O voluntarismo interpretativo, o pamprincipiologismo e coisas do gênero;

ii) O realismo retrô, que relegou a doutrina a um segundo plano;

iii) Um constitucionalismo de efetividade (sic) que gerou um neoconstitucionalismo irresponsável;

iv) Um dualismo metodológico que coloca a normatividade em segundo plano (fazendo valer mais a tal “voz das ruas”, e seus moralismos afins);

v) Uma dogmática jurídica tosca, sem sofisticação teórica, que respira por aparelhos em livros que glosam decisões judiciais e fazem resumos de resumos;

vi) A moralização do Direito (que ao mesmo tempo o desmoraliza, no sentido ruim da palavra); e

vii) O ensino jurídico estandartizado, que jogou no mercado uma multidão de pessoas com formação deficiente (afinal, assim como no Parlamento, também existe o “baixo clero” jurídico), aliado a um equivocado modelo de concursos públicos, sobre o qual já escrevi à saciedade.

Pronto. Eis a receita para o fracasso da Constituição mais rica já produzida no século XX. Não fomos fortes o suficiente para construir as condições para a superação dos obstáculos. “Juristas de pouca fé”, se me permitem a alegoria.

Eis a receita que, paradoxalmente ou não, dá razão ao ministro Dias Toffoli. A comunidade jurídica não é merecedora da Constituição. Talvez precisemos de uma bem magrinha, desidratada, esquálida. Talvez como a de 1969, que era extensa, mas sem direitos.

Nós não temos o que a Constituição exigiu de nós. Não fomos capazes de, em 30 anos, colocar-nos à altura das exigências constitucionais. Hoje não temos condições nem de afirmar, com segurança, que os julgamentos têm de ser imparciais. Poxa. Trinta anos de Constituição e parcela considerável da comunidade jurídica acha normal que existiam relações não-republicanas entre juiz e acusação.

Sim, a Constituição exigiu demais. Formamos uma multidão de pessoas que hoje desdenham da Constituição. O processo penal e civil, de condição de possibilidade, virou obstáculo e inimigo. Até onde chegamos…

Falhamos por não saber ler e compreender o sentido da Constituição, quando nos diz claramente que o Brasil é uma República que visa a reduzir a pobreza, fazer justiça social… Isso é demais para um país como o Brasil.

Talvez seja por isso que, aos olhos do Ministro, só nos resta desidratar a Carta. Faço essa interpretação propositiva de sua fala. Tenho de acreditar que ele disse isso como uma crítica — ou uma ironia — à inefetividade de nossa Constituição. Sou um jurista de fé.

Se for isso, estamos juntos. De minha parte, eu não desisto. Desidratar o que nosso Direito produziu de melhor até hoje não é a saída. Fazer isso é capitular diante dessa mesma sanha autoritária que organiza uma cruzada anti-institucional. Insisto: do modo como estamos “levando” o Direito e a Constituição, é possível dizer que, fossemos médicos, estaríamos fazendo passeatas contra vacinas e antibióticos. Médicos contra remédios, juristas contra direitos. Paradoxo dos paradoxos.

A saída? É estar à altura do que a Constituição exige de nós.

Não desidratemos a Constituição. Tenhamos a coragem de elevar-nos à altura daquilo que ela exige de nós.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Redação

Redação

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  • Caro Dr. Lenio Streck, Excelente análise, observações e apelo à cidadania e meditação dos cidadãos brasileiros, com foco na Constituição que possuem. No entanto, é possível, que a maioria dessas pessoas e autoridades que a desrespeitam e, pelejam pela sua desvalorização, nem sabem que o seu Preâmbulo, diz e afirma que: Esta CF da RF do Brasil, "foi Promulgada sob a Proteção de Deus".
    Brasileiros, por seu interesse, de sua comunidade, de seu município, de seu Estado e de seu país, leiam pelo menos, os 07 primeiros Artigos das Constituições Federal e Estaduais e da Lei Orgânica de seu Município.
    Quando quiserem reclamar, cobrar e avaliarem governantes e governos, parlamentares (Vereadores, Dep.Estaduais, Dep. Federais e Senadores), por infidelidade ao povo, que é o dono do Poder, de acordo com o Parágrafo Único do Artigo 1° da CF; por mal comportamento; por falta de ética; por má gestão dos recursos públicos e/ou omissão de das instituições de Fiscalização e Controle Interno e Externo Artigo 70 da CF; Etc.
    Façam tudo isso, para a correta e conforme implementação das Políticas Públicas, de interesse do povo e da nação, com foco e amparado no que diz e recomenda, principalmente, o Artigo 3° da Constituição Federal.
    Diz ele:"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
    I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
    II - garantir o desenvolvimento nacional;
    III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
    IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, e quaisquer outras formas de discriminação.
    Boa leitura e aprendizado e boas práticas de cidadania pelo bem do Brasil.
    É essa a nossa contribuição a minimização do analfabetismo político e cidadã, de quem interesse aprender certo, para mudar o comportamento e ajudar a mudar de forma responsável, o Brasil, para o bem de todos os brasileiros, das gerações atuais e futuras, igualmente.
    https://jornalggn.com.br/brasil/links-para-a-historia-do-brasil-de-1894-a-2018/
    https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,cinco-anos-apos-o-inicio-da-recessao-nenhum-setor-voltou-ao-nivel-pre-crise,70002835508

    Sebastião Farias
    Um brasileiro nordestinamazônida

  • Lenio Streck, a Lava Jato tem feito um grande serviço à nação, em que pese fazê-lo pela destruição da mesma, ela fez com que muitos juristas e advogados perdessem o pudor e começassem a mostrar publicamente o desrespeito e a antipatia pela Constituição Federal. Com efeito, parece que boa parte dos juristas brasileiros não estão à altura da Carta Magna e, do alto de suas sapiências, dizem que o problema é a Constituição e não homens e mulheres que devem se guiar por ela, todos os dias.

  • Grande texto! Que me enche de uma tristeza indizível. Estou velha, vejo tudo ruir, sinto que vivi e lutei para nada num país desgraçado que, sim, merece o que está tendo. Quando meus sobrinhos anunciam sua intenção de deixar o país (dois já partiram nos últimos dois anos), não tenho mais forças para pedir que fiquem e lutem. Não. Não façam a besteira que eu fiz. A vida é só uma e não vale a pena vivê-la num país que deixa Bolsonaro na presidência e Lula na prisão (pra sintetizar toda a extensão da desgraça que se não apoiamos, permitimos). Sei que há resistência, admiro extremamente quem marcha até Brasília, quem acampa em Curitiba por Lula... Mas são tão poucos. A maioria, mesmo discordando, baixa a cabeça. Eita gado!

  • Extraordinário texto, em que mostrou como a classe privilegiada pretende escravizar, de vez, o povo trabalhador e mais pobre de nosso País. Bastam princípios e não leis, para demolir os valores humanos. É o que pensam. Mas estão enganados.
    Estamos, atualmente, destruindo não só a nossa Constituição, de excelência, embora tenha falhas, pois construída por seres humanos. No entanto, destruí-la é uma tarefa, que importa em explodir, de vez, os valores humanos, que não são princípios, mas que são fundamentais para a paz social, para garantir um sociedade pacata e feliz, protegendo a todos, sejam ricos, sejam pobres.

    Vale muito mais, para a sociedade em que vivemos, o que falo com amargura, ter um carro zero na garagem do que a honestidade, a honradez, a dignidade, o trabalho, o respeito às leis e à ordem, a amizade, a compaixão, a solidariedade, enfim a todos os valores humanos importantes, que nos davam a certeza de viver em paz e com muita alegria. O materialismo atual é perigoso para toda a sociedade. Temos que ter sentimentos e viver pensando no ideal.

    Respeitar e cumprir a lei é, acima de tudo, um valor humano, pois nele se pode observar que está a honestidade, a honradez, a dignidade, a compaixão e a solidariedade.

    Desidratar a nossa Constituição Federal é totalmente avesso aos direitos fundamentais do ser humano em nosso País.

    Desidratar a Constituição Federal é declinar que:

    " Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade aos direitos garantidos" (artigo 5º da Constituição Brasileira). Todos os direitos fundamentais estão protegidos e relacionados nos 78 incisos do artigo 5º da Constituição Federal.

    Como desidratar direito como a liberdade de pensamento e expressão, a igualdade de gênero, bem como ainda a liberdade de locomoção?

    Penso que a uma sociedade mais homogênea possível é importante, para assegurar a paz social, principalmente evitando a violência, a crueldade, o ódio, que ainda pairam em nosso País, estes sentimentos e ações, ligados fortemente na sociedade heterogênea.

    Embasado no artigo 5º da CF, ai está o artigo 3º , que nos lega, v. gratia, condições importante para a sociedade homogênea:

    "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
    I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
    II – garantir o desenvolvimento nacional;
    III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
    IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação"

    Princípios ou valores humanos?

    Valores humanos estão fundamentalmente garantidos pela Constituição Federal. Realmente, é muito difícil um governante defender a continuidade da defesa da nosso Constituição.

    Desidratar é a solução? Deixar para trás, para nunca mais, "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"? Ora, não há perigo para os mais ricos, pois a CF defende e garante a propriedade, embora imponha aos proprietários um uso social, como não poder colocar fogo nas matas, o que infelizmente, hoje está acontecendo, máxime na Amazônia.

    No entanto, os mais privilegiados deixam de pensar que a sociedade é um todo, formado pelos mais ricos, por classe média e os mais pobres, até aqueles que se situam abaixo da linha da pobre, onde a fome os estão dizimando. E agora pretendem retirar deles a educação, a saúde, a ação social. Também até o prato de comida, que lhes garante a continuidade da vida. O que pretendem?

    Membros do corporativismo brasileiro, tenham a certeza, desidratar a Constituição Federal não irá garantir que irão sentir-se mais seguros ao andar pelas ruas, onde a violência, a crueldade, o ódio não escolhem a pessoa.

    Todos temos que ter a garantia da paz social. Para que ela seja possível, não é "desidratando" a Constituição Federal que a iremos obtê-la. Temos, sim, que procurar, principalmente o Judiciário, defender os valores humanos, máxime valorizando a educação, tudo é base e suporte da estrutura social e que estão contidos em nossa Constituição.

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