Que América sairá vitoriosa das urnas em novembro?, por Arnaldo Francisco Cardoso

Por Arnaldo Francisco Cardoso

A escolha da senadora Kamala Harris para compor a chapa do democrata Joe Biden à sucessão de Donald Trump na eleição de novembro próximo nos EUA, adicionou densidade política para essa disputa que colocará sob o escrutínio popular – mais que o poderoso cargo de presidente dos Estados Unidos – os próprios fundamentos da nação, inclusive com implicações sobre a política mundial em momento de agudas incertezas.
Tradicionalmente tem pouco impacto a indicação do nome do vice presidente para as eleições presidenciais norte-americanas, mas a singularidade do momento parece ter modificado esse quadro. A confluência dos danosos impactos da pandemia do coronavírus nos EUA – que já matou mais de 170 mil pessoas e lançou a economia numa depressão comparável a dos anos 1930 – com a eclosão de protestos antirracistas por todo o país, reordenou a prioridade de temas na agenda nacional, alçando ao primeiro plano questões como discriminação e violência raciais, situação dos imigrantes, igualdade de gênero, entre outros. É importante lembrar que muitos desses temas ganharam maior intensidade nos últimos quatro anos, em função do discurso e ações do governo sob a presidência de Donald Trump.
As primeiras reações de Trump ao anúncio da escolha de Biden por Kamala Harris endossaram a percepção de inúmeros analistas e de parcela da população quanto a um recorrente teor racista e xenofóbico de declarações do presidente, além de mostrar sua disposição de reiterar uma estratégia diversionista ao tentar desqualificar a candidatura da senadora questionando o status de seus pais como imigrantes.
A hoje senadora eleita em 2016 pelo estado da Califórnia, de 55 anos, negra, nascida em Oakland, filha de um economista jamaicano e de uma pesquisadora indiana da área da saúde, é formada em direito pela Howard University – espaço com tradição nas lutas do movimento negro. Foi Promotora, Procuradora distrital e Procuradora Geral da Califórnia, até ser eleita para o Senado em 2016 onde, dentre outras posições, foi defensora do Medicare, implementado no governo Obama e rejeitado por Trump.
Trump tenta atacar a chapa Biden-Harris associando a ela rótulos de “esquerda radical”, “defesa de impostos mais altos e fronteiras abertas”, “medicina socializada” “defesa do aborto”, apostando assim no confronto e na propagação de mentiras – como um troll, na definição do cientista político Giuliano Da Empoli -, com objetivo de manter elevado o clima de polarização política, com o qual venceu a eleição de 2016.
No último dia 13, em uma entrevista coletiva em Washington, Trump se deparou com uma incômoda pergunta de um jornalista para a qual não teve resposta. O jornalista e correspondente em Washington do jornal britânico HuffPost perguntou a Trump “depois de três anos e meio, você não se arrepende de todas as mentiras que contou ao povo americano?”. (Um banco de dados de checagem de fatos compilado pelo jornal Washington Post, contabiliza mais de 20 mil “declarações falsas ou enganosas” dadas por Trump desde que chegou à Casa Branca).
No recente artigo The Pandemic and Political Order publicado na revista Foreign Affairs, o economista e filósofo Francis Fukuyama, expoente do conservadorismo norte-americano apresentou contundente avaliação sobre o governo de Donald Trump e a situação do país no contexto da pandemia “[…] A sociedade altamente polarizada e seu líder incompetente impediram o estado de funcionar efetivamente. O presidente estimulou a divisão em vez de promover a unidade, politizou a distribuição de ajuda, empurrou a responsabilidade para os governadores em tomada de decisões importantes enquanto encorajava protestos contra eles por proteger a saúde pública e também atacou as instituições internacionais em vez de galvanizá-las”. Lançando um olhar sobre a arena internacional, Fukuyama sentenciou que “os Estados Unidos erraram em sua resposta (epidemiológica) e viram seu prestígio cair enormemente”.
Concernente ao Brasil, esse quadro nos permite inferir que uma vitória de Joe Biden colocará por terra a orientação do Itamaraty sob gestão de Ernesto Araújo, que impôs uma política de apoio personalístico a Donald Trump. Joe Biden é um experiente observador da política internacional, já que, como vice de Obama, foi um arguto conselheiro de política externa. Kamala Harris, em 2019 fez duras críticas em discursos no Senado dirigidas ao governo brasileiro pelo desmatamento e incêndios na Amazônia.
Um resgate da política externa de Estado, orientada pelo interesse nacional, parece ser o único caminho razoável – ainda que hoje improvável – para que o Brasil possa requalificar suas tradicionais e delicadas relações com a potência do norte que, desde os tempos do Barão do Rio Branco – patrono da diplomacia brasileira e aquele que instalou a primeira embaixada do país nos Estados Unidos – sempre requereu tratamento profissional para que a soberania brasileira seja preservada no relacionamento com essa poderosa nação que sempre soube perseguir seus interesses e reconhecer a força ou fraqueza de seus pares.
Diante de uma ordem política internacional em convulsão e de verdadeiras ameaças à liberdade, justiça e prosperidade das nações, uma revitalização e retomada de esforços para o aprofundamento da democracia norte-americana será potencialmente benéfica a todos.
Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político, pesquisador e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Alphaville.
Redação

Redação

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  • Será que daqui a pouco alguém virá dizer que na prática não existe diferença em Joe Biden e Trump ?
    Virá com aquela fundamentação de que não existe diferença entre Republicanos e Democratas etc. etc. etc... Ou não ?

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