Cesar Locatelli
César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.
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Quem dará o golpe no Brasil?, por César Locatelli

“O golpe é sempre, cedo ou tarde, contra o povo, e por este motivo, por este radical motivo, é que as forças populares não devem esmorecer um só instante na luta.”

Quem dará o golpe no Brasil? 

por César Locatelli

A pergunta título, que certamente pode ser formulada em diversos tempos verbais – deu, tem dado, vem dando – tem ocupado parte substantiva da nossa matutação. Colocado da forma usada no título, nos passa uma quase certeza de que ocorrerá, só não sabemos quem será o protagonista. De todo modo, é preciso tentar buscar algumas pistas com quem percorreu esse trajeto já há algum tempo.

O que é golpe?

Quando um ou mais movimentos de massas ganham vigor, seja em defesa dos recursos naturais do país, por direitos, por democracia ou por qualquer outra justa reivindicação popular, os membros de um grupo, uma minoria, se alinham para subjugá-los. Um dos conteúdos do golpe é essencial e permanente:

“… se a cada movimento popular corresponde uma ameaça de golpe, torna-se evidente que, não obstante os variados pretextos, sob cuja capa aparece, a ameaça golpista tem também um conteúdo essencial permanente: a defesa dos privilégios da minoria dominante contra as reivindicações e os interesses da maioria do povo.”

Golpe de “esquerda”

Nosso autor, que será identificado no final, é muito claro ao afirmar que a narrativa, de que lançam mão os golpistas, de que o golpe será em prol do povo, serve unicamente para tentar disfarçar seu caráter invariavelmente elitista.

“O golpe que ora se trama no Brasil representa um golpe contra o povo brasileiro, em geral, e contra sua vanguarda mais aguerrida, em particular, quer dizer, contra os trabalhadores, os camponeses e estudantes.”

Os avanços conquistados pelo povo não nascem, como os golpes, de traições.

“Em todo golpe há sempre alguém que trai alguém ou alguma coisa, pois não há golpe sem traição, enquanto as conquistas efetivas e duradouras do povo não são, nem podem ser, conquistas da traição, mas da luta consequente e diária em que se empenha.”

O discurso pode começar de forma progressista, numa manobra sedutora, mas, cedo ou tarde, se mostrará reacionário e antipopular.

“O golpe é sempre, cedo ou tarde, contra o povo, e por este motivo, por este radical motivo, é que as forças populares não devem esmorecer um só instante na luta.”

O caráter específico do golpe atual no Brasil

Há em diversos momentos uma dificuldade enorme de discernir a verdade daquilo que é escamoteado, inventado ou interpretado como convém à minoria dominante.

“Este desvio de atenção é possível e explica-se, entre outros motivos, pelo fato de ser a minoria privilegiada a detentora dos meios de informação e divulgação a respeito dos acontecimentos. Pode, por isto, escamotear os fatos, inventá-los, interpretá-los segundo lhe convém; em uma palavra, a minoria privilegiada dominante tem condições reais para distrair a atenção e os esforços das forças populares, e seguramente não deixará de usar essas condições.”

Primeiro equívoco sobre o golpe

Um mesmo regime pode ganhar uma qualificação suave e enganosa de democracia de baixa intensidade ou de ditaduras não tão azedas, o que dá na mesma.

“O primeiro [equívoco] consiste em considerar que a ditadura armada contra o povo, neste momento, será um sistema de governo absolutamente diferente do que ora existe, assim como a diferença entre a água e o vinho, o sol e a chuva, o trabalhador e o ocioso. A diferença entre a ditadura que ameaça o povo e o governo que possuímos não é a mesma que se dá entre a água e o vinho, mas apenas a que separa um vinho suave de outro, só que mais azedo.”

Segundo equívoco sobre o golpe 

Não existe a necessidade de participação dos militares. Às vezes não é necessário nem mudar os governantes. Como no dito que não interessa a cor do gato, desde que cace o rato.

“O golpe, como recurso extremo da minoria dominante para assegurar seus privilégios diante da maioria submetida, não é sempre e necessariamente um golpe militar, uma ditadura militar, mas pode assumir as mais diversas formas, dependendo das circunstâncias concretas  em que for consumado.”

Diferença entre ditadura “legal” e ditadura via golpe

Há ditaduras que se estabelecem por eleições corrompidas, com a lei aparentemente intocada. Em outras circunstâncias “a minoria privilegiada dirigente se vê obrigada a rasgar suas próprias leis”.

“Pois bem: são essas mesmas leis e regras, estabelecidas pela minoria dominante, e que não podiam ser violadas pelo povo sem risco de penas severas, que começam a ser violadas pela própria minoria dirigente, quando se instala uma ditadura por intermédio de um golpe. Começa-se por rasgar as leis que regulam a conquista do poder político, no caso os estatutos eleitorais, e daí por diante, dependendo das necessidades, rasgar-se-ão quaisquer leis. O povo não se deve iludir jamais a respeito disto, acreditando em regimes de emergência e de exceção, os quais se apresentam sempre como passageiros.”

Qual o motor do golpe?

Quando impera a dúvida, entre os membros do grupo no poder, sobre a eficácia das leis vigentes na preservação da dominação do povo e na manutenção dos privilégios, muda-se o regime e as leis, camuflada ou explicitamente.

“Na verdade, é porque a minoria dominante, ou setores dela, não vê mais o que fazer para continuar como minoria dominante, nos quadros existentes e com as leis por ela própria estabelecidas, que se criam as condições objetivas para o projeto e para a tentativa de violar e rasgar essas leis, instaurando-se, então, uma ditadura de novo tipo, que assegure a permanência da dominação da minoria.”

Razões de ordem externa

A narrativa que nos rotula como nação livre e soberana não resiste às evidências históricas: o imperialismo está na raiz de tudo o que de mais decisivo ocorre por essas bandas.

“O sistema capitalista mundial é cortado de alto a baixo por uma oposição profunda: de um lado estão as nações capitalistas tornadas imperialistas, isto é, dominadoras de outras nações; de outro lado, as nações de estrutura interna dominante, capitalista, sofrendo porém a dominação imperialista, isto é, as nações dominadas. O Brasil, como nação capitalista, forma no bloco particular das nações capitalistas dominadas pelo imperialismo, isto é, por outras nações capitalistas mais poderosas, econômica e politicamente.”

“E é necessário também que as forças populares saibam que o imperialismo dominante em nosso País é o imperialismo norte-americano, que são os desejos e os interesses desse imperialismo que estão por trás dos mais importantes acontecimentos em nossa Pátria, quer econômicos, quer políticos.”

A preparação ideológica do golpe 

“A posição de menosprezo pelo adversário não é posição correta para as forças do povo. O que os inimigos do povo fazem, o que dizem, não o fazem nem o dizem gratuitamente, mas em busca de resultados muito bem calculados, os quais precisam ser descobertos, denunciados e combatidos, mas realmente combatidos, pelas forças populares.”

As condições para a ditadura do governo forte

“Técnicas as favor de quem?” É o que se deve perguntar para não cair no conto do governo forte que adotará soluções técnicas.

“As forças de vanguarda sabem disto, mas é preciso que todo o povo também saiba e que jamais se deixe enganar pela propaganda golpista, pois no dia em que se deixar iludir, se deixar trair, e passar a julgar necessária a constituição de um governo forte, de autoridade, para dar aos problemas as soluções técnicas que exigem, nesse dia o povo se tomará inerme para se opor à ditadura do governo forte que, então,certamente virá.”

Em que condições pode ser vitorioso o golpe para instalar um governo forte? 

Há uma “insuperável vantagem moral” na luta do povo em comparação com a luta de seus inimigos.

“Os inimigos do povo trabalham contra o curso da história, a qual nos diz que, quando o povo luta, é fatal que termine vencedor, pois luta pela justiça, pelo progresso,e tem a maioria da humanidade a seu lado; enquanto os inimigos do povo lutam a favor da injustiça, do privilégio, da escravidão, do atraso e, por isso, têm de seu lado a minoria da humanidade.”

“Tem-se de dizer ao povo que sua vitória é certa, desde que saiba lutar e não abandonar jamais a luta, pois a vitória é fruto, não da justiça simplesmente, mas objetivamente da luta social pela justiça.”

Primeira condição

É imprescindível compreender que não são as demandas do povo que causam os problemas, mas o modo capitalista de produção aliado ao imperialismo. Sem essa compreensão possíveis aliados podem ser levados a apoiar a instalação de um governo forte por carência de politização.

“É isto que se faz obrigatório demonstrar a todo o povo: não são as suas reivindicações a fonte dos problemas nacionais, mas a estrutura fundamental do País – capitalista, dominado pelo imperialismo – é a fonte de todos os problemas que afetam a Nação brasileira, entre os quais se incluem os problemas populares, de onde surgem as reivindicações das massas.

Segunda condição

“A segunda condição para que a pregação golpista seja vitoriosa decorre em larga medida da primeira. Refere-se à possibilidade de que todos aqueles setores que se tem mantido impermeáveis à pregação de golpe … venham a ser conquistados para a aventura golpista e aceitem a tese da necessidade do governo forte… para conquistar o “centro” político vem a reação direitista desenvolvendo uma ação intensíssima que vai desde a corrupção até a paralisação desses setores pelo medo.”

Como se opor ao golpe em marcha no Brasil?

“Fazer avançar o movimento popular, sob todos os aspectos, principalmente o organizatório, é o primeiro princípio da luta contra o golpe da minoria dominante. Como realizá-lo concretamente é o que compete aos militantes progressistas descobrir pacientemente, inexoravelmente.”

“Em segundo lugar, já que as condições para o golpe dependem, sobremaneira, de fazer pender para o seu lado os setores da classe média e da burguesia que resistem à sua sedução, o segundo princípio a ser observado pelo povo, nesta fase da luta, é manter a todo custo a divisão da burguesia e da classe média, não medir esforços para impedir que aquela identidade relativa, de que se falou atrás, venha a predominar sobre as divergências relativas.”

O autor

As citações desse texto foram escritas por Wanderley Guilherme dos Santos, em fevereiro de 1962, sob o título “Quem dará o golpe no Brasil?”, volume número 5 da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, publicado pela Editora Civilização Brasileira, Rio.

Cadernos do Povo Brasileiro

A professora Angélica Lovatto já proferiu a primeira exposição sobre a coleção Cadernos do Povo Brasileiro que está disponível no Canal Resistentes no YouTube. Todos os 28 cadernos dessa coleção estão disponíveis para download.

Vitórias parciais

“Se o fracasso final e completo dos inimigos do povo é historicamente inevitável, isso não impede que obtenham vitórias parciais ao longo da luta.”

“Já está em marcha o golpe contra o povo; que se ponha em marcha, então, o povo contra o golpe, no Brasil.”

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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