Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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Reflexões pós-dia dos pais – sempre podemos celebrar um pai? Por Dora Incontri

Então, não adianta apenas romantizarmos a paternidade e espalharmos fotos fofas na rede, assim como não adianta que as constelações familiares (altamente em moda hoje) recomendem o “honrar” os antepassados e o retomar das ordens do amor

Reflexões pós-dia dos pais – sempre podemos celebrar um pai?

por Dora Incontri

Ontem, as redes sociais foram inundadas por fotos, lembranças, homenagens, saudades – todas elas dirigidas a pais, vivos ou mortos, perto ou distantes. Mas, claro, todos pais que exerceram de alguma maneira – ainda que humanamente imperfeita – a sua paternidade. Quando isso acontece, o pai é um alicerce, é uma força que se enraíza na criança que, crescendo, não a perde, ao invés, – pode sempre voltar a ela, para revigorar-se, mesmo que seja apenas numa lembrança. Melhor ainda se o pai nos acompanhar por muitos anos vida afora.

Ser pai é uma missão, uma honra, um atestado de que Deus ainda confia na humanidade – ao entregar essas criaturinhas lindas, frágeis, sinceras, confiantes às nossas mãos inábeis… às mãos pesadas de homens que não aprenderam a cuidar e acarinhar e tantas vezes se equivocam como pais.

Infelizmente, houve muita gente que não pôde postar fotos com os pais ontem, porque há pais que abandonam e nunca mais são vistos; há pais, que violentam, machucam e deixam marcas físicas e psíquicas que as pessoas levam para o resto da vida; há pais que abusam, violam a inocência infantil, cavando um buraco na alma da criança, que uma vida inteira não consegue preencher… há pais que matam as mães e depois se matam e os filhos ficam órfãos de pai e mãe no mesmo instante – muitas vezes tendo assistido à cena do crime.

Então, se é bonito e bom termos um pai presente e que na medida de suas possibilidades deu o melhor de si, não podemos fazer vista grossa para grande parte da população brasileira, que não teve a mesma sorte.

Só para recorrermos aos tristes números: 5,5 milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro. E o Brasil tem dois mil órfãos do feminicídio por ano… na maior parte das vezes, o pai matando a mãe.

A violência doméstica, a paternidade renegada, o abuso sexual são realidades arraigadas há muitas gerações no perfil masculino. Tudo isso faz parte do patriarcado estrutural, em que o homem se julga dono da mulher e dos filhos ou simplesmente não entende (ou faz que não entende) que o nascimento de uma criança é responsabilidade sua também.

Então, não adianta apenas romantizarmos a paternidade e espalharmos fotos fofas na rede, assim como não adianta que as constelações familiares (altamente em moda hoje) recomendem o “honrar” os antepassados e o retomar das ordens do amor – tenho muita resistência diante de tais ordens propostas por Bert Herlinger, porque parecem provir de uma estrutura bastante patriarcal e hierarquizada. Um pai deve ser sempre honrado, mesmo que seja alguém que matou a mãe dos filhos ou que não respeitou a integridade física e psíquica de uma criança? Nem tudo é sagrado no mundo – ou antes, os homens conspurcam as coisas mais sagradas.

Por outro lado, não adiantam também medidas meramente punitivas: prisão, multas, indenizações…

É preciso uma mudança profunda. Uma nova constituição da masculinidade. Um homem precisa sim aprender a cuidar, a respeitar a integridade física do outro – seja mulher, criança, adolescente, seja outro homem… Um homem precisa ser criado com empatia, com senso crítico em relação ao patriarcado, porque o patriarcado faz mal a ele mesmo, além da violência e da opressão praticadas contra os outros.

Quantos homens conheço que usaram de violência, que abandonaram, que negligenciaram (e muitas vezes porque também foram abandonados, feridos, abusados… e reproduzem isso) e que hoje estão velhos, sozinhos, implorando um trocado para os filhos ou privados da família, dos netos…

É preciso perdoar. É o ideal. Mas sejamos realistas, às vezes as feridas são tão profundas que só o que se consegue é tentar esquecer.

Precisamos ouvir o que muitas feministas têm dito: ou a revolução será feminista ou não será. Para mudar de dentro a sociedade, só acabando com o patriarcado.

E o desgoverno que está lá no planalto, insensível e com sadismo sorridente diante dos 100 mil brasileiros mortos, com um homem que considera a filha mulher uma fraquejada, que mataria um filho gay, que não tem a mínima empatia humana, esse homem é o reflexo de milhões de homens violentos, homofóbicos, machistas, que o elegeram, que o admiram. E de mulheres que, inconscientes e autodestrutivas apoiam a própria mentalidade que as desqualifica e mata.

Somente se mudarmos esse cenário, poderemos celebrar tranquilamente bons pais, porque então todos os pais serão bons e assumirão sua missão sagrada.

 

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Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

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