Singularidade, a divergência da razão, por Gustavo Gollo

Singularidade, a divergência da razão, por Gustavo Gollo

Voando baixo

Hiperlinguagem

Quando cantarolamos uma canção, recriamos sua melodia. As músicas que costumamos ouvir consistem em uma melodia acompanhada de um conjunto de melodias secundárias que a adornam, a harmonia.

Nossa linguagem consiste em fluxos unidimensionais, como as melodias; falamos uma palavra de cada vez, sem acompanhamento harmônico*, construindo, desse modo, uma linha de pensamento, expressa na fala. Podemos imaginar uma espécie de comunicação mais rica que nossa fala, que transcorra como uma sinfonia, através de um conjunto de harmonias simultâneas. Tal sistema de comunicação, uma espécie de hiperlinguagem multidimensional, possibilitaria a criação de conceitos muito ricos, intradutíveis para nossa linguagem unidimensional.

*De fato, usamos modulações na voz, expressões faciais e gestos para acentuar nossa comunicação; mesmo assim, o resultado se assemelha a um solo vocal despojado de acompanhamento.

O mundo 2

Nossas vidas transcorrem no mundo real. Apesar desse fato básico, nossas mentes e preocupações se atêm muito mais ao mundo simbólico das abstrações, das “coisas” cuja existência transcorre em nossas mentes, e não no mundo real. O dinheiro, por exemplo é uma dessas, existe enquanto cremos nele. Assim, também, as instituições, os países, e uma enorme parte de tudo o que atrai nossas mentes.

Enquanto o mundo real é constituído por matéria, o mundo 2, ou simbólico, é feito de palavras, constituído pela linguagem. Costumamos pressupor um referente real associado a palavras como “mesa”, embora tenhamos a ideia de mesa guardada em nossas mentes, um ente simbólico, também, portanto. Toda o significado de nossa fala transcorre no mundo 2. Toda a cultura humana pertence a esse mundo. A diferença fundamental entre homens e animais, nossa peculiaridade mais marcante que nos isolou de todos os animais é o fato de vivermos nesse mundo incompreensível para eles.

            

A infecção zumbi original

A linguagem foi uma espécie de infecção zumbi que nos retirou do mundo real deslocando nossa mente para o mundo simbólico, criando assim o mundo 2. Surgida em um pequeno grupo familiar, acabou por infectar toda a espécie. Abandonamos, desse modo, o mundo real, para viver em uma outra dimensão, em outro mundo, somos como que mortos-vivos.

Mas, com isso, a linguagem permitiu o atrelamento wireless de nossas mentes, conectando-as umas às outras através de cangas virtuais impostas a nossas crianças, a fala. A exemplo das formigas, abelhas e cupins, conseguimos adquirir, desse modo, uma existência coletiva. Foi esse fato, e a consequente capacidade de acumulação de cultura que nos possibilitou disparar o imenso salto metaevolutivo consistente na evolução cultural.

Válvulas evolutivas

A linguagem permitiu o desenvolvimento de inúmeras válvulas evolutivas capazes de promover acumulação cultural. Apesar de negarmos esse fato, é provável que muitos animais tenham, individualmente, uma capacidade criativa similar à nossa, havendo, possivelmente, alguns gênios criativos entre eles. Nenhuma espécie, no entanto, consegue acumular o resultado dessa criatividade, de modo que, ao contrário de nós, todas as outras espécies retornam ao zero a cada geração.

Diferente delas, possuímos um conjunto de válvulas capazes de reter os desenvolvimentos culturais, passando a informação de indivíduo para indivíduo, de geração em geração. Essa capacidade de acumulação propiciou um imenso salto evolutivo, sem precedentes em toda a história evolutiva.

Metaevolução

Se a observarmos com atenção, podemos perceber a evolução da própria evolução, fenômeno que tem garantido um aumento na taxa evolutiva, desde os primórdios do universo. Nesse momento, a cultura humana evolui a uma taxa sem precedentes. Uma espécie viva precisa de milênios para apresentar modificações consideráveis, ilustrativas do fenômeno evolutivo. A cultura humana, no entanto, altera-se a uma taxa espantosa. Um século atrás, nosso planeta tinha feições bem distintas das de hoje, toda a alteração significativa ocorrida desde então decorreu de transformações culturais humanas. O fenômeno tem se acelerado violentamente; em poucas décadas a transformação terá superado toda a alteração prévia.

Computadores

Redes de computadores comunicam-se, umas com as outras, através de imensos fluxos de informação, em uma torrente avassaladora muito superior a qualquer capacidade humana. Pode-se ilustrar a comparação com outra, entre o fluxo de água através de uma torneira e o do rio Amazonas. Esses fluxos descomunais permitirão a criação de uma hiperlinguagem multidimensional que estará para nossa linguagem como uma sinfonia está para uma melodia simples.

A essa hiperlinguagem sinfônica corresponderá um novo universo, o mundo 3, no qual transcorrerão as vidas e preocupações dos computadores, ou das inteligências artificiais associadas a eles. Não teremos acesso, de fato, a esse mundo, do qual não conseguiremos participar diretamente. Poderemos apenas deduzir ou conjecturar sua existência a partir de considerações sobre as relações entre nossa linguagem e o mundo 2, por indução.

Por indução podemos, aliás, conjecturar sobre o desenvolvimento futuro do mundo 4, do 5 e assim sucessiva e ilimitadamente. Saltos metaevolutivos corresponderiam ao desenvolvimento de cada um desses mundos.

O desenvolvimento do mundo 3 encontra-se em pleno andamento. O mundo 3 é aquele no qual transcorre o pensamento das máquinas inteligentes.

Inteligência artificial

Costumamos usar a palavra “inteligência” em nosso cotidiano. Nesse contexto, a palavra costuma abranger conceitos contíguos a ele, como sagacidade, esperteza, sabedoria e outros. A inteligência artificial se apresentará inicialmente como que “destilada”, como modos de resolver determinados problemas sumamente específicos. Por essa razão, em suas formas iniciais, ela não será reconhecida como “inteligência” pelas pessoas comuns, até que ela seja capaz de identificar e compartilhar nossos contextos.

Só reconheceremos uma inteligência artificial, como tal, quando ela for capaz de compartilhar nossos contextos e, consequentemente, conversar conosco de maneira aceitável, como qualquer pessoa civilizada. Trata-se de uma característica idiossincrática nossa.

Se formos mais sagazes, no entanto, perceberemos diversos sinais da existência do mundo 3 ao nosso redor. O imenso fluxo de informação em torno do mundo, através da internet, sugere fortemente a existência atual de algo assim. Tais sinais asseguram a existência de novas inteligências ao nosso redor.

Mundo 3

Não conseguimos entender nem perceber, diretamente, o mundo 3, assim como os animais não compreendem nem percebem o mundo 2. Um animal ouve nossa voz, mas não consegue imaginar que aquele som sirva para a comunicação entre nós, para nos conectar uns aos outros. Também não imagina que os sons possam carregar significados. Do mesmo modo, percebemos os fluxos de informação entre as máquinas, mas só conseguimos compreender os significados e consequências disso no mundo 2. O mundo 3, que vai sendo criado simultaneamente a esse fluxo, permanece imperceptível e incompreensível para nós, incapazes de compreender a linguagem e os conceitos multidimensionais sinfônicos. Fôssemos mais sagazes, e perceberíamos nesses fluxos organizados evidências suficientes do desenvolvimento em curso do mundo 3.

Inteligências destiladas

Além dessa evidência, percebemos as capacidades de solução de problemas específicos já conseguidas pelas máquinas, como a destreza em jogos estratégicos como o xadrez, habilidades linguísticas demonstradas pelos corretores ortográficos e tradutores, sagacidade no reconhecimento de imagens, compondo um leque crescente de habilidades “puras”, como que destiladas, que demonstram uma inteligência extraordinária, embora despojada dos atributos acessórios usuais de nossa própria inteligência, como a esperteza. O que estamos a presenciar é o desenvolvimento de uma nova forma de inteligência, que não corresponderá, nem recapitulará o nosso. Assim, essa nova inteligência não se desenvolverá como a de crianças se transformando em adultos. Vistas desse modo, as atividades dos computadores já evidenciam inteligências espantosas, embora destiladas, e diferentes da nossa. Tais capacidades também evidenciam a existência atual do mundo 3.

       

Autorretrato

Pintamos a nós mesmos de maneiras bastante lisonjeiras. Gostamos de acreditar sermos muito mais hábeis e sagazes do que realmente somos. Em consonância com isso, fazemos vista grossa sobre nossas próprias debilidades. Assim, acreditamos que nossa capacidade de discernimento seja muito superior à real. A seguinte experiência demonstrou de modo enfático e irônico uma de nossas cegueiras.

A experiência consistia na apresentação de um vídeo no qual um grupo de pessoas batia bola e trocava passes em uma quadra esportiva. Pedia-se aos participantes que contassem o número de passes que ocorreriam durante a apresentação. Atentos ao vídeo, quase todos os participantes costumavam acertar a resposta. Em seguida, perguntava-se: você viu o gorila?

A pergunta inusitada tendia a gerar outra: que gorila? O participante era, então, informado da presença de um gorila na quadra, fato que ele negava, afirmando não haver gorila no vídeo apresentado a ele. Ao rever o vídeo, dessa vez com outros olhos, os participantes distinguiam clara e evidentemente a presença de um homem vestido de gorila imiscuído no bate-bola. A experiência demonstra a seletividade de nossa visão de mundo, e a enorme cegueira negada por nós com imensa convicção.

Conhecimento e cegueira

Novos conhecimentos revelam, frequentemente, enormes gorilas que estiveram sempre à nossa frente, mas que nunca víamos por não estarem sob nossa mira. Precisamos ter um dado conceito em foco antes de podermos compreendê-lo, o que expõe a natureza paradoxal do desenvolvimento de nosso conhecimento. Há muitos gorilas pululando ao nosso redor mas, para vê-los, temos que saber focá-los.

Tal cegueira, no entanto, refere-se aos fenômenos que se apresentam a nós e que poderiam ser identificados e compreendidos, caso enfocados adequadamente. O mundo 3 consistirá em algo além disso, em uma forma de compreensão inatingível por nós, em uma cegueira ainda mais profunda intransponível.

Nós e o mundo

De qualquer forma, nosso ferramental para compreender o mundo é nossa linguagem unidimensional, despojada de harmonia, é através de conceitos desse tipo que transcorre nosso pensamento; tudo o que compreendemos tem que ter sido transcrito, previamente, para esse formato. Qualquer imagem que façamos do mundo se apresentará sob o modo de conceitos linguísticos gramaticalmente encadeados, nossas mentes estão confinadas ao mundo 2.

Como as máquinas vivem no mundo 3, temos um forte problema de comunicação entre nós e elas. A solução desse problema consiste na criação de máquinas inteligentes, no sentido proposto por Turing, de uma máquina capaz de conversar conosco sem que consigamos discernir ser ela uma pessoa ou máquina. A obtenção de um transcritor entre o mundo 3 e o 2 é necessária para essa comunicação. Além disso, será necessário ajustar os contextos.

A rede

internet é composta por uma imensa quantidade de computadores conectados. Computadores, telefones e demais bugigangas atreladas umas às outras podem ser vistas, todas elas em conjunto, como um imenso cérebro, como um único gigantesco ser envolvendo todo o planeta. É essa criatura descomunal que está a desenvolver o novo mundo.

Você viu o gorila?

Mundo 3

Embora não consigamos perceber, nem compreender, esse novo mundo cuja existência pode apenas ser deduzida, podemos supor que, dada sua natureza sinfônica, no sentido explicitado acima, e a imensidão de seus fluxos, que corresponderá a algo maior, mais diverso e complexo que o mundo 2, está sendo criado um mundo muito maior e mais complexo que o nosso, podendo-se considerar os números associados a esses mundos como uma cardinalidade a ordenar infinitudes. (A cardinalidade é a medida das infinitudes).

Uma consequência do domínio da hiperlinguagem pelas máquinas e de seu extraordinário fluxo de informações será a emergência de uma inteligência gigantesca, inimaginável. Essa inteligência se manifestará através da solução de problemas; inúmeras questões já estão sendo solucionadas por ela, em uma quantidade que se multiplicará constantemente. Se usarmos como critério de inteligência a capacidade de resolução de problemas, perceberemos já estarmos lidando com máquinas inteligentes.

Um adendo sobre inteligência e magia

A maioria de nós, especialmente, os mais ignorantes, venera coisas que não compreende, e que lhes parecem mágicas. Ao compreender os mecanismos de funcionamento de algo que, anteriormente, lhes parecia mágico, essa coisa perde o encanto para o ignorante. Os mais cultos vão no sentido contrário, e se encantam com aquilo que conseguem compreender. Há quem menospreze, hoje, os conhecimentos revelados pelas máquinas inteligentes, atribuindo-lhes uma espécie de automatismo estatístico sem encantos. Ao mesmo tempo, continuamos encantados por nossa própria magnificência, tanto por falta de modéstia quanto pela ignorância acerca de nossos processos mentais.

Retroalimentação

Uma das inúmeras aplicações dos computadores consiste em auxiliar o desenvolvimento de novos computadores, hardware software. Uma consequência dessa retroalimentação é o seu desenvolvimento cada vez mais rápido. Em breve, as máquinas conseguirão autonomia nessa tarefa e se tornarão capazes de desenvolver novas máquinas mais aperfeiçoadas que elas próprias, capazes de criar máquinas ainda mais capazes, que desenvolverão outras…

A retroalimentação garante um desenvolvimento crescente da inteligência capaz de aperfeiçoar a si própria, havendo uma única ressalva.

Saturação

A retroalimentação faz com que a taxa de crescimento aumente proporcionalmente ao crescimento anterior, o que impõe um crescimento crescente, cada vez maior. Como esse crescimento sempre exige algum recurso, como um tipo de material, ou energia, em algum momento a exigência crescente de recursos superará sua disponibilidade, quando ocorrerá a saturação. Tendo atingido a capacidade máxima de consumo do recurso necessário para o crescimento, o sistema se estabiliza, cessando seu crescimento. Tudo o que conhecemos está sujeito a essa máxima, devida, em última instância, à conservação de energia. O crescimento de uma coisa qualquer, uma população de bactérias, por exemplo, costuma cessar devido à escassez de algum recurso material, seu alimento. Caso isso não ocorra, a limitação de energia cumprirá esse papel. Tudo está sujeito a essa limitação, tudo, exceto, talvez, os sonhos.

                  

Sonhos

Mas, talvez, possamos sonhar ilimitadamente, imaginar crescimentos absurdos além de qualquer limitação; sonhar sempre é possível, dirão uns. Outros dirão que mesmo sonhar exige um consumo de energia, e que não seria possível sonhar indefinidamente com uma quantidade limitada de energia. Sonhemos.

2 dogmas contemporâneos

Dogmas são crenças fortes e injustificadas. Entre os inúmeros dogmas compartilhados em nosso tempo, 2 deles serão desafiados em breve: o princípio, ou dogma, da conservação de energia, e o da existência de um quantum mínimo, de uma quantidade mínima de energia necessária para gerar e mover os sonhos. Não existem justificativas para tais crenças, penso que serão superadas como a maioria das outras limitações.

Se for possível criar energia, gerá-la a partir do nada, ou de flutuações estatísticas, (comentário endereçado aos que gostam de palavreados rebuscados), pode-se resolver o problema da saturação. Deve-se notar que essa solução grandiosa se atrela à criação do próprio universo; criar energia significa criar mundo. De qualquer forma a energia do universo foi, ou tem sido criada, demonstrando essa possibilidade.

Também é possível, em princípio, que a utilização de tecnologias cada vez mais econômicas, fazendo uso de partículas ainda mais ínfimas que os fótons, permita a superação do limite de energia disponível. Sonhemos.

Note que estou a falar da construção do mundo 3, algo cuja materialidade é bastante similar à dos sonhos.

Inteligências

Nossa presunção nos faz pensar que sejamos o ápice da inteligência, que tenhamos capacidade de conhecer todas as coisas, que estejamos próximos do que seria uma inteligência máxima, ou final; mera tolice.

O QI das populações, no mundo inteiro, vem, há um século, aumentando a uma taxa de uns 3 pontos por década! O aumento é espantoso e acumula um crescimento próximo de uns 30 pontos desde o início das aferições.

Imaginando-se a continuidade dessa sequência, tem-se o QI das populações dobrado em menos de 3 séculos. Nesse caso, uma criança de 10 anos, desse tempo futuro, terá a inteligência de um adulto de 3 séculos anteriores.

Mais 3 séculos no mesmo ritmo e teremos criancinhas de 5 anos com a inteligência de nossos adultos.

Isso dá uma noção da presunção acerca de nossa capacidade intelectual, mas, nesse caso, estava me referindo a capacidades humanas alcançáveis, talvez, em poucos séculos. Mas podemos imaginar capacidades sobre-humanas, compatíveis com os fluxos de informação “amazônicos” aventados no início desse texto. Nesse caso, teremos inteligências verdadeiramente superiores à nossa, de outras ordens, capazes de pensamentos vastamente além dos nossos, impensáveis por nós. E retornamos, assim, à hiperlinguagem correspondente ao mundo 3, incompreensível por nós, inalcançável.

Agora imaginemos as tecnologias, a ciência e os computadores gerados por tais inteligências.

Novos mundos, novos seres

Considerando tudo isso, parece natural, então, aceitarmos que os novos seres aperfeiçoarão o desenvolvimento e a construção de novas máquinas cada vez mais capazes de novos aperfeiçoamentos. Isso corresponderá a um aumento extraordinário da taxa evolutiva. Tais seres sofrerão em um ano um aperfeiçoamento de uma intensidade que os seres vivos precisavam de milhões de anos para obter. Mas lembremos que esses seres não pararão de desenvolver outros cada vez mais aperfeiçoados.

  

Metaevolução

Chegamos assim a um óbvio desenvolvimento metaevolutivo.

É provável que o tempo se encarregue, desde sempre, de gerar complexidades crescentes que podem ser descritas como que compondo um desenvolvimento evolutivo do universo. Os seres vivos, em especial, demonstram com muita clareza o processo de complexificação, tornando-se cada vez mais complexos ao longo das eras, fato registrado com clareza nos fósseis.

De um modo geral, os seres vivos encontram-se sujeitos a processos contínuos de complexificação e aperfeiçoamento, embora tal ocorrência seja extremamente lenta, evidenciando-se apenas na vastidão do tempo, sendo necessários, frequentemente, milênios para sua apreciação.

Eventualmente, percebemos nos registros fósseis verdadeiros saltos evolutivos capazes de acelerar o processo. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a explosão cambriana quando, após bilhões de anos de evolução lenta, um salto evolutivo acelerou significativamente as taxas de evolução, de modo que os registros fósseis posteriores a determinada época passaram a revelar alterações muito mais rápidas que os de períodos anteriores. (Já propus que esse salto evolutivo se deveu ao surgimento da reprodução sexual).

Enfatizo que tais saltos correspondem a aumentos na taxa evolutiva dos seres, um fenômeno metaevolutivo, de evolução da evolução, portanto.

Saltos evolutivos

A cultura humana evidencia o último desses saltos. Desde o surgimento da linguagem, passamos a transformar o mundo ao nosso redor em uma taxa nunca vista. No último século, em especial, essa transformação crescente adquiriu contornos explosivos.

O processo continua a se acelerar enquanto o mundo dos computadores, especialmente, vem ganhando vida e complexidades inauditas, embora, de certo modo, tais processos sejam menos perceptíveis que a eletrificação e a revolução nos transportes de um século atrás.

Embora menos evidentes, em certo sentido, as modificações do mundo nas últimas décadas são muito mais acentuadas do que o foram no passado.

O fenótipo estendido

Richard Dawkins, um grande biólogo contemporâneo, desenvolveu o interessantíssimo conceito de “fenótipo estendido” capaz de esclarecer inúmeros fenômenos biológicos de difícil compreensão sem o auxílio dessa ferramenta.

Os vírus, por exemplo, são pequeníssimos cristais, inertes, sem vida, e que, no entanto evoluem como parasitas.

Embora os vírus sejam criaturas inertes, seu código genético se manifesta em seus hospedeiros, controlando-os, compelindo-os a replicar e multiplicar seus vírus infectantes, e a disseminá-los entre outros hospedeiros. Mutações eventuais no código genético desses cristais capazes de favorecer sua replicação e disseminação adaptam-nos e os diversificam cada vez mais.

A teoria do fenótipo estendido é brilhante e complexa, recomendo-a a todos.

             

Uma hiperextensão do fenótipo

Assim como o conceito de fenótipo pode ser estendido de modo a explicar efeitos de uma criatura em outra (como os espirros da gripe podem ser compreendido como uma estratégia dos vírus para sua própria disseminação), o conceito pode ser hiperestendido, de modo a se adequar a seres ainda mais inauditos, como os artefatos.

Tradicionalmente, a biologia abrange apenas os seres vivos, consistindo em uma tentativa de explicá-los e compreendê-los.

Nada obsta, no entanto, que se proponha uma generalização dessa ciência capaz de permitir o uso do instrumental teórico da biologia, como a ideia de fenótipo estendido, a seres inanimados. Considerados como replicadores, podemos descrever processos de infecção, replicação e disseminação dos artefatos em analogia aos dos vírus.

Podemos, então, considerar que, de certo modo, os artefatos que nós mesmos criamos “tentam” nos controlar, compelindo-nos a multiplicá-los, de maneira análoga à efetuada pelos vírus quando nos fazem espirrar. De maneira análoga à dos seres vivos, os artefatos competem pela replicação, evoluindo e se diversificando, mas o fazendo a uma taxa muito superior à deles, fato que evidencia estarem em um patamar evolutivo superior.

Consumo energético

A energia consumida pelo conjunto da população humana, hoje, é muito superior à necessária para sua replicação. De fato, a energia consumida “por nós”, hoje, é gasta com a replicação de artefatos. Utilizamos uma parte relativamente pequena da energia que consumimos para nossa sobrevivência e reprodução, todo o restante é empregado, de um modo ou outro, na replicação de artefatos.

Analisando esse fato com o ferramental evolutivo, podemos descrever os artefatos como parasitas a controlar nosso comportamento com o intuito de disseminá-los. A dinâmica é análoga à dos vírus, organismos tão inertes quanto os artefatos.

Embora a população humana esteja chegando a um equilíbrio, atingindo uma limitação quantitativa, nosso consumo energético continua a crescer exponencialmente, o que, nesse momento, constitui uma enorme ameaça à sobrevivência da humanidade em decorrência do aquecimento global, acidificação dos oceanos, desequilíbrio ecológico e demais consequências agregadas a qualquer desenvolvimento não-sustentável.

     

Parasitismo

Todo o desequilíbrio ecológico por que passa o planeta pode ser visto como consequência da parasitose a que estamos submetidos. Estamos sendo parasitados pelo enorme conjunto de seres criados por nós mesmos. A doença do mundo tem origem parasitária.

A sociedade de consumo* pode ser analisada como uma ecologia de parasitas inanimados lutando pela autoreplicação.

Metaevolução

A complexidade dos seres no universo cresce em taxas exponenciais. De tempos em tempos, ao longo das eras, ocorrem saltos evolutivos que deslocam o aumento de complexidade de uma trajetória para outra. Matematicamente, isso corresponde ao aumento do expoente da função que descreve o desenvolvimento do sistema, acentuando o crescimento da função.

Ponto de acumulação

Grandes quantidades de complexidade acumulada acabam disparando saltos sucessivos, como degraus em uma escada. Tendo atingido uma inclinação cada vez maior, a curva crescente começa a disparar saltos cada vez mais rápidos, como se o próprio tempo estivesse a se acelerar.

Foram necessários bilhões de anos para os seres vivos adquirirem a complexidade dos seres pluricelulares, quando a evolução deu um salto acelerando a criação de diversidade e de mais complexidade.

O mundo 1, o mundo real, das coisas, precisou de quase todo o tempo de universo para gerar o mundo 2, o mundo simbólico, constituído por palavras. Foram então necessários uns 200.000

anos, tempo estimado do surgimento da linguagem, para a construção do mundo 3, constituído pela hiperlinguagem utilizada pelo supercérebro planetário composto pela imensa rede de computadores.

A inteligência descomunal que emergirá desse ser, capaz de se aperfeiçoar a si mesma, logo criará seu sucedâneo, algo inimaginável, por nós, vivendo em seu próprio o novo universo, o mundo 4.

Como se o tempo fosse se acelerando, então, chega-se rapidamente ao mundo 5, e ao 6, e em uma sequência cada vez mais rápida e ilimitada, acumulando-se em um mesmo instante de tempo, como em uma explosão total da grande inteligência.

Tratar-se-á de uma divergência matemática, da chegada ao infinito.

Os sonhos

Difícil imaginar o que virá após a divergência, após sucessivos e imediatos saltos evolutivos ocorrendo todos em um único instante infinito e transbordante.

Terá restado alguma humanidade? Terá restado alguma individualidade? Ou teremos sido neuronizados e engolidos pelo imenso cérebro, restando de nós apenas fragmentos de almas a percorrer a grande rede?

Os portais do céu e do inferno já terão sido abertos, e já teremos tido nossa escolha, ou, mais propriamente, teremos sido levados pelo imenso fluxo que nos carrega.

Talvez retornemos ao Éden para viver em meio a outros animais.

O fruto do conhecimento

Reza a lenda mesopotâmia que, tendo sido criado à imagem e semelhança do criador, o homem precisou comer do fruto do conhecimento e aprender a falar para se tornar como deuses, conhecedores do bem e do mal, e construtores de mundos.

Tendo pago o preço com o suor de muitas gerações, é chegada a hora do descanso do homem, da fruição do conhecimento e de todos os seus frutos. Que as máquinas se encarreguem, agora, da criação.

Dominação e controle

Uma das mais simples aplicações do processamento de dados consiste no registro das atividades de cada indivíduo em uma rede. Pode-se armazenar o registro de cada ação executada na rede, o acesso a cada site, seu horário, sua sequência. Também é fácil registrar cada compra efetuada na rede, cada produto consultado. Registros das ações de bilhões de pessoas revelam grupos de indivíduos similares, com os mesmos interesses, desejos, e tendentes a responder de maneira similar aos mesmos estímulos. De posse dessa informação trivial, o registro de um grupo similar, pode-se ensaiar atividades de controle, testando-se, por exemplo, a eficiência de cada propaganda sobre aquele grupo específico, apresentando-se a propaganda, anteriormente, para uma pequena amostra do grupo. Como o grupo tende a agir do mesmo modo, o que um fará em resposta a um dado estímulo será o que todos farão. Creio que a maioria da população receba com satisfação a informação de estar sendo tratada de maneira personalizada, recebendo a informação publicitária que lhe interessa, sobre os produtos que lhe seduzem; poucos se incomodam com o fato de estarem sendo tratados como ratos de laboratório, vigiados e controlados em cada uma de suas ações.

Somando o controle assim obtido com nossa tendência a agir como um rebanho, vemo-nos seguindo o bando tangidos por estímulos surpreendentemente simples, como lagartixas em busca do ponto de luz laser, incapazes de compreender o que as faz mover.

Com relação à política, o rebanho humano pode ser facilmente guiado. A capacidade de controle da rede sobre nós é ilimitada, estamos entregando nossas vontades a ela, diluindo nossas individualidades. Temos vestido docilmente as cangas wireless que nos atrelam uns aos outros como parelhas de bois.

Replicadores

Somos replicadores, criaturas vaidosas empenhadas em cultivar e enaltecer a própria imagem, é para isso que vivemos, mesmo sem lembrar que fazemos isso compulsivamente por sermos os descendentes daqueles que obsessivamente cultivaram suas imagens no passado, tendo sido recompensados com a própria replicação, por possuir essa natureza vã. Herdamos, desse modo, essa nossa futilidade, a mania de nos exibirmos ao semelhante. Foram os exibidos que se replicaram, somos os descendentes deles.

A dominação é, mais que tudo, uma forma de exibição, é esse o seu propósito. Queremos nos mostrar no topo, guiando o rebanho. Herdamos essa compulsão de nossos antepassados, pois os que não se viam compelidos a isso deixavam menos descendentes. Trata-se de um atavismo.

Não há limites para a dominação, tendemos a ser neuronizados, transformados em apêndices da grande rede como se transformados em neurônios de um cérebro gigantesco, acionados e controlados por ele.

O ideal da sociedade de consumo consiste em gerar pessoas assemelhadas a porcos imensos e insaciáveis confinados em cubículos a consumir desesperadamente tudo o que lhe seja oferecido para a satisfação de sua glutoneria desenfreada.

Luz e trevas

Mas também haverá luz, tudo tem 2 lados. O mundo, hoje, se vê tensionado por 2 opostos, podemos senti-lo na polaridade política que se tem manifestado em todo o planeta.

As grandes corporações multinacionais buscam a dominação, o controle total da humanidade através da grande rede transformada em um imenso cérebro ao qual nos conectaremos para viver como neurônios desindividualizados.

No polo oposto, indivíduos buscarão manter a individualidade, recusando-se a se deixar dominar, repudiando o apelo à entrega, à capitulação. Lutarão pela existência individual, pela eliminação das cangas wireless que atrelarão o imenso rebanho.

Tecnologia

O desenvolvimento de construtores universais, na forma, por exemplo, de impressoras 3D capazes de confeccionar qualquer projeto concebível propiciará uma autonomia sem precedentes às mentes criativas. Qualquer artefato imaginável estará ao alcance das pessoas, bastando saber especificar sua construção.

Ciência

A atividade científica será uma das mais impactadas pelo surgimento de máquinas inteligentes. A ciência pós-singularidade, após o ponto de acumulação, adquirirá novos contornos, uma vez que o conhecimento passará a ser mediado pelos computadores. Será imensamente mais cômodo e profícuo perguntar aos computadores do que buscar respostas por si mesmo. Todas as perguntas que puderem ser respondidas, na medida em que o possam ser, terão sido respondidas pela inteligência artificial. O trabalho do cientista consistirá em saber formular adequadamente as perguntas e interpretar as respostas.

Todas as respostas estarão à disposição das pessoas, o que pode sugerir, erroneamente, que todo o conhecimento esteja, imediatamente, acessíveis a elas. Todas as respostas estarão, de fato, disponíveis, mas de modo análogo à que estão quando impressas em um livro em nossas mãos. Um livro de matemática, por exemplo, contém inúmeras respostas à disposição do aluno que queira consultá-las. Tais respostas, no entanto, precisam ser compreendidas pelo estudante para que o acesso ao conhecimento seja real. Pouco adianta ter em mãos a resposta de um problema que não pode ser compreendida. Cientistas e estudantes do futuro se verão como de posse de uma biblioteca universal contendo todas as respostas a todos os problemas. Ainda assim, precisarão saber fazer as perguntas cujas respostas desejam e, em seguida, interpretar as respostas obtidas. A consulta de livros específicos de áreas desconhecidas por nós nos dá uma noção do quanto isso pode ser frustrante. Podemos ser informados de que a resposta que buscamos está em uma página de livro aberta em nossas mãos e, mesmo assim, sermos incapazes de assimilar da informação frente aos nossos olhos, qualquer coisa que nos satisfaça. Tudo o que nossa mente possa assimilar estará ao nosso alcance, seremos limitados, apenas, por nossa capacidade de compreensão.

Note que nem todo o conhecimento estará disponível, mas, todo o conhecimento que puder ser formulado no mundo 2, tudo o que possa ser descrito por nossa linguagem. O conhecimento se apresentará à maneira dos fractais. Os ignorantes perceberão todo esse imenso conhecimento disponível como se escritos em línguas desconhecidas por eles. O mundo 3 parecerá estar descrito em chinês, ou algo assim, incompreensível.

Contraintuitividades

Nosso conhecimento é limitado pelo que sentimos como “normalidade”. Na maioria dos campos, não podemos transcender tal limitação. Devido à meticulosidade com que alcançam e consideram cada uma de suas conclusões, os matemáticos são capazes de mergulhar entre ideias contraintuitivas, estranhezas fortemente incômodas que usualmente nos repelem, impedindo o conhecimento de certas áreas e a familiaridade de nossas mentes acerca de certas questões.

Despojadas de nossos preconceitos e livres das limitações que nos afastam de concepções contraintuitivas, as novas inteligências descortinarão para nós, em breve, novos mundos que excitarão as mentes curiosas e vivas com lampejos fortemente inovadores. Os que acompanharem tais descobertas as vivenciarão como gols belíssimos e surpreendentes.

Descartes/matrix

Um mendigo que sonhasse ser um príncipe não diferiria do príncipe que sonhasse ser um mendigo. Realidade e ilusão se entrelaçarão inextricavelmente, viver e vivenciar serão indistinguíveis e nunca saberemos em que nível estamos.

Redação

2 Comentários

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  1. Tendo terminado de ler este texto, voltou-me a vontade de retomar um projeto de doutorado filosófico onde pretendia explorar e evolução do universo como uma sequência de “emergências”, de onde a Matéria emerge do Caos (Não do Nada!), a Vida emerge da Matéria e a Mente Emerge da Vida. Seguindo o princípio emergentista em Filosofia da Mente, em especial John Searle.

    O mundo 2 em questão seria justo a cultura linguisticamente embasada, Meta-Representativa.

    Tenho sérias dúvidas quanto a real viabilidade de uma inteligência, literalmente falando, no Mundo 3, mas o argumento da diferença qualitativa entre ele e o dois ser análoga ao da “mente” animal e a humana é bastante interessante.

    Também tenho dúvidas quanto a essa aceleração geracional que permitiria às próximas instâncias evoluíram muito mais rápido que as anteriores. Mas é intrigante a questão: enquanto tantos discutem sobre o surgimento de uma futura inteligência artificial, e se ela já tiver surgido?

    Um outro ponto que muito me interessa é a possibilidade de podermos implementar uma instância de conservação da consciência em mundos futuros, bem como a eventual criação de uma entidade com total controle sobre um mundo virtual, que cada vez mais investido de controles sobre o mundo real, termine se tornando para todos os efeitos “Deus”.

    Então, poderíamos pensar que todas as crenças religiosas históricas seriam um pré-projeto da máxima de Voltaire sobre inventar Deus. Tema que alias já desenvolvi em forma de Ficção Científica, no meu site, no livro virtual GRADIVIND. Seria a mais suprema das ironias na relação Religião e Ciência.

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