Sobre o hábito: um manifesto, por Gustavo Gollo

Sobre o hábito: um manifesto, por Gustavo Gollo

Normalidade e hábito

Podemos nos habituar a qualquer coisa e, uma vez que nos tenhamos habituado a ela, parecerá absolutamente normal. Assim, por mais absurda que alguma coisa nos tenha parecido, depois de nos acostumarmos, será tida como normal.

Toda a normalidade das outras pessoas que não seja equivalente à nossa será vista com estranheza. Toda a nossa normalidade é tida por nós mesmos como normal.

A normalidade enseja que a aceitemos, por mais completamente absurda que seja a condição, situação, ou coisa a ser aceita. A normalidade é definida pelo hábito, indiferentemente a qualquer consideração pelo absurdo.

Sobre nossas crenças

Duas considerações, exclusivamente, determinam nossas crenças: a racionalidade e o hábito.

Estando habituados a acreditar em qualquer coisa, continuaremos acreditando nela, a menos que um novo hábito nos seja imposto, normalmente, através da repetição de crença alternativa. Habituamo-nos a tudo aquilo que ouvimos repetidamente.

É possível questionar e mudar nossas crenças a partir de considerações racionais que assim o exijam, em virtude de incompatibilidade com outras de nossas crenças. A racionalidade pode demonstrar que duas crenças são incompatíveis, compelindo aquele que compartilha ambas a escolher uma delas e abdicar da outra.

O exercício da racionalidade, e da exclusão de crenças incompatíveis dele decorrente, determina o hábito da racionalidade. Os já habituados a raciocinar, assim procedem normalmente.

No mais, somos governados apenas pelo hábito, pelas repetições: as repetições produzem e consolidam o hábito. Trata-se do fundamento da propaganda. Assemelhamo-nos mais a papagaios que aos seres racionais decantados em nossos autoelogios.

Normalidade e poder

A afirmação de que podemos nos acostumar a qualquer coisa não tem limites; podemos nos acostumar até com o chicote em nosso lombo.

Estamos acostumados com o chicote em nosso lombo.

Tendo sido previamente subjugados, habituamo-nos, também, a vestir sozinhos nossas próprias cangas; estamos habituados à subjugação, razão pela qual ela parece normal.

Habituamos nossos filhos à mesma subjugação a que fomos habituados.

https://www.youtube.com/watch?v=UATPH44jRSw]

Rebeldia e controle

Os poderosos constroem canais inócuos adequados para manifestações de rebeldia. Conduzindo os jovens com tendências rebeldes a tais canais, habituam-nos a se comportarem adequadamente, como bons rebeldes. Bons rebeldes aprendem a prescindir da lógica e da racionalidade.

Bons “rebeldes” seguem as diretrizes impostas pelos poderosos e se habituam a questionar a lógica e a racionalidade, abdicando do único instrumento capaz de libertá-los da dominação a que estão acostumados, atando-se a si mesmos aos grilhões do hábito. Lembremos que só a racionalidade pode quebrar a cadeia do hábito e da dominação a que tenhamos sido habituados.

Os que, habitualmente, exercitam o raciocínio, e cotidianamente fazem uso da racionalidade são induzidos a, “conscientemente”, se aliar aos poderosos, sendo habituados a repetir jargões favoráveis à estrutura de dominação e a compactuar com a opressão.

O poder tenta cooptar jovens programadores, matemáticos, engenheiros e outros habituados a exercer cotidianamente a racionalidade associando-os a tutores anteriormente submetidos ao mesmo estratagema e já previamente cooptados e inseridos na estrutura de dominação.

Jovens habituados a racionar são guiados pelo poder a dirigir sua racionalidade a outros objetos de análise que não os canais de opressão e dominação, ou ameaçariam o poder. O questionamento do poder é reservado aos que tenham abdicado da lógica e da racionalidade, produzindo as críticas inócuas que deverão canalizar rebeldias futuras. Críticas racionais poderiam ser verdadeiramente contundentes.

Estamos habituados a viver em um mundo completamente absurdo, cruel, voltado para a consolidação e ampliação do poder e da opressão. Só a racionalidade nos permitirá modificar esse hábito.

Link para texto sobre o carinha assassinado porque ameaçava o poder:

https://jornalggn.com.br/fora-pauta/o-carinha-que-desafiou-o-poder-por-gustavo-gollo

[video:https://www.youtube.com/watch?v=uAe_9qBxwOc

Redação

8 Comentários

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  1. “Estamos habituados a viver

    “Estamos habituados a viver em um mundo completamente absurdo, cruel, voltado para a consolidação e ampliação do poder e da opressão. Só a racionalidade nos permitirá modificar esse hábito.”

    Esse é o problema. A massa reage de acordo com sentimentos a flor da pele, não a razão.

    Quando finalmente entendi isso (ou melhor, aceitei esse fato), fui obrigado a abandonar o anarquismo. É necessária uma estrutura de poder que mantenha a população sobre controle. No meu caso, prefiro que essa estrutura seja de esquerda.

  2. Humanos caninos

    Ainda não vi o filme do menino da Internet mas pelo que você diz me parece que o erro dele foi recusar poder, de lá prá cá ou de cá prá lá. Se for isso, essa recusa é altamente subversiva.

    Tem um mecanismo, caro Gollo, que chega a ser gozado verificar. E é uma verificação fácil, qualquer pode fazer. É assim:

    Quando você encontrar uma pessoa, exima-se de tentar estabelecer qualquer tipo de ascendência ou poder sobre ela, seja através do exposição de bens materiais, de superioridade intelectual ou simplesmente de superioridade “porque sim, porque é assim que as coisas são”, o que inclui instituições, origem nacional, étnica, cargo, fama. Ao mesmo tempo, recuse-se a aceitar as tentativas dessa pessoa de estabelecer poder sobre você. Enfim, não se acumplicie com o poder, seja exercido por quem for.

    As pessoas tendem a se perder, acham estranho e comumente lutam fervorosamente para evitar relações sem ascendência. “Ou você manda ou mando eu, mas alguém tem que mandar”. Algumas das reações que tenho encontrado:

    – Agressividade: tentativa de estabelecer poder pela força física.

    – Repulsa: fugir do que não posso vencer (porque, na verdade, nem disputa há).

    – Inversão: a pessoa capta seu desejo e te ordena que você faça o que você diz que faz.

    Tem muitas outras reações, é gozado verificar, mas todas elas seguem no mesmo sentido: restabelecer a ordem e a ordem é que sempre haja poder nas relações. E isso pode ocorrer até com quem prega a paz e a igualdade, com um monge budista, por exemplo. Aliás quanto mais a pessoa se reveste da “capa” de pregadora, mais se apega à necessidade de poder sobre as outras.

    O rompimento desse trato social tácito é altamente subversivo, notadamente em cenários que precisam do egoísmo, como as sociedades em que o capitalismo é permitido. O capitalismo inclusive vai mais longe: diz que se você não lidera naturalmente, que force a liderança; que se você não ganha, faça o outro perder. É pecado mortal, segundo os dogmas capitalistas, relacionar-se em igualdade.

    Tenho para mim que isso ocorre porque ter poder sobre si mesmo, assenhorar-se de si aceitando-se seja como for, é, para a maioria das pessoas, muito difícil. Amar a si mesmo sem narcisismo, como diz o profeta dos cristãos, “ao outros como a si mesmo” é difícil. Difícil mas não impossível.

     

    P.S.: Consta que o Mohandas Gandhi também era assim. Recentemente um matemático russo, Grigory Perelman, resolveu um problema matemático que era tido como um dos mais difíceis que há. Por tê-lo resolvido, uma associação anglo-estadunidense ofereceu a ele um prêmio em dinheiro, US$ 1 milhão, e várias universidades dos EUA ofereceram-lhe cargo de professor. Ele recusou todas essas coisas e continua estudando e ensinando na Rússia, mesmo. O mesmo acontece com o ator Ricardo Darín e a atriz francesa Audrey Tatou: recusam-se a embarcar na vida de celbridade de Hollywood.

    1. Acho que a grande questão é:

      Acho que a grande questão é: os humanos precisam de autoridade para funcionar como uma sociedade ou isso é só resultado da cultura em que vivemos? A necessidade de autoridade faz parte da natureza humana ou aprendemos isso?

      1. A mim parece que a

        A mim parece que a necessidade de poder sobre o outro é parte da nossa natureza animal, fisiológica, biológica ou, como disse o Gollo acima, galinácea, mas não da “natureza” humana. Lembrando que a racionalidade é exclusivamente humana.

        Coloquei aspas em “‘natureza’ humana” porque talvez não haja uma natureza humana. O que chamamos de humanidade a mim parece ser invenção da nossa razão, da nossa racionalidade, como forma de garantir nossa convivência, necessária, por sua vez, para nossa sobrevivência, pelo menos em humanidade, como humanos. É que intuitivamente sabemos que sem convivência entre dois seres potencialmente humanos não se realiza nosso potencial biológico inato para a Humanidade.

        Além dos relatos ficcionais, ainda que baseados em fatos reais, que viraram os filmes “Kaspar Hauser”, do Herzog, e “O menino selvagem” (L’enfant sauvage), do Truffaut, temos registro documentais de seres potencialmente humanos ainda vivos, por exemplo, Oxana Malaya, da Ucrânia, ou outras chamadas “feral children” que, privadas do contato com pessoas que realizaram seus potenciais humanos, comportam-se apenas pela parte animal. Parafraseando a Simone de Beauvoir, acho que a gente não nasce humano, pode tornar-se humano ou não.

        E tenho a impressão de que se não fosse pelas ações que levam uma pessoa desejar poder, senão pela superioridade de suas ações, pela sabotagem à outra, estaríamos em momentos muito melhores para todos nós. O que mata, a meu ver, é que temos sido coniventes e até incentivadores da sabotagem uns aos outros.

        Não creio que nas experiências de socialismo democrático que temos vivido haja pessoas “perfeitas” nesse quesito. Mas a questão que levanto é a da proporcionalidade: quanto menos competitivo e mais colaborativo, mais realizamos o potencial que temos para a humanidade. Estimular o individualismo, como está nos dogmas capitalistas, é andar prá trás.

        Tem quem diga que a humanidade é “podre”. Acho que isso não é verdade. A mim parece que o lado “podre” da gente não é a instância humana e sim a biológica, animal. Assim o que é “podre” não é a humanidade, é a animalidade em seres potencialmente humanos, é a não-realização dos potenciais.

    2. Interessante o seu ponto,

      Interessante o seu ponto, acho que você está se referindo ao estabelecimento da “ordem das bicadas” entre nós, humanos, fenômeno estudado primeiramente em galinhas. O evento consiste no estabelecimento da hierarquia de dominância no grupo, e parece ser bastante universal, em decorrência do fato de que a definição de quem pode bicar quem resulta na redução de conflitos na comunidade, o que tende a favorecer o grupo como um todo.

      Sendo criaturas racionais, poderíamos reduzir os conflitos de uma forma mais equitativa, sem fazer uso dessa forma de dominação, como fazem os animais. Deveríamos mesmo tentar superar esse atavismo, tratando a todos de maneira afável e equânime, como iguais. Mas como somos muito mais guiados pelo hábito que pela racionalidade, continuamos, tolamente, competindo uns com os outros pelo estabelecimento dessa futilidade mesquinha.

      1. Acho que o estabelecimento de

        Acho que o estabelecimento de poder num grupo não reduz os conflitos, apenas os mascara, caro Gollo. E é uma forma não-sustentável de tentativa de redução de conflitos porque sempre vai haver o momento em que quem detém o poder fará de tudo para não perdê-lo, inclusive reprimr o outro. E a ideia de Humanidade é intrinsecamente relacionada à da Liberdade. E aqui está, a meu ver, uma aparente contradição: como falar em liberdade se o fundamental para a convivência em grupo são as leis, as regras, os combinados?

        Mas acho que isso apenas aparenta ser contradição porque acredito que não exista liberdade absoluta. Esse negócio de liberdade absoluta serve para fazer adolescente comprar, mas não existe. O máximo que a gente pode obter de liberdade autêntica e verdadeira é a que é consequência de responsabilidade. Sabe aquilo que você faz mesmo se ninguém disser para você fazer? Pois é, essas coisas são suas genuínas responsabilidades. Cuidou disso, se faz a liberdade. Por isso é que é arriscado deixar a responsabilidade sobre a comunidade – bairro, país, mundo – com outro: a comunidade é, para que se realize a humanidade, de todos. Acho eu…

  3. Tem um filme interessante

    Tem um filme interessante sobre algumas faces disso. “Depois da chuva” (Ame Agaru, em japonês), 1999, Takashi Koizumi.

    Em 2000 foi candidato do Japão a prêmio por academia dos EUA mas… adivinha se ganhou. Já li que esse filme é conhecido como “o filme que Akira Kurosawa não fez”. Quem o fez foi esse Takashi Koizume, que foi, a vida toda, assistente do Kurosawa. Teria feito “Depois da chuva” como homenagem póstuma ao “sansei”.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=1mR0KV-c9EY%5D

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