Vade retro, 2019! E um esperançoso e feliz 2020!!!, por Franklin Jr.

A nuvem tenebrosa que eclipsou o Cruzeiro do Sul, que despejou sobre nós um dos pesadelos mais insidiosos da nossa história no ano de 2019, não se dissipará de maneira instantânea

Vade retro, 2019! E um esperançoso e feliz 2020!!!

por Franklin Jr.

De tudo ficaram três coisas…

A certeza de que estamos começando…

A certeza de que é preciso continuar…

A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar…

Façamos da interrupção um caminho novo…

Da queda, um passo de dança…

Do medo, uma escada…

Do sonho, uma ponte…

Da procura, um encontro!

(Fernando Sabino)

Confraternizo com meus irmãos de alma e sonhos, zamigxs e compas que resistiram e sobreviveram ao triunfo da bestialidade que eclodiu neste assombroso e cruel ano de 2019 e me compadeço com os entes queridos daqueles que tombaram na resistência ao obscurantismo, à intolerância e à violência.

Mas lembremos que o triunfo da bestialidade no curso da história pode significar o interregno desencadeado pela crise (global, civilizatória), em que “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”. No interregno, como descreveu Antonio Gramsci, “uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.

Lembremos que a própria gênese do universo, em expansão dispersiva e auto-organizativa, reside numa catástrofe primordial (o Big Ben), advém de disparidades que geraram metagaláxias, quasares e forjaram inclusive a vida na Terra. E eis-nos, segundo Edgar Morin (in: Terra-Pátria), “num universo em que o caos funciona, e que obedece a uma dialógica na qual ordem e desordem não são apenas inimigas, mas cúmplices para que nasçam suas organizações galáxicas, estelares, nucleares, atômicas”. A própria conformação de nosso planeta advém de uma “aventura prodigiosa, feita de movimentos dissociativos, reassociativos, verticais, horizontais, de derivas, encontros, choques, curto-circuitos, quedas catastróficas de grandes meteoritos, glaciações e aquecimentos”. A consciência cósmica, de que “somos filhos desse cosmos, que carrega em si nosso nascimento, nosso devir” (Edgar Morin), é chave para desvendar outros patamares de coexistência e de bem viver. Essa consciência cósmica e planetária, tão sofisticadamente aguçada nos saberes e modos de vida dos povos originários, sinaliza uma perspectiva expandida do humano, de uma humanidade presente também nos outros seres que coabitam a biosfera. Conforme relata Ailton Krenak (in: Ideias para evitar o fim do mundo), “uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra”.

Mas em meio ao turbilhão do mundo cão, ao rebaixamento do horizonte da realidade brasileira e ao recrudescimento das relações, tão bem representados pelo finado 2019, aprendamos e inspiremo-nos na hidropoética dos versos de Thiago de Mello: “Como um rio… se tempo é de descer, reter o dom da força, sem deixar de seguir. E até mesmo sumir, para subterrâneo, aprender a voltar e cumprir, no seu curso, o ofício de amar”.

Mais do que um “desenredo” em que o “olhar que prende anda solto” e o “olhar que solta anda preso” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), no ano de 2019 triunfou uma usurpação regida pelas voracidades escatológicas de uma radical mercantilização da vida e da natureza que, como ensina David Kopenawa, tem sua força motriz destrutiva numa pulsão coisificante, “na paixão compulsiva do homem branco (o homem capitalista) pela mercadoria” que nos conduz, inexoravelmente, para a “queda do céu” (o fim do mundo). Usurpação essa orquestrada pelas sombras do imperialismo, do neocolonialismo (epistemicida, etnocida, genocida e ecocida) e do neoliberalismo (privatista, patrimonialista), tendo como pontas de lança o modus operandi de uma juristocracia tirânica e inescrupulosa (com o uso do lawfare), do cristofascismo e outros estratagemas ardilosos.

É preciso fôlego de baleia, inteligência ancestral e paciência estratégica para decifrar a perversidade desse assédio distópico e para construir estratégias não apenas de sobrevivência aos abalos sísmicos, como também de reconquista do horizonte utópico e do fazer político. Como diz o Ailton Krenak (Idem), “talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos”.

É preciso que nos irmanemos cada vez mais e fortaleçamo-nos uns nos outros para dar vazão ao espírito do tempo da emancipação e da libertação. Esse espírito de um novo tempo, forjado em lutas históricas (das mulheres, dos povos originários, do movimento negro, dos partidos de esquerda, do movimento camponês, do movimento sindical, da comunidade LGBT, das comunidades tradicionais e outros coletivos fundamentais) acumulou sabedorias e experienciou conquistas emblemáticas ao longo de uma truncada redemocratização e, sobretudo, na década dos governos de inspiração democrático-popular. De caráter emancipatório, transformador e libertário, esses movimentos também incidem sobre a dimensão micropolítica (da pulsão vital) das intersubjetividades, nutrindo um novo e fecundo imaginário coletivo que poderá reverberar como muito mais potência no futuro. Como detecta Suely Rolnik, “nesses movimentos está se operando uma verdadeira ruptura com a subjetividade colonial, racializada, capitalista, antropo-euro-falo-ego-cêntrica, e esta ruptura é irreversível”.

Precisamos (re)descobrir, (re)construir e/ou (re)inventar os meios de fazer fluir as brasilidades historicamente silenciadas e apagadas pelos mecanismos da colonialidade. Também urge cartografar a gênese, a dinâmica e o alcance do projeto de destruição programada do país que marcou o ano de 2019, a fim de sedimentar o terreno para derrotá-lo no porvir. Que a virada de ano seja um momento de revigoramento deste desejo (que é também uma necessidade existencialmente irrenunciável).  

Como proclama o poeta Bené Fonteles, é preciso trabalhar “a alma mestiça indígena, negra, sem gênero, sui generis, original, singular, plural, amorosa, generosa, altruísta, porreta e retada” das nossas brasilidades. É preciso resgatar os brasis profundos e os braxis plurais, a brasilidade ancestral do samba, dos terreiros, das aldeias, dos quilombos, dos carnavais, da capoeira… pra que “a ginga vença a gangue” (TT Catalão). É dessa diversidade que deriva a nossa brasilidade e é na nossa brasilidade (essa que é plural, diversa, inclusiva, inventiva, insubmissa) que reside a força motriz que produzirá insurgências libertadoras.

A nuvem tenebrosa que eclipsou o Cruzeiro do Sul, que crepusculou de canto a canto o céu azul anil do Brasil e despejou sobre nós um dos pesadelos mais insidiosos da nossa história no ano de 2019 (açodado pelos entulhos degenerativos do golpe de 2016 e da fraude eleitoral de 2018), não se dissipará de maneira instantânea, num toque de mágica. Contudo, é valiosa para o ano de 2020 a consciência de que será possível dissipá-la num momento futuro, de tal maneira que é preciso fazer de 2020 o ano da preparação inteligente, amorosa, inventiva e sagaz para sensibilizar novos corações e mentes, arruinar a cultura do ódio e da intolerância e para quebrar o sistema de dominação e opressão. Que 2020 seja o ano da consciência de que isso é possível, ainda que não seja de imediato.

Pilotada pelo submundo do estado profundo do imperialismo, das finanças globais, das megacorporações multinacionais e pela porção sabuja, entreguista e lesa-pátria das elites locais, a  máquina da destruição seguirá a todo vapor no seu ritmo devastador. Cabe-nos jogar areia na sua engrenagem, assim como o desafio de traduzir essa metáfora em ações políticas efetivas.

Então, é preciso fazer de 2020 o ano da fecundação das esquinas do tempo para uma futura virada exponencial, pois “é que o sistema quebra quando a gente se ama” (Maíra Baldaia).

Esperancemo-nos, pois, em 2020 (por uma questão de amor próprio, de dignidade, de irmandade e de sobrevivência), com mais avidez e com ações mais argutas, tenazes e irreverentes. Que 2020 seja o ano de dar nomes aos bois, botar os dedos nas feridas, a mão na massa, a cabeça erguida e os pés nas ruas… bora?!?

Redação

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