Xadrez das pautas identitárias como centro da democracia, por Luis Nassif

A Terceira Via está coalhada de cadáveres políticos que ficaram pelo caminho. Basta um olhar rápido sobre o Brasil real atual para se perceber o anacronismo embolorado das teses salvacionistas

Peça 1 – os bandeiras anti-identitárias

A direita continua atrás do seu El Cid, o Campeador, algum ente mágico – de preferência morto de ideias e de propostas – que possa levar as bandeiras do mercado e da ultradireita à vitória.

É curioso como as bolhas vão tentando formatar a imagem de seus candidatos a herói.

Os grupos de mídia – também reduzidos a bolhas -, criaram a fantasia de Luciano Huck e de seu mentor, o ex-governador Paulo Hartung, como um Aristóteles de um futuro Alexandre, o Grande. Bem que o Estadão colocou Huck entrevistando os grandes personagens do liberalismo mundial. Mas ele preferiu garantir o programa do Faustão às miragens da presidência. 

O vácuo é tão grande que qualquer aventureiro se julga em condições de lançar mão da coroa, sem nenhum respeito pelo ridículo. É só conferir a sub-micro bolha de Aldo Rebelo, confiando em meia dúzia de ruralistas e militares de pijama de suas relações, para lançar-se com uma plataforma de candidato do Clube Militar – contra ONGs, contra pautas identitárias. Sua maior acusação ao PT é de ser dominado pela praga das pautas identitárias. Transforma a grande virtude em defeito, usando o mesmo bordão do Instituto Força Brasil.

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A Terceira Via está coalhada de cadáveres políticos que ficaram pelo caminho: Henrique Mandetta, que iniciou o desmonte da Saúde antes da pandemia; Sérgio Moro, que se escusa por não conseguir juntar duas ideias em um raciocínio lógico. Ainda se mantém o governador gaúcho Eduardo Leite, cujo maior ato de coragem foi ter se assumido gay, sem aderir à pauta identitária; e João Dória Jr, o governador que, quando prefeito de São Paulo, em pleno inverno paulistano, expulsava sem-tetos das ruas com jatos de água gelada.

A pauta anti-identitária atrai também lideranças de esquerda, personalidades jurídicas, assim como a direita-militar, convictos de que só se salvará o País com um Projeto de Nação, nome pomposo para se apresentar como salvador da pátria.

No fundo, todos vendem o mesmo xarope: se minhas ordens, como El Conductor absoluto, forem obedecidas, todos ganharão; já pautas identitárias atrapalham a ordem unida, dispersam o movimento e trazem confusão.

É um argumento compartilhado pelo bolsonarismo, pelo Partido Militar, pelo stalinismo fora de época de Aldo, pelas esquerdas e direitas condutoras de povos. 

Sugiro que todos esses condutores da pátria sejam embrulhados, empacotados e enviados ao inferno das boas intenções.

Basta um olhar rápido sobre o Brasil real atual para se perceber o anacronismo embolorado das teses salvacionistas.

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Peça 2 – a democracia contemporânea

Os críticos das pautas identitárias não se dão conta dos avanços da democracia e análise da história.

Primeiro, o fato de que projetos nacionais de desenvolvimento nunca levaram à redução das desigualdades. Todos os discursos em favor da educação tratavam os vulneráveis apenas como insumo, como mão-de-obra. Foi o surgimento de movimentos identitários que permitiu os grandes avanços, as políticas de cotas, a explosão das lutas contra o preconceito, as grandes políticas sociais universais.

Segundo, o avanço das pautas identitárias é sem retorno. É um salto de modernidade política que não pode ser desfeito, assim como o voto das mulheres, dos analfabetos, dos negros. É o ponto em comum entre a esquerda humanista e a centro-direita civilizada, setores da mídia que começam a perder o medo, sociedade civil. É o caminho mais profícuo para deixar de tratar as questões sociais como caso de polícia.

Por modismo ou não, a nova onda – pró-pautas identitárias – permitirá, mais à frente, que sejam execradas atitudes da Justiça, como prender lideranças dos Movimentos Sem Terra, dos Movimentos Sem Teto, das lideranças de motociclistas de aplicativos. Esse bom-mocismo atrasado da mídia só ganhou consistência com a consolidação dos grupos identitários e seus intelectuais, apresentadores e apresentadoras de TV desfraldando as bandeiras de seus respectivos grupos.

Não há retorno possível. É impossível enquadrar o país de hoje, com uma sociedade civil pujante, cada vez mais organizada, apesar do pesadelo bolsonarista.

Em vez de adaptar a realidade aos sonhos do Grande Projeto Nacional, o desafio é pensar na montagem do grande projeto levando em conta essa nova realidade política. O Grande Projeto será resultante, não roteiro para ordem unida.

A rigor, o único partido que entendeu a consolidação das pautas identitárias com as redes sociais foi a Rede Sustentabilidade, na campanha de Marina Silva. As principais bandeiras sociais foram desenvolvidas por cada grupo identitário.

Mas havia uma malandragem que comprometia o resultado: por trás de tudo, as pautas serviam de biombo para as propostas de redução do papel do Estado, única entidade capaz, efetivamente, de produzir ações visando reduzir a desigualdade.

Peça 3 – o PT e as pautas identitárias

É aí que entra o diferencial do PT.

Os governos do PT – Lula e Dilma – cometeram muitos erros graves:

• subordinação da política econômica ao mercado, situação revertida apenas no período 2008-2010, graças ao Senhor Crise.
• Submissão aos militares, que passaram a ocupar cargos em número cada vez maior no poder civil, especialmente no Ministério da Defesa.

• Pouca atenção à melhoria dos serviços públicos.

• Total anomia em relação à comunicação, exceto na decisão da Secretaria de Comunicação Social de ampliar o universo de patrocínios a veículos fora do circuito da grande mídia.

• Ênfase na política de campeões nacionais e de valorização dos grandes setores, perdendo de vista as visões sistêmicas de desenvolvimento.

• Disseminação de grandes projetos públicos sem o necessário preparo nos fundamentos da nova política.

No campo econômico, também avançaram em pautas relevantes:

• as políticas de conteúdo nacional da Petrobras;

• O financiamento dos grandes estaleiros nacionais, destruídos pela Lava Jato;

• Programas inovadores nas áreas de ciência e tecnologia.

• Expansão da exportação de serviços, criminalizada depois por procuradores ignorantes de Brasília.

• Diplomacia comercial, que teria permitido ao país fincar raízes na América Latina e África, destruída pela Lava Jato.

Mas é no plano político-social que Lula se tornou fundamental. E mostrou que o estado da arte, nas políticas públicas nacionais, não estava no Banco Central e suas planilhas ou nos órgãos de controle, mas na área social e na conjugação das políticas públicas com pautas identitárias.

Há os planos com visibilidade e com efeitos relevantes no combate à miséria:

• Bolsa Família

• Cisternas

• Luz Para Todos

• Brasil Sorriso

Programas muito bem sucedidos nas áreas de educação e pesquisa:

• Ampliação das universidades federais e dos institutos federais de pesquisa;

• O Plano de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb)

• O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). 

• Ciência Sem Fronteiras.

Mas a grande mudança estrutural foi transformar as secretarias sociais em Ministérios. A ampla desinformação da imprensa comprou a lorota de Michel Temer, de enxugamento da máquina, com a volta dos Ministérios a secretarias.

Tratava-se de um embuste com propósitos políticos. A transformação das secretarias nacionais em Ministérios não aumentou sua estrutura. Apenas permitiu que ganhasse relevo político internamente, valendo-se de uma fórmula campeã. São os ministérios fortes que têm mais condições de influir no país, pois dispõe de recursos para obras e programas. 

Os Ministério Sociais deveriam, então, participar de cada programa para incluir neles as pautas identitárias e, mais que isso, zelar pelo cumprimento dos princípios apresentados pelas Conferências Nacionais. Enquanto secretarias, não tinham status para negociar com Ministérios.

Pauta 4 – o novo modelo de democracia

A montagem do grande pacto nacional não poderá prescindir desse aprofundamento da democracia, se pretender romper de vez com os esbirros autocráticos intermitentes.

O primeiro passo é considerar as pautas identitárias, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil – sindicatos, associações empresariais, ONGs -, associações de prefeitos, governadores, e secretários temáticos, como elementos indissociáveis e personagens centrais da democracia.

Esse modelo foi desenvolvido pelo mais preparado politicamente dos assessores de Lula, Gilberto Carvalho, mas enfrentando resistência grande de Dilma Rousseff. Inicialmente pela obrigação de prestar contas a grupos minoritários. Depois, por ser alvo de uma mídia despreparada e inculta, tratando esse modelo como venezuelização e quetais.

E nem se pense em preconceito de classe. Da mesma maneira, Dilma sufocou o Conselhão e os grupos empresariais reunidos em torno da Associação Brasileira para o Desenvolvimento Industrial (ABDI).

Aliás, o próprio Fernando Haddad, grande gestor, se sentia incomodado em prestar contas de suas políticas aos beneficiários, em geral grupos barulhentos meio desorganizados.

Quanto Temer iniciou o desmonte de políticas fundamentais, percebeu-se mais claramente os efeitos dessa alienação dos grupos dos processos de decisão: sequer saíram às ruas para defender políticas das quais eram beneficiários.

O aggiornamento – do aprofundamento da democracia -, portanto, tem que ganhar corações e mentes da esquerda e do centro-direita e de gestores de todos os naipes. E ser peça essencial na construção dos programas nacionais. O Grande Projeto tem que nascer daí, como consequência desse painel multisetorial, conduzido por princípios fundadores da novíssima República:

1. O cidadão como peça central das políticas públicas.

2. Defesa dos direitos fundamentais, à vida, à alimentação, saúde, educação, segurança.

3. Redução das desigualdades.

4. Ampliação dos fóruns de decisão para erodir o poder absurdo do mercado sobre as políticas públicas.

5. Políticas públicas sistêmicas, substituindo o primarismo das políticas de objetivo único.

6. Recuperação dos principais instrumentos de políticas sociais.

7. Democratização do sistema político, com o fim dos partidos de dono e a democratização dos partidos orgânicos.

Aliás, depois de contemplar esse multicolorido da sociedade civil brasileira, planos de salvação nacional, e grandes condutores de povos tornam-se miragens irremediavelmente velhas e emboloradas.

Pauta 5 – quem poderá conduzir esse pacto

Nesse novo modelo, o padrão habitual de aparelhamento do Estado tem que ser trocado por um modelo de condomínio, contemplando partidos aliados, sim, mas especialmente grupos sociais multicoloridos. É nessa infiltração da sociedade na área pública que se consolida a democracia.

Como se falar em habitação popular sem incluir as experiências dos Movimentos Sem Teto? Ou falar em políticas agrárias sustentáveis sem a tecnologia do Movimento dos Sem Teto? Ou definir políticas científico-tecnológicas sem acolher as demandas da indústria?

Quem se habilita a isso?

Há dois modelos em jogo.

Um, a tal Terceira Via, tem em comum um vezo radicalmente excludente, um anti-esquerdismo exacerbado, um viés anti-Estado, anti-social e anti-planejamento seja através da virulência de Dória, desmontando todas as políticas sociais e colocando como objetivo único a privatização selvagem; ou a agressividade mais contida de Mandetta, que não vacilou em liquidar com uma política de saúde essencial – Mais Médicos – unicamente por seu vezo ideológico.

A segunda alternativa é Lula. É aí entra um ponto central, ainda não captado pelos defensores da miragem da Terceira Via.

A diferença essencial de Lula é a capacidade de estender um guarda-chuva a todos esses setores. Seu governo tinha Luiz Furlan no Desenvolvimento, Roberto Rodrigues na Agricultura, Tereza Campello no Combate à Fome e Desenvolvimento Social, MST na Agricultura Familiar. Falhou ao colocar os setores-meio – Banco Central e Fazenda – sob controle do mercado.

A interação entre programas sociais e políticas públicas macro permitiu a massificação das grandes políticas sociais. As ideias estavam disponíveis. O PSDB tinha os projetos de dona Ruth ou a Renda Cidadã do grande José Magalhães Teixeira, o Grama, prefeito de Campinas. Faltava quem? O estadista capaz de massificar a experiência. E certamente não foi FHC, nem José Serra e Geraldo Alckmin em São Paulo.

O anti-petismo exacerbado, mais do que antes, exigirá de Lula a montagem do grande arco de apoio com distribuição de poder.

A miopia em torno desses pontos, a dificuldade de enxergar o ponto central do estilo Lula – a conciliação – prende-se ao mesmo sentimento de política de guerra, que jogou o Brasil nas mãos do bolsonarismo.

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