O britânico James Lovelock e a Teoria de Gaia

Do Opera Mundi

A agonia de Gaia e os mitos da “economia verde”

Como os estudos do britânico James Lovelock podem orientar a Rio+20 a fazer os questionamentos corretos 

James Lovelock, uma das vozes mais influentes no movimento ambientalista, não é um cientista como os outros. O seu laboratório, composto por instrumentos que ele mesmo fabrica, fica no jardim de sua casa. A sua metodologia é anárquica, e se baseia em uma capacidade aguda de intuição dos fenômenos químicos e biológicos. Apesar de ser um dos pesquisadores britânicos mais influentes dos últimos cem anos, nunca mais voltou a filiar-se a um centro convencional após ter abandonado a NASA há mais de quarenta anos.

Ele não se enquadra nas subdivisões das ciências naturais que academia burocraticamente impôs. Seus escritos são interdisciplinares, discutem a origem e os limites da vida no planeta. Uma abordagem holística que conhece poucos similares em seu campo, inclusive pelo esforço em tornar seus escritos acessíveis aos leigos.

Wikimedia Commons

A hipótese de Lovelock, que continua ativo aos 92 anos de idade, sustenta que os organismos vivos são fundamentais para a regulação do clima dos planetas. Sim, dos planetas, pois a hipótese foi inicialmente elaborada para discutir a possibilidade de vida em Marte, nos anos 1960. Lovelock, na medida em que observou na atmosfera marciana, relativamente próxima à da Terra, uma variedade muito pequena de gases associados à vida orgânica, descartou a possibilidade de vida no planeta vizinho.

Anos depois, esta técnica passa a difundir-se para avaliar o impacto de nossa atividade, humana, industrial, na atmosfera da Terra, levando ao desenvolvimento das ciências do clima. O clima reagiria assim ao processo de alterações nas formas de vida, animais e vegetais, e em seus ecossistemas, impostas pelo homem. É como se, diz Lovelock, a Terra tivesse vida própria. Daí a hipótese ter sido batizada de Gaia, do nome da deusa da mitologia grega que reina sobre o nosso planeta.

Se a Terra se comporta de fato como um organismo vivo, as alterações às quais estão submetidas as diferentes formas orgânicas e inorgânicas que compõem o planeta trazem consequências diretas sobre a sua “saúde”. E Lovelock é taxativo ao afirmar que a Terra é hoje um planeta doente. Mas não um doente qualquer, pois um dos sintomas no quadro de saúde do planeta é precisamente o processo de aquecimento global, colocando no limite e em risco a própria existência humana a longo prazo. O aquecimento ocorre, segundo a análise precursora do autor, por conta da interação de gases como o dióxido de carbono que produzimos em excesso e se concentra na atmosfera, alterando o equilíbrio harmônico na composição dos gases atmosféricos.

Duas são as fontes principais deste desequilíbrio:

1) O capitalismo, cujo atual padrão de acumulação é altamente dependente do petróleo, e da ocupação de áreas de ecossistemas. Tanto a combustão do petróleo quanto o desmatamento, a poluição do mar, a mineração, são emissores importantes de dióxido de carbono.

2) O crescimento populacional. O número crescente de seres humanos no planeta é, na verdade, a maior ameaça real para o clima, devido ao seu potencial de emissão de CO² pelo simples fato de todos nós termos de respirar e liberar este gás na atmosfera.

As propostas de Lovelock para reduzir o impacto do aquecimento global, cujos efeitos já se fazem sentir por meio das mudanças climáticas em todo o planeta, são controversas: redirecionar a matriz energética para o nuclear, e adotar políticas para reduzir o tamanho da população mundial.

De qualquer modo, a leitura de sua obra – seu último livro data de 2009, The Vanishing Face of Gaia. A Final Warning (algo como A Face desfigurada de Gaia. Um último alerta) – chama a atenção para vários aspectos que têm ficado em segundo plano no debate sobre a questão ambiental, sobretudo por conta do surgimento da retórica da sustentabilidade e da “economia verde”. Às vésperas da Conferência das Nações Unidas que sediará o Brasil, a “Rio + 20”, pode ser interessante escutar os alertas de um dos maiores e mais originais pensadores da vida no planeta.

A crítica se concentra, essencialmente, no que poderíamos chamar de mitos da economia verde ou sustentável. A idéia da sustentabilidade nos vende que podemos lidar com os problemas ambientais por meio de políticas e atitudes sustentáveis, como comprar “verde” (atestando que a madeira é de “reflorestamento”), locomover-se com combustível “verde”, apagar a “pegada de carbono” plantando árvores, etc. Na verdade, o primeiro mito que Lovelock busca desvendar neste discurso da sustentabilidade, e que articula todos os demais, é a idéia segundo a qual o aquecimento global pode ser revertido.

Uma ilusão. Teremos que nos habituar com um planeta muito mais quente, pois o sistema terrestre já estaria, segundo o químico britânico, profundamente alterado. Prova disso, argumenta Lovelock – sempre com uma riqueza impressionante de dados, muitos deles coletados por ele mesmo em expedições pelo planeta – é o derretimento das calotas polares e o avanço da desertificação, em terra como no mar.

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O segundo mito é a propagação da idéia segundo a qual os invernos muito frios, como os que vêm ocorrendo mais recentemente, contestam as teses da mudança climática. Na realidade, o resfriamento é, paradoxalmente, uma consequência do próprio aquecimento global. Num primeiro momento a presença crescente de gases de efeito estufa afeta a camada de ozônio, deixando passar paulatinamente mais raios solares que incidem sobre as calotas polares. Agora o gelo está se desprendendo em quantidades importantes, derretendo lentamente ao largo dos continentes e ajudando assim a resfriar o clima. Mas, em um futuro breve, com o desaparecimento completo deste gelo, a tendência será de um aumento ainda maior na temperatura do planeta.

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Terceiro mito: as “soluções verdes” para fazer face às ameaças do aquecimento global – mudanças de atitude ao alcance da mão e do cartão de crédito. Pura propaganda, aponta Lovelock, que denuncia as “alternativas” dos biocombustíveis e da energia eólica: suas emissões são tão ou mais poluidoras que o próprio petróleo pois necessitam de grandes espaços para gerar energia, na terra e no mar, subtraindo áreas de ecossistemas.

O homem está fazendo um jogo perigoso. O nosso modelo econômico, altamente devastador e desperdiçador de recursos, pode estar colocando em risco o mundo tal como o conhecemos hoje, especialmente para as futuras gerações.

A Terra já está “reagindo”, por meio das mudanças climáticas e catástrofes naturais cada vez mais frequentes. A incidência de eventos climáticos extraordinários, como tufões, vendavais, chuvas intensas, inundações e secas, aumentou enormemente devido à voracidade com que o capitalismo avança sobre os recursos naturais.

Com a vida selvagem e seu ambiente natural ameaçados, o clima se descontrola. Há cientistas inclusive especulando se os terremotos não seriam também uma repercussão desta nossa atividade econômica e existência frenéticas. De fato, é no mínimo estranho que convivamos com um número tão grande de terremotos devastadores em um espaço tão curto de tempo. Uma conta básica indica que nos últimos dez anos houve um número maior de terremotos com mais de dez mil mortos do que em todo o século XX. Geólogos constataram que a quantidade de sismos com mais de 7 graus na escala Richter registrados apenas em 2010 é o dobro da média observada em toda a história dos registros.

A Terra é um organismo vivo, mostra Lovelock, e os biomas (como o semi-árido, a tundra, as florestas tropicais, a pampa, mas também os ecossistemas submarinos, os das cadeias de montanhas, dos altiplanos e dos desertos), são os seus órgãos vitais. Muitos destes órgãos sofreram danos permanentes, talvez irreversíveis. E, por incrível que pareça, a maior ameaça é justamente a mais perfeita criação de Gaia, o homem.

A conferência que o Brasil sedia em junho no Rio de Janeiro pode ser uma boa ocasião de se refletir seriamente sobre a necessária mudança de paradigma de desenvolvimento, para que o homem deixe de ser a praga que ameaça a sobrevivência de Gaia e volte a viver em harmonia com a mãe natureza.

Pedro Chadarevian é doutor em Economia pela Universidade de Paris, professor de Economia na Universidade Federal de São Carlos e editor do blog Outra Economia. Escreve quinzenalmente ao Opera Mundi às quintas-feiras.

Luis Nassif

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