Ainda os “enigmas” de junho de 2013

(comentário ao post “A crise irá derrubar PT e PSDB“)

Pelo que eu pude perceber até agora, e como alguém desse meio profissional, nas ciências sociais brasileiras parecem ter-se consolidado duas grandes linhagens interpretativas para dar conta do fenômeno das jornadas de junho de 2013.

À diferença da obtusidade ideológica de certa “esquerda” governista (ou talvez melhor dizendo, do governismo puro e simples), as ciências sociais partem da constatação um tanto óbvia de que junho de 2013 realmente aconteceu. E esse “realmente aconteceu” significa que ele merece ser observado como um fenômeno produzido por uma causalidade complexa, e não como mero incômodo existencial para as certezas domésticas daquela obtusidade ideológica.

Pois bem, uma dessas linhagens analíticas deposita suas fichas fundamentalmente no argumento da “sociabilidade digital” e, secundariamente, na categoria “juventude” como eixos causais suficientes para a articulação interpretativa do fenômeno. Ele passa a ser reconhecido, por meio deles, como a imanência de uma vontade de potência nietzscheana, cujo conteúdo resume-se a um instantaneísmo e a um voluntarismo reificados (ou seja, prescindem de uma lógica simbólica que os sustente — basta a “vontade de potência”).

Como sintomaticamente defende Luciano Alvarenga no seu texto, nessa “cidade digital” (essa ágora de redes sociais, que conformaria uma espécie de ágora totalitariamente suficiente), habitada por “jovens” saídos de uma espécie de éter simbólico, “a campanha maciça em torno da ideia de que a vida nada mais é que o agora, sem futuro nem sentido”… “motoriza” (a combustão desse “motor” talvez só possa ser mesmo a reação química da “vontade” com a “potência”)… “a realização dos desejos como imperativo sobre tudo e qualquer coisa”.

Creio que não é preciso acrescentar que esse tipo de interpretação congrega o pessoal dos pós-estruturalismos triunfantes: derridarianos, guattari-deleuzianos e outros pavões de sidérea plumagem. Eles andam meio de moda entre o pessoal “muderno” já há alguns anos, vitaminando a trupe festeira do pós-tudo.

A outra linhagem interpretativa (poder-se-ia dizer, de um estrato teórico mais clássico) é a que tende a reconhecer as jornadas de junho de 2013 segundo a articulação interpretativa de uma “crise da representação”. Luiz Eduardo Soares chega mesmo a falar de um “colapso da representação” (http://www.gramma.com.br/2013/11/11/entrevista-luiz-eduardo-soares-ex-secretario-nacional-de-seguranca-2003/).

Essa perspectiva lê o fenômeno como um sinal do esgotamento de um sistema de representação política fechado em si mesmo, prepotentemente autonomizado em sua própria mecanicidade, e onde as expectativas difusas na sociedade não encontram canais institucionais e organizativos efetivos que as conduzam ao âmbito da governança.

Não é que os movimentos sociais tenham se tornado caducos, é que eles se tornaram estéreis diante da estanqueização do poder governativo, e já não são mais reconhecidos como uma alternativa efetiva “ao que está aí”. Talvez não seja preciso acrescentar também que o grande ator político responsável por essa esterilidade dos movimentos sociais não foi outro que o PT no governo.

Por isso, a única forma da “esquerda” governista “entender” junho de 2013 é recusá-lo de forma às vezes menos às vezes mais peremptória, já que reconhecê-lo em toda sua extensão como fenômeno significaria reconhecer a derrota do PT no campo da legitimação social. Legitimação política não é algo que se conquista de uma vez por todas, e tampouco pela suficiência do formalismo eleitoral.

Quando a “esquerda” governista começa intuitivamente a tributar essa derrota ao papel da grande mídia, o que ela faz é apenas encontrar um bode expiatório. Ao encontrá-lo, ela tem razão apenas em parte. Apenas em parte! Hegemonia política não se constrói como função direta do jornalismo. Ela é muito mais que isso. A “resposta” à campanha da grande mídia não é, nem poderia ser, estritamente midiática. A derrota do PT se deu no campo institucional. O PT aceitou o jogo da estanqueização do poder institucional, e, ao aceitá-lo, foi derrotado pelo peemedebismo. A grande mídia simplesmente jogou o jogo tradicional que corresponde a essa ordem de coisas.

Agora, o que a leitura de uma matéria como essa do Luciano Alvarenga faz é tributar às jornadas de junhos de 2013 uma potência imponderável. Imponderável porque explicada por categorias avulsas reificadas, e não por relações causais. Movida por um irracionalismo que o faz cair nessa espécie de sebastianismo político (“a crise irá derrubar PT e PSDB”): o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Por que? Porque sim, porque está no ar uma “campanha maciça em torno da ideia de vida”. Ora, que ar, cara pálida? O universo político é um universo de relações; não é o éter.

Certas modas intelectuais e o deslumbramento de muitos “mudernos” pelo “pós-tudo” produziram recentemente um estrato ideológico que lê a política em clave hedonista, abraçando uma política infantilizada — como bem notou um outro analista, a política do “quero tudo agora e de qualquer jeito” (veja-se a propósito minha análise em http://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2014/10/a-vitoria-da-nova-politica-2375.html).

É esse estrato que está na base de algo como o sonhatismo marinista. O que faz um texto como esse do Luciano Alvarenga é desaguar esse sonhatismo crônico num sebastianismo descabelado. Esse parece ser mesmo o caminho natural e talvez até inexorável do irracionalismo na política.

 

Redação

13 Comentários

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  1. Excelente!
    Pode se

    Excelente!

    Pode se literariamente fazer um caso serio e interessantissimo (que eu nao vou escrever nem agora nem depois) sobre o fim simultaneo de ambos PT e PSDB, mas o item original sendo comentado -comum em diversos paises e sobre diversas binariedades por ser um standard analitico- nao foi escrito ainda.

  2. Não passou de “modinha”

    Não precisa gastar tanto latim com esse negócio. As tais “jornadas de junho” foram uma “modinha” das redes sociais. A tigrada ia para a rua para fazer “selfie” e postar no Facebook, Instagram, Twitter, etc. 

    Como toda “modinha”, veio e foi sem deixar rastros, a não ser os compartilhamentos e “likes”. Prova disso é o absoluto fracasso de toda e qualquer manifestação de rua desde então. Quando conseguem juntar gente, não passam de 5 mil pessoas em cidades como São Paulo, com mais de 10 milhões de habitantes.

    O tal MPL, que era o grande organizador dos protestos, não consegue juntar nem 500 pessoas atualmente. 

    1. É isso, Jorge. Nada melhor

      É isso, Jorge. Nada melhor pra definir o seu comentáro do que as palavras do João Grilo, personagem do Auto da Compadecida, do Ariano Suassuna:

      “SIMPLES, DIRETO E SEM ARRODEIOS”.

    2. Dando murro na parede

      Reiterando o autor:

      “(…) a única forma da ‘esquerda’ governista “entender” junho de 2013 é recusá-lo de forma às vezes menos às vezes mais peremptória, já que reconhecê-lo em toda sua extensão como fenômeno significaria reconhecer a derrota do PT no campo da legitimação social.”

  3. Já começa rotulando a opinião alheia de ´obtusa´

    Muito palavrório bonito para esconder uma idéia bem simplória por sinal. Na verdade há coisas muito mais profundas por trás desta catexia juvenil. Vou dar uma pista, a ambilência amor x ódio, dirigidos ao governante, tão estudada inclusive por Freud. Mais uma pista, a reversão ocorrida se deveu à omissão do poder em exercê-lo, e o povo, principalmente o jovem, inconscientemente exigem e precisam disto. Não se confunda com a violência policial, não era este poder esperado pelo povo, mas sim o presidencial, interferindo e comandando todo o processo. 

  4. Há muito mais interpretações

    Há muito mais interpretações dentro das ciências sociais do que essas duas.

    A primeira que é apontada, da ‘cidade digital’, não faz muito sentido. Ela não leva em conta que revoltas sobre o transporte tem ocorrido no Brasil há mais de 10 anos. Não leva em conta o ator militãncia (cara-a-cara) para que desencadeasse as manifestações, e nem leva em conta o papel da grande mídia no segundo momento, de dispersão de pautas e rande massificação.

     

    A segunda, a da crise de representatividade, acaba sendo uma explicação funcionalista, ou seja, parte da idéia de uma falha no funcionamento de um sistema, que assim teoricamente, funcionando corretamente, seria capaz de não deixar nada que o exceda. Oras, achar que os desejos, necessidades e subjetivdades humanas são passíveis de serem enquadradas dentro de um sistema e da representatividade não faz sentido. Não se trata de crise de representatividade, mas de que há sempre uma tendência no fazer humano, de negar as representações, mesmo que não de forma explícita. A inrepretação deve ser a partir desse fazer, e não a partir de uma suposta falha das instituições.

    1. Dogmatismo

      “há sempre uma tendência no fazer humano, de negar as representações”.

      Eis que surge mais um profeta da “natureza humana”! É a profecia do anarco-porralouquismo.

      1. Bem, então vc prefere negar

        Bem, então vc prefere negar toda a história da luta de classes, da antropologia de um Pierre Clastres e por aí vai.

        Eu poderia do mesmo jeito afirmar que se vc nega que há constantemente algo no fazer humano que nega as representações (no sentido das representações separadas e sem controle dos representados, que é sobre o que estamos falando), então é porque vc afirma a servidão voluntária como natureza humana.

        Essa tendência de toma controle direto sobre a própria vida, se negar um poder-sobre, através do seu poder-fazer, está no dia a dia de qualquer atividade de trabalho, inclusive o seu trabalho, não impora qual seja.

        1. Uau!

          É só provocar um pós-moderno histérico que ele já desata logo seu evangélio principista sobre a “natureza humana”!

          Não eram vocês que falavam tanto de desconstrução das naturalidades?… Ou tudo era só (como continua sendo) antropologia de botequim?

        2. para poder fazer é preciso exercer o poder sobre.

          Eu nunca li tanta bobagem sobre o trabalho como nos livros de Toni Negri, sua referencia implicita que você não explicitou. São puras elocubrações teoréticas, sem qualquer base empírica estatística ou histórica. Nenhum individuo que vive em sociedade tem controle direto sobre a própria vida. Nenhum ser humano é capaz de produzir tudo que necessita sozinho jamais foi. Todo ser humano precisa negociar seus desejos de forma colaborativa ou coercitiva – dependendo da estrutura social – com outros. O individuo só pode ser livre se cada um e todos tiverem poder sobre a estrutura social, se houver um controle coletivo e consciente sobre a estrutura social. O fazer o que eu quero não é liberdade, é capricho liberal. Sinceramente, acho que só Freud. Falta um principio de realidade, uma visão adulta do mundo.

          Tode ser humano individual ou coletivamente so pode fazer se exercer poder sobre a natureza, sobre os meios para poder fazer e sobre os símbolos, a cultura herdada a cada geração. Ninguem pode fazer sem ter um poder sobre, seja sobre coisas – naturais ou socialmente criadas – seja sobre a estrutura social. Na verdade o capitalismo nega o poder sobre a estrutura social para a maioria da população. Os marxistas que Negri com seu criptoliberalismo elegeu como inimigos principais chamavam isso de alienação.

           

    2. infantilismo teórico: ‘eu quero porque eu quero”!

      Oras, achar que os desejos, necessidades e subjetivdades humanas são passíveis de serem enquadradas dentro de um sistema e da representatividade não faz sentido. Não se trata de crise de representatividade, mas de que há sempre uma tendência no fazer humano, de negar as representações, mesmo que não de forma explícita

      Isso é um enorme equivoco. Em primeiro lugar aplica o conceito de representação de forma genérica. Nesse sentido, sinto muito,mas só as necessidades dos animais não-humanos não são representáveis (por eles, mas são por nós humanos!). Desde as cavernas que nesse sentido geral o homem representa seus desejos e necessidade, com pinturas, por exemplo. A representação pode não corresponder ao objeto desejado, nem ao próprio desejo, como nos sonhos e alucinação,  mas o desejo sempre se faz representar. Fazer representações de desejos e necessidades é próprio do humano(da subjetividade), que não se move apenas por seus impulsos institivos.

      Se a referência é a representação política há dois problemas. O primeiro é que coloca o problema na representação e não no seu caráter político. A representação política nunca representa uma comunidade pois essa comunidade, no mundo  objetivo da vida econômica não existe como comunidade, mas existe cindida entre os que dominam e o que são dominados economicamente. Daí que a dominação econômica se tranforma em dominação política: os representantes políticos representam os que dominam economicamente e aí está o problema e não na representação. Se há uma verdadeira comunidade econômica, pouco importa se ela tem um representante temporário, não especializado na função de representante (um “politico profissional”) e que pode ser destituído pela comunidade a qualquer momento, uma representação não hierarquica mas meramente funcional e organizativa. A maioria das associações comunitárias de caráter revolucionário sempre funcionaram assim.

      O segundo problema é supor que  a ‘democracia direta’ não apresenta a necessidade de um sistema e de uma representação. Na democracia direta as pessoas devem representar a si mesmas, não?? ou o seu desejo não deve ser expresso (representado) para que ela funcione? Em segundo lugar em não havendo um sistema, se alguém supostamente exige o fim da associação comunitária ou se tornar representante da comunidade pela democracia direta e isso é aceito, então a democracia direta acaba?? ou é preciso ‘enquadrar desejos e subjetividades’ em um sistema de democracia direta para que ela funcione? ou então é só o eterno retorno do caos que temos pela frente e que está sendo proposto?

      Mas é claro seu comentário apela para a subjetividade, o desejo, pouco se importanto com a realidade material objetiva e com a vida em sociedade, com o conflito e cooperação entre subjetividades que desejam e tem necessidades. Aí se encontra o pior de tudo: a ideia de que a subjetividade desejante é toda poderosa, que o indivíduos são bolhas desejantes que não ‘se enquadram dentro de [nenhum] sistema [social] é a hipótese antropológica de fundo do liberalismo,que o neoliberalismo levou ao paraxismo do anarcocapitalismo de Ron Paul e seus asseclas. Pode se fazer mil e umas elocubrações retóricas para redefinir o desejo, mas seja lá como o individuo desejante deseja, representando ou não seus desejos, usando ou não qualquer racionalidade – maximizadora ou não – para satisfazê-los, no final da curva os autonomistas se encontram de braços dados com os neoliberais.Os ultraliberais que não são nem ingênuos nem confusos, já adotaram o nome de libertários, não foi a tôa, encontraram base para isso….

  5. Já estou com saudade de Sarney

    O PT aceitou o jogo da estanqueização do poder institucional, e, ao aceitá-lo, foi derrotado pelo peemedebismo.

    O PT aceitou o jogo da estanqueização? Já estou com saudade de Sarney, um macaco velho que trocava cargos por votos no Congresso.  Se Dilma tivesse adotado o velho esquema o Eduardo Cunha não teria a menor chance, mesmo se sabendo que para se eleger, ele prometeu, por exemplo, 8 bilhões de reais para os parlamentares através da aprovação do orçamento impositivo. Quer dizer, Dilma rompeu com o velho esquema mas caiu numa situação pior ainda.  Será que foi acertado Dilma romper com a velha lógica de se trocar um cargo de ministro por cargos no Congresso? Quantos votos tem Kátia Abreu no Congresso? Quantos votos tem Levy no Congresso? E o sucessor de Edson Lobão? Será que dá para por fim ao velho toma á dá cá? A eleição de Eduardo Cunha como presidente do Congresso está apontando que não é possível governar sem o velho uma mão lava a outra. Ao romper com  isso Dilma ficou em maus lençóis. No momento o jogo está nas mãos de quem? O PMDB é apenas uma das peças do xadrez.

  6. Deixa um anti-coxinhas reaparecer no sábado?

    Dilma não está tendo um segundo governo, pois o país está sofrendo um arrastão econômico.

    Dentre os partidos políticos, Lava Jato, MPF, Banco Central, ministros do mercado, grupos de interesses no Congresso, mídia prostituta; a lista deturpada é grande pelas inúmeras atitudes destes servos culturais no que toca aos investigados da Petrobras!

    Onde paramos? Tudo isso que acontece no Brasil vai fundo na ênfase do contexto de (des)governar com um dinheiro instruído para o evento final: roubar a vontade do povo e doutriná-lo com birras políticas, em desfavor de edificar as transformações sociais.

    Lembrem-se que esse dinheiro missionário, condicionado apenas para ficção da realidade, e que está sendo gasto sem limites, é um valor totalmente digital (criado do nada, fora do espaço que nos cerca).

    Querendo ou não,  os culpados disto que está ai se colocaram na liderança do arrastão econômico, por causa da falta de pessoas capacitadas em relação aos verdadeiros fundamentos da economia nacional.

    A única chance que temos é nos agarrar ao real, para contribuir com as instituições como Banco do Brasil, CEF, BNDES e a própria Petrobras que eles querem jogar na lama.

    O desespero destes especuladores financeiros é que havia um espaço vazio para o dinheiro ser preenchido com o nosso valor real.

    A frase arrastão econômico significa roubar o valor original, que ainda é um meio interior da gente com as estatais, no rastro do mercado financeiro.

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