A responsabilidade do Estado na proteção dos gays

Do Justificando

Estado, sou gay!

Por Renan Teles

Em tempos de Projeto de Lei (PL) n. 6.583/13 (Estatuto da “Família”), PL n. 1.672/11 (Criação do Dia do Orgulho Heterossexual), PL n. 7.382/10 (penaliza discriminações contra heterossexuais) e outros que pretendem retroceder na temática do direito à diversidade sexual, mostra-se necessário reafirmar os limites – que os Estados possuem para interferirem na vida privada e familiar, principalmente quando motivadas por discriminações, positivas ou negativas, referentes à condição sexual das pessoas.

Não se discutirá, no presente, se há uma família gay ou se sua tipologia jurídica é constitucional. Afinal, o STF (ADPF 132 e ADI 4277), verdadeiro guardião da Constituição Federal, já reconheceu as uniões homoafetivas, com todas as extensões de direitos civis a elas inerentes, motivando, inclusive, o Conselho Nacional de Justiça (Resolução n. 175/13) obrigar todos os cartórios extrajudiciais a realizarem o casamento gay. Realidade de forte importância histórica para o movimento LGBTI (lésbicas, gays, transexuais, transgêneros e interssexuais) e que não pode ser passível de retrocesso.

O reconhecimento do “sou gay” não é circunstância que deve ficar restrita aos lares, processo que ainda está longe de alcançar sua plenitude, tendo em vista inúmeros casos em que o desamparo e a discriminação são as adjetivações que circundam as histórias de gays. O reconhecimento deve ultrapassar as fronteiras privadas, para abarcar a própria ordem social e jurídica. Enquanto existirem embates, discursivos ou físicos, para a restrição ou não extensão de direitos à comunidade LGBTI, é sinal de que maior deve ser a resistência e a luta para a plenitude igualitária.

É fácil vislumbrar motivos que levam determinados grupos sociais preferirem a indiferença ou a remessa dos indivíduos para a penumbra dos locais excludentes em uma verdadeira cruzada para a ocultação da identidade do Outro. Trata-se da própria ausência de identificação com as diferenças. Não se reconhecer no Outro, quando este não é espelho ou não é um reflexo esperado, representa a negação das subjetividades. Afinal, toda a construção do sujeito repousa justamente no diálogo incessante que mantém com o Outro.

Mas, como nenhuma concretização no âmbito dos Direitos Humanos é automática, senão construída, é imperioso mencionar que o Estado tem o dever de reconhecer que a condição sexual, motivada pela diversidade afetiva, é circunstância inerente à dignidade do sujeito, merecedora de tutela e proteção. É preciso criar condições que permitam o reconhecimento do “sou gay”, independente de que espaço as pessoas ocupem, ou de opiniões contrárias, ainda que advindas de uma suposta maioria. Deixar de ser diferente para ser igual é esvaziar a própria ideia de igualdade .

A omissão do Estado na elaboração de políticas públicas e na regulação de matérias sensíveis fomentam, ainda mais, o alto teor de discriminação a que gays são forçadamente submetidos. O silêncio estatal não é só fonte de agressão direta, mas desencadeador de uma conflituosidade social que acaba por macular o direito à diferença. O que se discute não é somente a extensão de direitos, mas a própria aceitação do ser diferente e o irrefutável papel do Estado enquanto depositário e garantidor dos Direitos Humanos, dentre eles o inegável direito à diversidade.

No caso “Atala Riffo e crianças x Estado do Chile”’, a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que “a extensão do direito à não discriminação por orientação sexual não se limita à condição de ser homossexual em si mesma, mas inclui sua expressão e as consequências necessárias no projeto de vida das pessoas”. Trata-se de importante decisão que reconheceu a responsabilidade internacional do Estado do Chile por ter utilizado a condição sexual (homoafetiva) da Sra. Atala Riffo para, em processo judicial, conceder a guardar dos filhos ao genitor, face ao fato de, após o divórcio, a Sra. Atala viver uma relação homoafetiva.

Entendeu a Corte Interamericana que a condição sexual não pode ser utilizada pelo Estado como elemento de discriminação, além de merecer a devida proteção e reconhecimento institucional. Por se tratar de decisão construída no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, poderá servir de paradigma futuro na absurda eventualidade do Brasil retroceder sobre o tema, ao invés de aperfeiçoá-lo.

Conforme restou evidenciado, inclusive da decisão mencionada, o reconhecimento do “sou gay” pelo Estado e pela sociedade é uma caminho inafastável, mas que depende da luta incessante da comunidade nacional e internacional favorável e entendedora da importância do tema. Resta ao futuro afirmar se será um processo natural ou, tal como no presente, íngreme e doloroso.

Renan Teles C. De Carvalho é Procurador do Estado de São Paulo. Pós-graduando em Direito Internacional (PUC.SP). Membro do Olhares Humanos.

 

Redação

Redação

View Comments

Recent Posts

Justiça determina novo prazo para prescrição de ações de abuso sexual infantil

Em vez de contar a partir do aniversário de 18 anos da vítima, prazo agora…

2 horas ago

O que diz a nova lei para pesquisas com seres humanos?

Aprovado pelo Senado, PL segue para sanção presidencial e tem como objetivo de acelerar a…

3 horas ago

Da casa comum à nova cortina de ferro, por Gilberto Lopes

Uma Europa cada vez mais conservadora fala de guerra como se entre a 2ª e…

3 horas ago

Pedro Costa Jr.: Poder militar dos EUA não resolve mais as guerras do século XXI

Manifestantes contrários ao apoio dos EUA a Israel podem comprometer a reeleição de Biden, enquanto…

4 horas ago

Economia Circular e a matriz insumo-produto, por Luiz Alberto Melchert

IBGE pode estimar a matriz insumo-produto nos sete níveis em que a Classificação Nacional da…

5 horas ago

Os ridículos da Conib e o mal que faz à causa judia, por Luís Nassif

Conib cismou em investir contra a Universidade Estadual do Ceará, denunciada por uma postagem na…

6 horas ago