Foi uma tarde memorável, esta última quinta-feira, dia 4 de outubro. No presídio feminino de Santana, em São Paulo, fomos visitar Ednalva Franco e Janice Ferreira (conhecida como Preta), presas há cem dias sem julgamento. Em nome da Comissão Arns, Margarida Genevois, Maria Hermínia Tavares de Almeida e eu estávamos apreensivas: como iríamos encontrá-las, em que poderíamos ajudar, teríamos liberdade para uma conversa franca?
Sabíamos que eram lideranças do movimento de trabalhadores Sem Teto do Centro (MSTC) e a Comissão Arns entendeu que se tratava de um caso pertinente a uma área de nossa atuação, que se refere à “criminalização de movimentos sociais”. Sabíamos que estão bem acompanhadas por advogados (as) vinculados (as) a entidades de defesa dos direitos humanos. Mas não conhecíamos suas lutas, suas dores, suas vidas, suas esperanças.
Fomos encaminhadas a uma sala, em tudo parecida com qualquer sala de repartição pública: mesa grande, cadeiras, escrivaninhas, computadores e dois funcionários, um uniformizado. Elas chegaram um pouco tímidas, mas com brilho nos olhos. Nós três nos apresentamos e as advogadas Ana Paula e Viviam explicaram por que ali estávamos. E as presas falaram livremente, com emoção e firmeza. E fomos, aos poucos, compreendendo a extraordinária força moral dessas duas mulheres!
Ambas se apresentaram como pessoas que já nasceram discriminadas: mulheres de famílias pobres, nordestinas e negras, nesta sociedade patriarcal, machista, racista e marcada pelas mais profundas desigualdades. E conseguiram vencer tantos preconceitos, completaram cursos superiores (o que lhes garante, hoje, a tal “prisão especial”) e consideram a luta uma obrigação social, algo natural, assim como participar de festas religiosas nas comunidades.
Janice, a Preta, de aparência bem muito jovem para seus 35 anos, falou primeiro, com a vivacidade de quem é atriz e cantora, destacando a trajetória familiar, já que tem irmãos militantes e sua mãe é Carmem Ferreira, a grande líder do Movimento, recentemente garantida por um habeas corpus. Ednalva, de 47 anos completados na cadeia, tem o ar sofrido da mãe longe dos três filhos, o menor ainda adolescente. Ambas falaram que a pior dor é não saber o que está acontecendo com os seus queridos (“nossas famílias foram destruídas, vamos ter que reconstruir os laços”), assim como não saber quando serão julgadas, o que as espera.
Durante as falas fiquei observando também a emoção de Margarida, presidente de honra da Comissão. Aos 96 anos, enfrentou uma escada longa e íngreme sem hesitar um segundo. Lembrou às moças suas visitas a presas e presos durante o regime civil-militar, e como recebia os familiares e intermediava notícias – por isso entende bem o que elas sentem e quer ajudar em tudo que for possível. Enviar livros, por exemplo. Elas contaram como é horrível ficar sem ter o que fazer e devoram os livros, às vezes um por dia. O final das tardes tem a hora temida, 17hs, quando são trancadas em cada cela, sem qualquer outro contato, esperando a noite sem sono.
Ednalva contou que começou a militância aos 17 anos, logo tem uma história de 30 anos de lutas. Mostrou as marcas dos tiros de borracha da polícia, durante passeatas e manifestações. Mas em momento algum disse que está cansada da luta; pelo contrário, ela e Preta foram enfáticas ao afirmarem que, ao sair da prisão, continuarão a militância, desta vez juntando o direito a moradia às lutas pelas mulheres presas. O que elas querem é o básico da Declaração Universal de Direitos Humanos e de nossa Constituição: a igualdade na dignidade!
Elas lembraram o trágico fim de Marielle Franco e disseram que o fato de estarem presas talvez as tenha protegido (” a mão de Deus”). E contaram das presas comuns, sem família, sem um movimento forte que as apoie, a não ser elas duas, que se tornaram a “família” das presas abandonadas, que voltarão para as ruas com alta probabilidade de por qualquer coisa retornarem à prisão.
Que bela lição nos deram Preta e Ednalva! Não estão preocupadas só consigo mesmas e seu destino, mas com quem não é “visível” para a sociedade. Falaram que sabem como é importante ser “a voz de quem não tem voz”, o grito de quem não tem advogado nem amigos.
Saímos de lá com a certeza dos deveres que temos por sermos privilegiadas (o que é óbvio) e mais ainda com o compromisso de reforçarmos, na Comissão Arns e seus parceiros, a preocupação com a criminalização dos movimentos sociais e com as condições de vida das mulheres confinadas.
Obrigada, Ednalva e Preta! Vocês não estão sós. Um abraço solidário e … a gente se verá, na luta.
Maria Victória Benevides, integrante da Comissão Arns, é socióloga, cientista política e professora titular da Faculdade de Educação da USP.
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pois é srs e sras : esta é mais uma frente de LUTA e não somente Lula Livre !
Que tal uma vigilia 24 h e pressão sobre mais este absurdo ?
Estamos em pleno fascismo e o povo tem que se levantar ante que cheguemos a um Equador da vida.