Fernando Castilho
Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.

O Declínio do “American Way of Life” e a Ascensão Cultural do Oriente, por Fernando Castilho

O soft power, outrora uma narrativa vibrante de liberdade e oportunidades, foi substituído por discursos de medo, censura e confronto.

O Declínio do “American Way of Life” e a Ascensão Cultural do Oriente

por Fernando Castilho

Durante o século XX, os Estados Unidos foram os grandes influenciadores da cultura global. De Hollywood ao rock’n’roll, dos fast foods à moda casual, do “self-made man” ao sonho americano, os EUA criaram um modelo de vida que não apenas inspirava, mas também dominava. Quem nunca procurou com avidez uma calça Lee? Esse tão celebrado “American Way of Life” sustentava-se em três pilares essenciais: uma economia forte e inovadora, uma narrativa moral global (liberdade, democracia, direitos humanos) e um soft power carismático, acessível e aspiracional.

No entanto, os ventos mudaram. Medidas adotadas nos últimos tempos, como tarifas protecionistas, cortes em programas sociais, agressividade nas relações exteriores e ataques à imprensa e às instituições democráticas, deram novo tom à imagem dos EUA. O país, outrora visto como símbolo de acolhimento e inovação, é agora percebido como uma nação dividida, isolada e em crise.

O pilar moral se enfraqueceu à medida que os EUA abandonaram compromissos com os direitos humanos, o meio ambiente e a cooperação internacional. O soft power, outrora uma narrativa vibrante de liberdade e oportunidades, foi substituído por discursos de medo, censura e confronto. Recentemente, ao rever o clássico otimista “A Noviça Rebelde” (1965), é impossível não contrastar com as produções atuais, marcadas por uma atmosfera de neurose. Um exemplo disso é a série “Dia Zero”, com Robert De Niro, que mergulha profundamente na paranoia dos atentados terroristas, refletindo um desgaste cultural das últimas décadas. Não consegui passar para o segundo episódio.

Além disso, a economia americana, que antes brilhava como um farol de possibilidades, hoje dá sinais claros de estagnação e retração.

Enquanto isso, o Oriente se posiciona como o novo protagonista cultural global. A Coreia do Sul lidera com seu soft power jovem, dinâmico e futurista. K-pop, k-doramas, moda, tecnologia e comportamento sul-coreano já dominam audiências ao redor do mundo. Grupos como BTS e BLACKPINK não são apenas artistas: são fenômenos globais. Produções coreanas, antes vistas como nicho, agora são sucessos absolutos em plataformas como a Netflix, enquanto a estética minimalista e elegante do país dita tendências de moda e beleza.

Por outro lado, a China adota uma abordagem mais estratégica. Fortalecendo sua indústria cinematográfica, controlando plataformas como o TikTok e influenciando meios de comunicação internacionais, o soft power chinês prioriza moldar narrativas globais. Valores como ordem, estabilidade, cooperação e harmonia são apresentados como alternativas às crises, ao individualismo e à polarização do Ocidente.

Essa mudança cultural já é evidente. Jovens ocidentais estão cada vez mais imersos na cultura asiática: aprendem coreano, consomem conteúdo oriental e abraçam estéticas e valores vindos do outro lado do mundo. O inglês, embora ainda dominante, já divide espaço com outras línguas em playlists e redes sociais. Nunca antes houve tamanha busca por cursos de japonês, para acessar mangás no original, ou por aulas de mandarim, impulsionadas pela crescente relevância dos BRICS no cenário mundial.

Estamos falando de uma indústria que rende muitos bilhões de dólares, talvez até trilhões.

Se os EUA insistirem em um caminho de hostilidade, censura, negacionismo e isolamento, sua influência cultural poderá se restringir a grupos nostálgicos, que enxergam grandeza em meio à crise. O restante do mundo, especialmente as novas gerações, simplesmente olhará para outro lugar.

O século XXI pode não ser mais dominado pela cultura americana. Talvez seja o século da Ásia. Ou, quem sabe, um século verdadeiramente multipolar. O “American Way of Life”, outrora símbolo do sonho universal, pode estar destinado a se tornar apenas uma nota de rodapé na história da cultura global.

Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.

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4 Comentários

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  1. Tire o “f” de life, amigo, e encontrarás a verdadeira essência do jeito americano. Ou jeitinho, quem sabe? Tenho lido algumas análises em que a excessiva (e absurda) concentração de renda e de bens em mãos de pouquíssimos seres humanos e entidades privadas, é o que está abalando as estruturas do poder americano. Após a 2º Grande Guerra, os americanos saíram pelo mundo para ganhar as mentes e os corações do resto do mundo. As mentes com acenos e promessas de prosperidade, e os corações com a propaganda de si mesmos, na produção cultural. Os ‘roaring twenties’ se autodestruíram, no bojo da falaciosa paz de Versalhes, mas o “American Way of Life” e suas benesses se mantiveram por cerca de 30 anos, até o 1º choque do petróleo começar a desafinar esse coro dos contentes. Daí pra frente, foi ladeira abaixo, e voltou a ficar claro que, como epitomizou a Sra. Thatcher, “não existem sociedades, existem indivíduos”. E cada um que se vire do jeito que puder. Ora, se enxergarmos os países como os indivíduos da Sra. Thatcher, temos aí a natureza real da ‘democracia Capitalista’, que o tarifaço do capadócio do Trumptelho está expondo abertamente, sabe-se lá até quando. Vamos ver no que vai dar o “Asian way of life”. Embora a única diferença que eu veja são os milênios de história, diferentes das poucas centenas de anos que geraram os EUA, além do vício original de povo eleito que carregam.

  2. De fato um histórico
    invejável e potente de sedução, mas as contradições vem de longe. Já no macartismo se escancarava o caráter paradoxal e distópico de ser o que não é, numa abordagem “pós-goebeliana”, onde a verdade está sempre infiltrada da mentira, como mensagem cifrada em fotogramas, parte de uma estratégia muito bem calculada. O rei sempre esteve nu, mas a cegueira, a mesma do ensaio de Saramago, seguiu fazendo adeptos.

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