Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

O espetáculo da barbárie, por Dora Incontri

Vivemos submersos num universo de imagens, vídeos, narrativas e contranarrativas e há um adoecimento mental generalizado

O espetáculo da barbárie

por Dora Incontri

“Toda a vida das sociedades em que dominam as condições modernas de produção aparece como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. (…) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é a expressão de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou.”

Quando Guy Debord, filósofo marxista francês, escreveu a sua obra A sociedade do espetáculo, em 1967, estávamos ainda longe da internet, das redes sociais, dos youtubers e influencers. Era ainda o mundo analógico. No entanto, essa frase acima e todo o resto do livro têm uma atualidade impressionante e até muito mais aplicável à nossa realidade atual.

Vivemos submersos num universo de imagens, vídeos, narrativas e contranarrativas e há um adoecimento mental generalizado, o que, aliás, favorece grandemente a indústria farmacêutica. Mas para além de tudo ser convertido em produto, inclusive nós mesmos (e o próprio trabalho, que muitos de nós exercemos, nos abriga a isso, porque se não tiver divulgação nas redes, não avança), o que observamos dia a dia é a espetacularização da violência.

Basta entrarmos alguns minutos em alguma das plataformas que dominam o mundo ocidental e já vemos desde brigas de trânsito ou cenas de racismo a assassinatos, até imagens de guerras e massacres em tempo real. O mundo virtual – que é o mundo em que nos movemos – virou uma arena romana ou uma praça medieval de humilhações e execuções públicas.

Neste cenário, somos tomados diariamente – pelo menos aqueles que se recusam a perder a sensibilidade e a empatia – por sentimentos de impotência, indignação, depressão e descrença na humanidade. Ou então, vamos criando mecanismos de defesa para não nos conectarmos com tanto morticínio, tantas injustiças e podemos nos esfriar e perder a capacidade de crítica e mobilização.

Nesta última semana, por exemplo, quem frequenta sites e páginas de notícias terá visto cenas aviltantes como a dos venezuelanos sendo escorraçados dos EUA, por Trump, para El Salvador, para aquelas prisões absurdas mantidas pelo presidente Nayib Bukele, que parece ter embolsado 6 milhões de dólares para levar e encarcerar esses infelizes acorrentados, de joelhos – que sequer passaram por qualquer julgamento. Ao mesmo tempo, também assistimos, manietados em nossa impotência, a novos ataques de Israel a Gaza, já destruída, com a população em frangalhos, apesar de um suposto cessar-fogo, num genocídio que nunca cessa.

Somos, assim, arremessados diariamente a assistir o espetáculo da barbárie do mundo. E que podemos fazer? Há os caminhos do adoecimento psíquico ou da justa indignação, ou ainda do trabalho individual e coletivo de conscientização e resistência. Mas tudo parece tão distante de uma via de paz e de respeito mínimo à dignidade humana!

Diz-se por aí – também nas mídias sociais – que devemos alternar em ver páginas de notícias com páginas fofas de animais, para aliviar as tensões e as tristezas. Os animais de fato são fofos, ternos, e nos aquecem o coração. Tanto que hoje, muita gente prefere viver na companhia deles do que na dos humanos. É verdade que eles são incapazes de traição, de agressão gratuita, de qualquer prática sádica de tortura. Ao invés, o que há de histórias e cenas nas redes, mostrando até mesmo tigres, leões, pinguins e tubarões praticando amizade fiel com humanos que os ajudaram, numa gratidão pouco observável entre nós! O que quer dizer isso? O reino animal não está no reino do livre-arbítrio, eles não escolhem entre o “bem e o mal”. Seguem os instintos e, de um ponto de vista espiritual, podemos dizer que os instintos são divinos, representam a imanência de Deus.

Os humanos também têm – assim acredito – essa imanência divina dentro de si, mas por outro lado, estão aprendendo a usar a liberdade individual e coletiva e deixam suas pulsões de morte e violência também virem à tona. Haja terapia, psicanálise e educação para domar essas feras encobertas, que aliás, são a cada dia trazidas à tona pelo estímulo das próprias redes sociais. Ao mesmo tempo que elas retratam a barbárie ainda vigente no mundo e a normalizam, elas podem alimentar os monstros de qualquer um de nós.

Difícil equilíbrio a ser buscado, para não fugirmos pela alienação – e os que estão mais adoentados psiquicamente precisam sim fazer periódicos jejuns de notícias e internet – e nem enveredarmos para engrossar a massa que aplaude a violência, a tortura e a morte. Força para mantermos a luta em pé, serenidade para não nos destruirmos internamente, espiritualidade e afeto para continuarmos, até podermos chegar – e chegaremos – à outra margem da história, em que faremos um mundo mais justo, sensato e humano. Já não estamos muito cansados deste que aí está?

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

4 Comentários

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  1. Pois é, a sociedade tem sua doença potencializada pelas tais redes sociais, onde seres, absolutamente medíocres em sua maioria, se tornam condutores de gado, ou “influencers” como queiram.
    Na maioria das vezes que inicio algum assunto com uma pessoa fora da minha intimidade, alguma casualidade, e sinto algum direcionamento para um destes flasxflus atuais (por ex direita, esquerda, etc) procuro saber a fonte de informação do interlocutor, se limitada às redes sociais nao avanço em nenhum papo. Ontem mesmo aaconteceu algo assim comnum técnicode manutenção que recebi em casa.
    Sim, como sociedade, após o evento das redes sociais e, impossível nao considerar, a expansão do mercado religioso,
    adoecemos mentalmente.
    Por exemplo, a intolerância religiosa, majoritariamente praticada pelos frequentadores das novas seitas evangélicas, vem atingindo católicos. Neste fim de semana o padre André Luiz Teixeira de Lima, adepto do ecumenismo religioso, foi impedido de realizar uma missa na zona Oeste do RJ, pois os “fiéis” não admitiam defensor de “macumba”.
    Antes de desembolsarem grana na indústria farmacêutica sugiro que façam um teste: afastem-se por 30 dias do X (Twitter),do Facebook e das igrejas. Procurem informações em livros, entidades/sites especializadas com ponto de vista diverso se possível, e, caso não sejam adeptos de um bom papo num círculo de amigos, o zap é utilizável desde que tenha cuidado com os grupos admitidos.
    Veja como sua sanidade dá um UP.

  2. A fome de espetáculo, bárbaro ou civilizado, é um desejo humano nunca plenamente saciado. Como a big tech entendeu como fazer dinheiro com isto, numa escala jamais vista, já não temos como escapar do desastre, que dele,
    se houver sobreviventes, estes terão que aprender a consumir espetáculos criticamente e com moderação.

  3. Doentes, normalmente, se preocupam e procuram tratamento para sua doença, contudo existem alguns (muitos alguns) que nem mesmo possuem cognição para perceber que são doentes, assim continuarão conectados a todas as redes, menos a si próprios.

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