O Homem Qualquer Golpista e o ideal de cidade limpa de Doria, por Luciana Itikawa

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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1.livro O Homem Sem Qualidades. R. Musil. Editora Nova Fronteira. 2. Reprodução imagens do Metrô de SP. Fonte: R7

O Homem Qualquer Golpista e o ideal de cidade limpa de Doria

A morte do ambulante Luis Carlos Ruas e a intolerância a mulheres, homossexuais, travestis, índios e gentes diferenciadas

Luciana Itikawa[1]

Seu nome era Ruas. Luis Carlos Ruas. Era um ambulante que trabalhava nas ruas de São Paulo há mais de 20 anos. Seu apelido era Índio. Foi morto cruelmente na noite do Natal de 2016 por dois homens. Ruas foi morto porque tentou impedir a agressão a um homossexual e uma travesti. Os criminosos identificados tiveram como motivação, como se não bastasse a hedionda homofobia, o aborrecimento com a mulher de um deles[2]. Nesta sexta, dia 30 de Dezembro de 2016, diversos movimentos sociais farão novamente um ato em homenagem ao ambulante, às 15hs na estação de metrô D. Pedro II.

Topograficamente, o local do crime é um território que a cidade quis atravessar e não parar. A estação de metrô D. Pedro II está no miolo de uma planície alagadiça – a baixada do Glicério, historicamente negada pelos urbanistas e atravessada por diversas pontes, incluindo a do próprio metrô. A baixada do Glicério foi a primeira periferia após a expansão da mancha urbana do centro histórico que transbordava de gente, sobretudo populares, ainda no século XIX. Em 1886, o Código de Posturas proibiu cortiços, forçando a primeira segregação socioespacial em direção à zona leste. Ao chegar na entrada desta estação de metrô, mesmo na cota do chão, a sensação é como se estivéssemos descido no subsolo da cidade, tamanha a quantidade de concreto que atravessa esse espaço, cujo nome infeliz é Parque D. Pedro. Não é a toa que o entorno desta estação encontram-se várias populações negadas pela sociedade: pessoas em situação de rua, ambulantes, prostitutas, dependentes químicos, travestis, etc. O próprio Poder Público institucionalizou no local a assistência a essas pesssoas, anteriormente através de albergues; hoje, em tendas de abrigo e convivência. Já que a cidade não pode escondê-los, ao menos ficam submersos aos olhos da riqueza que a atravessa.

Entre as primeiras medidas alardeadas pelo futuro prefeito João Dória estão justamente a negação ou a expulsão de ambulantes e pessoas em situação de rua da cidade. Dória, que chegou a chamar a população em situação de rua de “indigentes” durante sua campanha, assim que foi eleito, disse que iria tirar todos camelôs das ruas de São Paulo e colocá-los em shoppings[3]. No dia 20 de Dezembro deste ano, afirmou que removeria ambos das marginais[4]. Dória polemizou também ao definir o deslocamento da Virada Cultural, cujo local principal é o Centro, para a periferia em Interlagos: “vai ser com segurança, não incomodando a população”[5].

A permanência de ambulantes nos espaços públicos de forma organizada e planejada pela cidade foi objeto de recente Ação Civil Pública em defesa dos ambulantes, movida por uma organização de direitos humanos e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A Ação foi acatada favoravelmente em caráter liminar em 2012 e julgada definitivamente pela Justiça em 2016. A decisão defendeu o direito à permanência no espaço público desses trabalhadores, entedido como direito à Cidade[6].

O que fez então dois homens atacarem brutalmente um homossexual, uma travesti e matar um ambulante nesse espaço que serve justamente para esconder essas pessoas da vista de todos, abaixo das pontes? Para aqueles que acreditam que essas populações precisam ser removidas para que a pobreza saia das vistas, a morte do ambulante Ruas era apenas uma ironia do destino. Ele teria o nome errado, o apelido errado, a profissão errada, estava no local errado e defendia pessoas erradas. A questão é que Ruas não estava nem um pouco errado: era um trabalhador, defendendo seres humanos. Seu destino, certamente, só tinha uma ironia: ele estava no ano errado: 2016. Este ano que falta pouco para terminar, legitimou as várias camadas de intolerância ao legitimar um golpe parlamentar. Se um golpe é institucionalizado, este pode legitimar todos os outros dispositivos de golpes cotidianos de gênero, de classe, de raça, etc.

Se o golpe parlamentar de 2016 vai ser conhecido como a liberação das comportas a todos fantasmas fascistas e aos demais golpes nos direitos – trabalhistas, previdenciários, etc., o que sobrará então em 2017? Se o resto dos direitos e as pequenas diferenças forem extintas, restará somente uma espécie: o “Homem Qualquer Golpista”.

O “Homem Qualquer Golpista” é a versão violenta, intolerante, homofóbica, misógina, racista e autoritária daquele cidadão comum que parece ter incubado em 2016 e já vai ganhar maioridade em 2017.

O “Homem Qualquer Golpista” é o oposto do “O Homem Sem Qualidades”, mesmo título do livro escrito por Robert Musil, na década de 1930 na Áustria. Este livro falava de um jovem homem comum, Ulrich, trabalhador que buscava um sentido para sua vida em crise. O homem “sem qualidades” neste romance não era aquele que almejava se igualar aos seus pares. Ao contrário, ele já não suportava mais as máscaras de classe, os padrões de sucesso profissional, etc. Queria ser um homem sem qualidades e mediano. Sua forma de transgressão não era a violência, a indiferença e a negação, como o nosso “Homem Qualquer Golpista”. A transgressão do “Homem sem Qualidades” era ser um “homem de possibilidades” porque abria para as diferenças e para a invenção de novas identidades. Exatamente tudo que 2016 quis negar e que 2017 parece pretender executar.

É certo que o “Homem Qualquer Golpista” não nasceu em 2016, mas a violência do golpe e a utilidade da crise econômica continuarão banalizando os micro-golpes, perpetuando as pequenas banalidades do mal, a retirada de direitos, a indiferença às desigualdades, a naturalização do preconceito e das hierarquias de gênero e raça.

A cidade ideal do “Homem Qualquer Golpista” é uma cidade limpa de diferenças, que não quer ser incomodado pela pobreza, ou raça, opção sexual ou escolha de gênero. Se 2016 criou, nutriu e libertou esse monstro, também teremos em 2017 um campo de possibilidades, de forças e novas identidades que disputarão espaço de igual para igual. Esse campo de disputas será nas ruas.

Ruas, Luiz Carlos Ruas: estaremos nas ruas: com você e por você.

 


[1] Arquiteta urbanista, pós-doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros da USP

[2] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/suspeitos-de-agredir-e-matar-ambulante-em-estacao-do-metro-de-sp-continuam-foragidos.ghtml

[3] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/10/14/doria-diz-que-vai-tirar-camelos-das-ruas-de-sao-paulo.htm

[4] http://cbn.globoradio.globo.com/sao-paulo/2016/12/20/GESTAO-DORIA-IRA-REMOVER-AMBULANTES-E-MORADORES-DE-RUA-DAS-MARGINAIS.htm

[5] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/12/05/doria-virada-cultural-vai-ser-deslocada-para-um-unico-local-em-interlagos.htm

[6] http://www.viomundo.com.br/denuncias/luciana-itikawa-capacidade-magica-de-ocultacao-da-pobreza.html

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

9 Comentários

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  1. Descendente de Japa esclarecida e que não é de direita? Omedetou

    Viva! apareceu descendente da etnia que só tem ente (gente é outra estirpe) de direita. pode gugar. nos últimos episódios constrangedores, que leva dores aos do contra, estavam <japas>.No dos <panfletos apócrifos contra Dilma> estavam envolvidos a irmã ( dona da gráfica e funcionária do estado) do assessor de Serra. http://bit.ly/2hsEAvk

    Sakamoto, o gatilho mais rápido da blogoesfera em defender os despossuídos ganhou uma parceira do mais alto nível. Descrente que sou, tive que gugar em imagens para se certificar que era nlkkei-descendente e não casada com 1, e adotando o sobrenome.

    Na mídia brasa do Nihon ( gratuita, patrocinada por agencias de turismo, empreiteiras de práticas escusas e comércio a comindade brasileira) o paraíso na terra é lá, tudo garatujado por <jornalistas> que nem bem entendem nihongo e nem mais lembram de porutugarogo. Fácil entender os votos ( já postei aqui na época ) contrários a Lula e Dilma.

    E quanto aos políticos nikkeis aqui? Nos Anos de Bumbo, morava ,na r.mons. de andrade, no Brás. Em algumas noites via o combativo vereador Jihei Noda, uma japa baixinho de bigode, que junto a Freitas Nobre não se curvavam nem se acovardaram como seus pares, a telefonar do orelhão na esquina com r. do gasometro. Foi o único japa a merecer meu voto.Depois, só o ex-ministro Gushiken, o samurai que ousou pulverizar as verbas da grande mídia em benefício da sobrevivencia dos pequenos jornais dos rincões e grotões do BR, e foi massacrado posteriormente.

    Transcrevo de . Como votar, a priori, no menos pior.A pilantropia no BR.

    E de ÉTNICO

    Nunca vote por solidariedade étnica.

    Se vc foi circuncidado junto não o obriga ser cruxificado junto.

    Se vc é de países onde atua a Máfia, lembre se que a Lei de Omertá no BR não prevalece e sim a Lei da Ofertá.

    Em casa de sushizeiro o espeto é de hashi

     Eu não voto em descendentes de japas, são todos da direita abunayo ( perigosa). 
    Estão em todas sujeiras dos últimos tempos, nos panfletos falsos contra Dilma, nos achaques dum mestiço que, no próprio nome anuncia, que está PATROCA, a conchavos, e aceita depósitos na sua conta pessoal.

    ( O último descendente nikkei que mereceu e honrou meu voto foi o ex-ministro Luiz Gushiken, odiado pela MídiaVil, que pulverizou a astronomica verba da grande imprensa e redes de radio e televisão, para toda pequena imprensa Brasil afora, nesse mundão que no Lula votou.)

     

  2. Enquanto houver consciências

    Enquanto houver consciências como a de Luciana Itikawa a gente mantém as esperanças.  Chorei por dentro lendo esse texto. É bom saber que não estou sozinha na minha dor com o que acontece com meu povo e com o meu país. Somos minoria mas a verdade, a razão está conosco. E o bem há de prevalecer.

    Os “padilheiros” da imprensa jamais conseguiriam fazer um texto com tanta luz visto que representam a obscuridade, os subsolos do poder. E lá hão de apodrecer como já apodreceu as suas consciências.

  3. político nikkei vive de dar verba prá festas da comunidade.SÓ.

    Não dá para excluir nenhum. teve um que se elegeu pelo PCB ( Ushitaro Kamia) bandeou-se para o Maluf, em troca de uma regonal na Zona Norte, e sofreu uma reportagem sórdida de PH. amorim e tv guinness sobre <1 palacete na serra da cantareira>, tudo na base de < cunhado afirma> corretor diz que vale R$ 1 milhão> pedreiro calcula>.Hoje eu ouço o tamborim batendo sobre, quase tudo igual ele fez> sobre o <triplex de Lula>..Numa festa eu falei ao edil, quer se defender ou dar sua versão, pq todo mundo da região sabe que imóvel inacabado, um reles sobradinho que cometeu o pecado de contrariar algum interesse, nunca valeria um milhão,talvez nem acabado, dependendo da qualidade do material.

    Declinou da defesa no meu blog e aqui no LNonline. ( nessa eleição não se reelegeu, mas deve estar gargalhando dos processos e condenações do tamborim)

    Os outros, deputados e edis, vivem de comparecer em festas agro-frutí-flor-granjeiros, a distribuir verbas de patrocínios do governo e se elegem assim. Só votam prò-governo, não importa qual e qual a questão.Ouso imaginar que a tradicional reverencia no cumprimento dos nihonjins os molde no caráter subserviente aos poderosos de plantão

    meu saudoso pai nos doutrinava. <Quem se curva demais, mostra o fundilho.>  eu, descendente de Uchinanchu,(reino invadido pelo nihon em 1872) sigo esse lema, sempre.

  4. Luciana,
    parabéns pelo texto,

    Luciana,

    parabéns pelo texto, embora o assunto não mereça qualquer congratulação.

    Revi as imagens  do fato com clareza hoje cedo e me dei conta de que eu  poderia ter morrido no lugar de Ruas.

    Quando eu vejo alguém em apuros, eu não penso, ajo. 

    As pessoas, havia muitas, viram os assassinos pisando na cabeça do senhor com a serenidade de quem vê uma pomba se alimentando. Não é que tivessem medo dos agressores, parece mesmo que não se importavam, o assunto não era com elas.

    Foram essas pessoas que votaram no dória, suponho.

    Será que estamos sofrendo algum influência sobrenatural perversa? Parece que as pessoas enlouquecerem, viraram zumbis, sei lá!

    Vi o depoimento do assassino ao jornalista, e seu choro “arrependido”.

    Vi a pergunta do reporter ao assassino – ” esse choro é de arrependimento ou é por que você foi preso?”

    Vi a arrogância do advogado, que afirmou catogoricamente que não  vai apresentar o seu outro “cliente” porque ele

    teve a sua prisão temporária  decretada (ele quer que relaxe, se não apresenta a flor)

    Vi, finalmente, uma única coisa normal: a indignação do delegado do caso com a covardia e a brutalidade da ação dos vagabundos.

    Dá uma tristeza!

     

     

     

     

     

     

     

     

    1. O Brasil é um país de poucos heróis.

      Os agressores saem e voltam duas vezes e ninguém fez nada. Nem pedir para parar, nem olhar… A crítica é para mim também, já agi assim algumas vezes e é frustante. Será que está na nossa herança genética. Ou fomos manipulados a agir assim. Quando a polícia fala para não reagir, é a lavagem cerebral.

      Sim. O povo brasileiro é cínico e covarde.

       

       

  5. Civilizados Cidadãos Brasileiros, a Ruas

    Brilhante!

    Agora faz-se necessário pressão junto a movimentos que reúnem condições para tanto, para que, uns, saiam da inércia pouco importando os motivos e outros, dos movimentos esparsos e descoordenados tentados até agora, e unifiquem a Luta pela Civilidade e Cidadania (LUCI2), criando um movimento único para organizar o povo, unificar, coordenar e agendar os eventos pelo país, estabelecer a comunicação central do mesmo com todos, via redes sociais e “Blogs Sujos”, para que a partir de janeiro de 2017 coloquemos o bloco da Luta pela Civilidade e Cidadania (“lúcidos”) às ruas, para devolver o Brasil subtraído e vilipendiado aos verdadeiros donos, os civilizados cidadãos brasileiros. PS: Eixos/Foco – “Diretas Já”, “Globo Sem Marinho, Rede do Povo” e “Justiça Justa e Sem Viés”.

  6. Para mim esse episódio virou

    Para mim esse episódio virou o acontecimento símbolo desse ano pesadelo que foi 2016.

    Brasil, a travesti, agredida por dois sociopatas, defendida por Índio. Este como resposta a seu gesto solidário vira saco de bancada, um saco de carne para duas bestas feras não muito diferentes dos membros dos MBLs da vida.

    A país só vai se curar dessa doença que o acomete, se resistir a barbárie em nome da memória do Índio das Ruas, para mim a personalidade do ano.  

  7. Feliz Ano Novo

    Atos bárbaros como esse serão corriqueiros no ano vindouro, cada vez mais farão parte de nosso cotidiano.

    Ruas não é nada mais do que um acidente de percurso, algo que apenas incomoda.

    Mais um a virar suco e a morrer na contra-mão.

    No País onde os bananas dão em cachos, a passividade e a cumplicidade são a salvaguarda das bestas paridas das cadelas.  

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