Quilombolas acionam Bolsonaro no STF para garantir atendimento emergencial em pandemia

por Márcia Maria Cruz

Depois de decisão favorável, em 05 de agosto, à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, proposta pela Articulação dos Povos Indígena do Brasil (Apib), organizações quilombolas tomaram iniciativa semelhante para responsabilizar o governo de Jair Bolsonaro pelo descumprimento de preceitos constitucionais. Diante dos efeitos devastadores da pandemia nos territórios quilombolas, recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) com a proposição inédita do instrumento jurídico da ADPF.

“A Conaq pensava, há algum tempo, sobre o que poderia fazer para inibir essas violações de direitos que vinham acontecendo nos territórios, violação de direitos constitucionais”, afirma Vercilene Francisco Dias, quilombola do Kalunga, advogada na assessoria jurídica da Terra de Direitos e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

— É uma ação inédita tanto para o movimento, quanto para mim como advogada. Temos todo apoio de grupos experientes para tocar essa ação conosco. Não é só violação de direito da população quilombola. É uma violação à Constituição, a um prefeito fundamental da carta maior do país.

QUILOMBOS JÁ TÊM 159 MORTES E MAIS DE 4.500 CASOS DE COVID-19

De acordo com monitoramento feito pela Conaq e o Instituto Socioambiental (ISA), foram confirmadas 159 mortes e 4.541 casos confirmados da Covid-19 até 14 de setembro. “Muitos líderes regionais quilombolas chegaram a nos notificar sobre a questão que estão vivenciando sobre auxílio emergencial, cestas básicas, atendimento à saúde”, afirma Vercilene. “Não estava chegando nenhum tipo de política de combate à pandemia nos territórios”.

Com a elaboração por advogados quilombolas com apoio de partidos de oposição ao governo, a ADPF 742 foi protocolada no STF, no dia 09, e terá a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. A peça solicita que, no prazo de trinta dias, sejam distribuídos gratuitamente equipamentos de proteção individual ao quilombolas,  além de água potável, materiais de higiene e desinfeção; pede ainda a implementação de medidas de segurança alimentar, com a distribuição emergencial de cestas básicas.

Outras medidas reivindicadas são de logística, que permitam aos quilombolas acesso a leitos hospitalares e estrutura mínima para transferência de hospital caso seja necessária; o fortalecimento do Programa de Saúde da Família (PSF) nos quilombos; a disponibilização de testagem regular e periódica; o apoio às medidas de isolamento social nas comunidades; e, por fim, medidas de combate ao racismo nos atendimentos médicos e hospitalares. A peça ainda solicita a construção de um plano de enfrentamento à pandemia nas comunidades quilombolas.

A advogada conta que aguarda, nos próximos dias, a decisão do ministro Marco Aurélio. “Tentamos despachar com ele, mas não é aberto para esse tipo de ministro”, disse, lembrando que os líderes quilombolas não conseguiram nem mesmo uma reunião remota.

A argumentação se baseia nas dificuldades que as comunidades têm de acesso às políticas emergenciais. Sem sinal de internet nas comunidades, muitos quilombolas não conseguiram sequer fazer o cadastro no auxílio emergencial, por exemplo. Os líderes quilombolas chegaram a se reunir com representantes do governo para discutir a distribuição das cestas básicas.

Eles também recorreram à Fundação Cultural Palmares para ajudar no levantamento das comunidades mais necessitadas, no entanto nenhuma política de apoio às comunidades foi adotada. “Havia várias ações civis públicas espalhadas pelo Brasil, tratando da questão emergencial, com decisões favoráveis, mas não se cumpriam as decisões”, diz Vercilene.

‘NÃO TEM COMO FICAR APANHANDO DIANTE DA PERDA DE DIREITOS’

A votação da ADPF indígena abriu precedente para que os quilombolas seguissem pelo mesmo caminho. “É a saída”, afirma a advogada. Ela ressalta que não há políticas públicas para quilombola nem orçamento: “Não tem como ficar apanhando diante da perda de direitos total”. Diante de tantas violações, a advogada afirma que acionar a máxima corte brasileira é a única saída: “A gente tem que pedir socorro para o STF”.

Acionar a Justiça em âmbito nacional também foi o caminho seguido, uma vez que a Conaq conseguiu decisões favoráveis em âmbitos estaduais, mas que não estavam sendo cumpridas.

Uma das principais queixas da comunidades quilombolas, na pandemia, é distância dos postos de saúde e, em alguns casos, a inexistência deles nas imediações dos territórios quilombolas. “Acionávamos o Estado, que dizia que estava funcionando. A comunidade mandava foto mostrando que não estava funcionando”, conta Vercilene.

Um levantamento preliminar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que há comunidades quilombolas em 1.672 municípios brasileiros. Segundo ela, 46 deles não possuem nenhum médico do Sistema Único de Saúde (SUS), 67 possuem apenas um médico do SUS, 619 possuem entre um e dez médicos do SUS.  Em 745 municípios, há um médico para cada 1 mil municípios.

“Essa é a tentativa de levar pelo menos atendimento básico”, esclarece a advogada. “Além de garantir política de segurança alimentar, outro alvo do desmonte”.

Redação

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