Especial GGN: Os desafios e sinais da retomada dos investimentos na Ciência brasileira

Carla Castanho
Carla Castanho é repórter no Jornal GGN e produtora no canal TVGGN
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Ex-ministros e representantes do setor explicam ao GGN os pontos que ainda carecem da atenção por parte do governo Lula

Fotos: Leo Caldas/Revista Fapesp; Andifes

O compromisso do governo atual com a ciência, firmado em um momento delicado de transição na política se olharmos para os últimos dez anos de estagnação no setor, mostra alguns pontos que ainda carecem de atenção e prática das iniciativas propostas desde o início do mandato, como a recomposição do orçamento.

O GGN conversou com importantes representantes do setor que explicaram o duro desafio de lidar com um desmantelamento na Ciência, fruto dos últimos dez anos de inações na área, e intensificado na era Bolsonaro, o que ainda provoca impasses para o atual governo federal. 

Para o ex-ministro da Educação e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine, um exemplo é a luta da comunidade científica para que a parcela não-reembolsável dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) seja superior a 50%. 

Este fundo, que não depende exclusivamente do orçamento da União, destina-se à Ciência, Tecnologia e Inovação, com metade dos recursos disponibilizados a empresas, com empréstimos a juros amigáveis, e a outra metade como verba não-reembolsável, destinada a universidades e institutos de pesquisa, que não têm capacidade de reembolsar. No entanto, Janine frisa que há um antigo pleito para que a parte não-reembolsável suba para 75%, no entanto, ainda não saiu do papel.

“Conversamos com o governo para fazer isso de uma maneira paulatina. Aliás, o grupo de transição, logo depois da eleição e antes da posse do presidente Lula, fez um plano nesse sentido e parecia que ia caminhar, porém já tivemos dois anos definidos sem que haja uma melhora nessa perspectiva, então, há uma decepção com isso. Além da decepção dos professores das federais pela falta de aumento de salários e falta de verbas para continuar as tarefas que tem que fazer, tudo é complicado”.

Ainda sobre o FNDCT, o físico e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, alertou para a redução significativa nos orçamentos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que são financiados pelo tesouro nacional. Esses cortes, ocorridos na era Temer e Bolsonaro, foram especialmente severos na Capes, e o atual governo ainda não conseguiu restaurar os níveis de financiamento adequados devido à magnitude das reduções.

“Há uma grande movimentação na comunidade para que em 2025 o governo reponha os orçamentos do CNPQ e da Capes, e também de algumas agências do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, como são a Agência Espacial Brasileira. O programa espacial brasileiro quase parou, regrediu na verdade”, diz Rezende.

Além disso, criada em outubro de 2021 mediante a publicação da Lei 14.222/2021, a Agência Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), responsável por regular e fiscalizar a segurança nuclear e a proteção radiológica das atividades e das instalações nucleares, ainda está sem definições claras de suas atribuições e comando da autarquia. Tanto que, em março, o TCU recomendou a nomeação do seu diretor-presidente. 

“Tem gerado conflitos com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que há mais de 60 anos regula o setor nuclear no Brasil, essencial para áreas como medicina e geração de energia. A comunidade científica está trabalhando para redefinir o papel dessa nova agência para evitar conflitos e melhorar a regulação do setor”, declara o ex-ministro.

Para o coordenador do Colégio de Pró-reitores de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação das IFES – COPROPI, órgão de assessoramento da Andifes, Pedro Carelli, a fragilidade orçamentária do CNPq é o principal gargalo na estratégia de fomento nacional, o grande responsável por irrigar o sistema nacional de ciência e tecnologia e financiar os grupos de pesquisa na ponta, onde se originam e se renovam as linhas de pesquisa.

“Um exemplo de política que havia sido anunciada para retomada era o lançamento anual do Edital Universal do CNPq, e dos editais de apoio a núcleos emergentes e núcleos de excelência, que eram feitos em associação com as fundações de amparo à pesquisa estaduais. Estes programas não foram lançados por falta de recursos e ainda se mantêm sem perspectiva. O projeto de porte que o CNPq tem mantido é o dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que conta com verba do FNDCT”.

A situação das universidades federais, que produzem a maior parte da ciência nacional

Outro ponto que tem sido cobrado do governo é a situação das universidades. Nesta terça, 10, em meio à greve de servidores das universidades e institutos federais, que demandam a reestruturação de carreiras e a recomposição salarial, o presidente Lula se reuniu com representantes da Educação para apresentar os investimentos no setor, como medidas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na ordem de R$ 5,5 bilhões contemplando universidades e hospitais universitários.

“O anúncio do PAC foi uma boa sinalização, principalmente no que diz respeito às obras que se faziam necessárias nas universidades que há muito tempo estavam com verba escassa de investimento. A recomposição do orçamento de custeio (242 milhões para as universidades) também é uma sinalização importante, embora ainda longe do que se estimava como necessária para a manutenção adequada das universidades”.

De acordo com a Andifes, com uma infraestrutura precarizada das universidades, isso também se reflete em condições mais difíceis para a pesquisa, bem como nos salários dos docentes, que acumulam uma desvalorização de 40%. “Os salários dos quadros técnico-administrativos também defasados tem provocado uma fuga destes quadros para outras carreiras. Uma recomposição é fundamental para a retenção de cérebros no Brasil”.

A fuga de cérebros 

Um termo que ganhou destaque nos últimos meses é a chamada ‘fuga de cérebros’, ou a ‘diáspora de cientistas brasileiros’, fenômeno em que profissionais altamente qualificados deixam seu país de origem para buscar melhores oportunidades de emprego e renda no exterior. 

Ainda que o Brasil não tenha uma tradição forte do fenômeno se comparado com países como a Argentina ou a Índia, dados de 2022 do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) apontam que pelo menos, entre 2 e 3 mil pesquisadores brasileiros estavam no exterior. 

“Estamos vendo uma fuga de cérebros de pessoas já formadas com doutorado. São pessoas que o Estado já investiu para formar. Estes profissionais são bem-vindos em qualquer país do mundo. É necessário melhorar as condições de retenção com um programa nacional de pós-doutorado para valorizar os profissionais com contratos que seguem uma continuidade de carreira entre o término do doutorado e uma posição mais estável”, manifesta o representante da Andifes.

A proposta do Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) revelou que cerca de 25% dos cursos de mestrado em 20 das 49 áreas do conhecimento tiveram menos demanda que oferta. Já nos cursos de doutorado, ao menos 12 áreas registraram uma diminuição na procura superior a 30%.

A desvalorização das bolsas de mestrado e doutorado por mais de 10 anos, segundo Sérgio Rezende, aliada à alta inflação, fez muitos jovens questionarem a viabilidade de investir na pós-graduação, já que esses graus não estavam melhorando a empregabilidade. Além disso, houve poucos concursos acadêmicos para institutos de pesquisa nos últimos anos. 

“Nós esperamos que esse processo comece a ser revertido a partir do momento do valor das bolsas, porque voltamos a ter concursos, agora, é muito importante e essencial que as empresas também passem a valorizar o mestrado e o doutorado na contratação”, declara Sérgio Rezende.

Outro ponto crucial para conter esse êxodo, de acordo com Renato Janine, é crucial priorizar a fixação desses cientistas em diversas regiões do país, evitando a concentração em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, característica marcante das últimas décadas.

“Embora a produção científica tenha se distribuído melhor no Brasil desde o início do século, ela sofreu estagnação nos seis anos de retrocesso sob os governos Temer e Bolsonaro. No entanto, há sinais de retomada desse avanço, que também contribui para uma distribuição mais equilibrada da ciência pelo território nacional”.

O desafio para lidar com os resquícios da era Temer e Bolsonaro 

De acordo com os representantes da Ciência e Educação ouvidos pelo GGN, os desafios impostos ao governo Lula decorrem principalmente de um retrocesso significativo nos últimos anos, como já apontado pela reportagem. 

Em 2020, por exemplo, recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) foram contingenciados, e mesmo após a mobilização da comunidade científica, que conseguiu que o Congresso proibisse o contingenciamento por meio da Lei Complementar nº 177, o governo Bolsonaro não a respeitou.

“A receita dos fundos setoriais foi de cerca de R$ 5,5 bilhões e o governo investiu através do Ministério da Ciência e Tecnologia apenas R$ 600 milhões, ou seja, um décimo do que foi arrecadado. Essa lei proibiu o contingenciamento, mas mesmo assim o governo Bolsonaro contingenciou”, relembra Sérgio Rezende.

Para os entrevistados, a liberação integral do FNDCT foi o principal avanço para o governo Lula, que caminha gradativamente para destravar o setor. Além do que, o Fundo chegou ao final de 2023 com 100% dos valores executados.

“O governo atual deixou a medida provisória caducar e recompôs o FNDCT. Com isso, a FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), tem tido a oportunidade de lançar uma diversidade de chamadas públicas para projetos estratégicos de grande porte, tais como o apoio à infraestrutura de pesquisa e a centros temáticos em áreas estratégicas”, afirma Pedro Carelli.

Embora insuficiente pelos acadêmicos, uma outra ação importante, de acordo com Sérgio Rezende, foi o aumento do valor das bolsas de pesquisa e pós-graduação que estava muito defasado.

“As bolsas de estudo de pesquisa foram corrigidas, por exemplo, a bolsa de iniciação científica para estudante de graduação foi corrigida em 70%, bolsa de mestrado e doutorado em 40%. Esse é um avanço importante porque há 12 anos não havia reajuste das bolsas”.

Para fins de comparação, Renato Janine disse ao GGN que o governo atual restabeleceu a prioridade em áreas que foram hostilizadas pelo governo anterior, incluindo saúde, educação, meio ambiente, cultura, ciência, tecnologia e inovação. Essas áreas, essenciais para a SBPC, agora recebem a devida atenção e seriedade, o que representa um avanço significativo para a sociedade. 

“Veja, a SBPC é uma entidade não partidária, nós não apoiamos um governo, não sugerimos nomes para cargos ou campanha para tirar pessoas do governo, agora, nós podemos e devemos colocar as questões que são cruciais para o Brasil. E o governo anterior se voltou não só contra uma linha política, mas contra a própria democracia, contra a Constituição de 88, tentou de todas as formas liquidá-la. O fato da gente defender a Constituição significa claramente uma posição nossa de muita crítica ao governo anterior”.

 As necessidades nacionais e regionais em pesquisa, pós e inovação

Alinhar a ciência às necessidades do país e das diferentes regiões é crucial para direcionar os esforços de pesquisa e inovação para áreas prioritárias, como saúde, educação, desenvolvimento sustentável e tecnologia agrícola. Essa estratégia não apenas impulsiona o progresso científico, mas também contribui significativamente para o desenvolvimento econômico, social e ambiental.

Nesse contexto, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) tem se destacado por seu empenho em garantir que as demandas nacionais e regionais estejam alinhadas aos temas de pesquisa, pós-graduação e inovação. 

“É sempre um desafio identificar temas estratégicos de investimento. Durante o governo de transição fizemos um exercício de propor temas estratégicos de pesquisa para o país, envolvendo desde pesquisa básica, aplicada, tecnologias e pesquisas sociais. Este relatório foi inclusive publicado em uma matéria da revista internacional “The Lancet”. 

De acordo com Pedro Carelli, entre as áreas cruciais para investimento estão a transição ecológica, que abrange desde a mudança para fontes de energia renováveis até o desenvolvimento da bioeconomia, aproveitando a diversidade dos biomas brasileiros de forma sustentável, e a área da saúde, onde o foco está no fortalecimento do complexo econômico-industrial, com o objetivo de gerar impacto social, promover o desenvolvimento e reduzir a dependência externa do país.

“Podemos identificar também necessidade nas áreas de defesa, soberania nacional, inteligência artificial, segurança cibernética, e tecnologias emergentes tais como as tecnologias quânticas. Só para exemplificar alguns temas, mas uma resposta mais completa será fornecida pela conferência nacional”.

Para o ex-ministro da Educação Renato Janine, “devemos alinhar a formação de mestre e doutores com as necessidades do Brasil. Eu tenho uma visão muito abrangente das necessidades do país pelo seu tamanho populacional e geográfico, ele tem a possibilidade e por isso mesmo a obrigação de ter gente boa em todos os campos do conhecimento”.

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1 Comentário

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  1. É urgente uma nedida de contenção dw gastos por parte do governo federal,Simples,só diminuir os pagtos de juros a uma meia dúzia de banqueiros e sobrará BILHÕES de reais a milhões de pessoas, sem falar da volta da cobrança de 15% das empresas o q sempre foi feito no PAÍS para beneficiar a toda a sociedade brasileira so aí mais uns bilhões pq DINHEIRO SEMPRE TEVE NO BRASIL,só q vai para meia dúzia de pessoas,É PRECISO CONTER GASTOS DESNECESSÁRIOS,não se pode tirar as migalhas de um povo semi escravizado financeiramente falando isso afeta muito a nossa educação,saúde e habitação,sem falar q a economia não gira aí bilionários só pensam em vender pra fora mesmo !!!

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