Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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No vencedor do Oscar ‘Nomadland’, as estradas que nos levam a lugar nenhum, por Wilson Ferreira

Um olhar de uma diretora estrangeira (Chloé Zhao) para aqueles que se sentem estrangeiros dentro do próprio país, em desérticas paisagens com estradas que levam a lugar nenhum – a melhor metáfora do atual espírito do tempo.

Um olhar de uma diretora estrangeira (Chloé Zhao) para aqueles que se sentem estrangeiros dentro do próprio país, em desérticas paisagens com estradas que levam a lugar nenhum – a melhor metáfora do atual espírito do tempo. 

No vencedor do Oscar ‘Nomadland’, as estradas que nos levam a lugar nenhum

por Wilson Ferreira

Um filme que começa pelo fim, assim como na cosmologia gnóstica: todos vivemos agarrados aos destroços do que sobrou da Criação que na verdade foi o Apocalipse. Uma cidade inteira acaba com o fim de uma fábrica. Uma viúva pega a estrada levando numa van tudo o que restou da sua vida, para conhecer a subcultura dos nômades: vítimas do desemprego, casamentos desfeitos, pensões que foram perdidas e valores familiares em colapso na esteira da Grande Recessão pós-2008. Vivendo em veículos e sobrevivendo em “bullshit jobs” do capitalismo de plataforma. Esse é o grande vencedor do Oscar “Nomadland” (2020). Um olhar de uma diretora estrangeira (Chloé Zhao) para aqueles que se sentem estrangeiros dentro do próprio país, em desérticas paisagens com estradas que levam a lugar nenhum – a melhor metáfora do atual espírito do tempo. 

O mito da fronteira foi o imaginário fundador da civilização americana. O sonho de, em vez de desaparecer na escuridão das grandes cidades, sumir nas extensões ilimitadas. Ir ao limite, sem ponto de retorno, nas imensidões desérticas do Oeste norte-americano. O deserto como o espaço que resta a percorrer e conquistar, a última fronteira antes de encontrar o muro do Oceano Pacífico.

A pureza e linearidade do deserto se contrapõem à decadência urbana dos marginalizados e exilados das grandes cidades. Essa terra de ninguém (nowhere) adquiriu diversos significados: dos heróis solitários e indômitos dos filmes western às viagens místicas de busca espiritual como no livro “On The Road” do beatnik Jack Kerouac.

 Nos anos 1960, músicas como “Magic Bus” do The Who e filmes como “Magical Mistery Tour” com The Beatles e “Easy Rider” com Peter Fonda e Denis Hooper ressoam na cultura pop a roadtrip como uma jornada espiritual de transformação espiritual. Seja em um ônibus (transporte solidário e coletivo) ou motocicleta (sempre em grupos), a viagem será tanto geográfica como mental por meio das drogas lisérgicas experimentadas no caminho.

É também a mitologia fundadora do individualismo norte-americano: acabar sozinho numa paisagem inóspita para se tornar alguém: substituir as memórias pela geografia. 

Aos poucos, esse mito fundador (libertário e heroico), vai se esvaziando quando o deserto começa a assumir a condição gnóstica humana nesse mundo. Seja nos cenários sci-fi pós-apocalípticos como A Estrada, até chegarmos aos slasher movies como O Massacre da Serra Elétrica, o deserto vira um cenário cataclísmico natural que nos cerca – um evento geológico e celeste, mas ao mesmo tempo cruel como uma armadilha cósmica perpetrada por um Deus que não nos ama.

De repente a linearidade da estrada que corta o deserto virou uma viagem que nos leva a lugar algum. Da liberdade ao auto exílio. Uma guinada existencial, mas com sólidas bases econômicas e políticas: as transformações das cadeias de produção global e a precarização do trabalho pelo chamado “capitalismo de plataforma”.

Esse é o sintoma cultural revelado pelo filme premiado com o Oscar de Melhor Filme, Atriz, Direção, Roteiro Adaptado, Fotografia e Montagem, Nomadland (2020), dirigido por Chloe Zhao – a primeira mulher não branca e a segunda mulher na história do Oscar a levar o prêmio de direção. 

Não é para menos que Nomadland foi o filme mais premiado da grande noite da Academia: o olhar de uma estrangeira (Chloe é chinesa) para personagens que se sentem estrangeiros dentro do próprio país. Americanos que foram expulsos de suas próprias vidas e jogados em uma viagem sem redenção. Apesar de ser o longa menos lucrativo a ganhar o Oscar (não é exatamente um filme com um final feliz e bem longe dos clichês motivacionais hollywoodianos), Nomadland acabou se impondo menos como produto e muito mais como um sintoma da época em que vivemos.

O fime é inspirado no livro-reportagem “Nomadland – Surviving America in Twenty-First Century”, de Jessica Bruder, uma pesquisa sobre pessoas que perderam tudo após o grande crash financeiro de 2008 e assumiram o nomadismo como a única forma de fugir das suas memórias e buscar no vazio das paisagens desérticas do Oeste uma forma de esquecerem de si próprios.

Com seu rosto crispado e vincado, a atriz France McDormand é a artista perfeita para figurar uma mulher de 60 e poucos anos que, após a morte do seu marido e o fechamento da indústria em que ele trabalhava (acabando com uma cidade inteira chamada Empire), decide pegar o pouco que restou, enfiar numa van branca, e sair sem destino pelo mítico Oeste norte-americano.

Mas o mito épico da fronteira acabou. Tudo o que restou foi o nowhere, o melancólico auto exílio, o grau zero da condição humana.

O Filme

O filme começa com o fim, lembrando a velha Cosmologia Gnóstica: a Criação já foi, em si mesma, o fim do mundo e, desde então, vivemos agarrados aos destroços da catástrofe do Gênesis.

O fim da cidade de Empire, Nevada, que vivia em torno de uma mina de gesso e branca uma fábrica: com o fechamento da linha de produção em 2010 a cidade desapareceu. E junto com ela, a vida do marido de Fern (Frances McDormad). Viúva, reúne umas poucas coisas (como, por exemplo, um jogo de pratos, presente do casamento), enfia tudo em uma van branca (que ela batiza de “vanguarda”) e sai para a rodovia. Para conhecer toda uma subcultura de americanos nômades que moram em seus veículos.

O que une essa tribo ao mesmo tempo dispersa e sedentária é que todos vivem na esteira da Grande Recessão e da turbulência econômica pós-crash de 2008. Todos, vítimas do desemprego, casamentos desfeitos, pensões que foram perdidas e valores familiares em colapso. 

Fern passa longas horas trabalhando no inverno em armazéns tayloristas pós-modernos da Amazon, o estado da arte do capitalismo de plataforma: o trabalho de curto prazo, precarizado, verdadeiros bullshit jobs. E no verão, o trabalho mal remunerado em parques nacionais e grandes áreas de estacionamento de trailers.

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