Crônica

Fica ou vai? Parte 1, por Rui Daher

Fica ou vai? Parte 1, por Rui Daher

Mais de vinte dias internado em hospital, transferido de andar em andar, enfurnado em espaçosos elevadores, transportado célere em camas-macas por entre largos corredores, tetos fortemente iluminados ferindo olhos e furando barrigas jejuadas.

Certificava-me de estar vivo pelas placas indicativas no alto. Nenhuma mostrava Praça da Liberdade, Rua Zequinha de Abreu, Largo da 88Independência, Avenida Getúlio Vargas, Cais Almirante Negro, Viela da Constituição, nem mesmo um tenebroso “Cercadinho”.

Não. Apenas dúbias masmorras. Radiografia, Ressonância Magnética, Tomo (onde? alguém me elucida?), Eletroneuromiografia, Ultrassom, Salas de Cirurgia. 

Fora os painéis, ouvir os sussurros de enfermeiros e auxiliares também ajuda. Mas nem sempre.

“Você estava aqui ontem à noite, quando o do 612 entrou? Todo quebrado, sangue e miolo misturados. Moto sem capacete. Pra mim, é daqui pra5 cova. E o teu?”

“704. Cara legal. Tombo em casa depois de uma garrafa de vinho a mais. Voltou da manifestação na Paulista contra o Bozo, se animou, deu azar. Cervical. Compressão da medula.

“É no que dá mexer com o Cão …”

No percurso, o único aceno confraterno é quando josés ou joanas genéricos, na mesma situação, passam em direção contrária à sua e o olham apenas de soslaio. Não os culpem. Você faz o mesmo.

Tal périplo, quaisquer sejam as variações, prognósticos, certas lembranças são inevitáveis. O cunhado do bem: “que merda, logo ele, o Juraci, aquele ogro, bebeu a vida inteira e morreu aos 96”. A cunhada beata: “pediu, né? há 30 anos não ia à missa”. O amigo companheiro de libações: “bem que eu avisava, cara, um dia vamos ter que beber menos, ele ria ‘ano que vem”. Era janeiro. Pior a vizinha mineira (in)confidente da esposa: “pobre Dinorá, quantas novenas, promessas, velas acesas, mantras orientais, de tudo ela fez para ele parar de beber”.

Mas não se amofinem com isso. Serão poucos minutos, embora pareçam horas. São agilizados os profissionais da saúde. Não perceberam a silhueta de Eduardo Pazzuelo?

Não temam, pois. na vida tudo passa. Principalmente, quando sua cama-maca cruza a placa necrotério ou crematório. Se puder estar distraído, melhor.

Haja o que houver, é praxe o protocolo hospitalar ter um ponto zero – a triagem – e um final – a alta. Dependendo de sua situação de vida, humor, confiança no futuro, companhias, tais pontos extremos podem ser vistos como susto e tristeza ou alívio e gáudio.

Eu, gáudio. Seguram as alças as vozes e as mãos abaixo.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

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