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Mais algumas horas, por Maíra Vasconcelos

Há como se sentar duas vezes na mesma cadeira, como se toda mansidão já não fosse suficiente. Sim. Novamente, sente-se. Sente-se por mais algumas horas nesta cadeira, mais, porque ainda faltam expressões deleitosas e passos marcados. Marcados como aqueles animais quase domados, mas que guardam no silêncio sua natureza irredutível. Então, também o silêncio combativo. Então, um pouco mais, mais algumas horas assim tão mansa nesta cadeira. A escrever e escrever. Se as palavras querem marcar novamente este passo compassado, aquele compasso, e deixar estrilado um outro adiante. Um-passo-atrás-do-outro. Quanto mais adiante? Muito mais adiante? Vou. Pela criação dessa mulher-animal exposta ao sol, desnuda diante do mundo, essa mulher-animal que não pode parar de falar, nunca parar de falar. A criação é ininterrupta até que.

E, mais uma vez, e mais algumas tantas horas, estarei nesta cadeira, neste quarto tão maciço como o tronco de uma árvore. E a presença da árvore é primordial, vejam!, exclamação, a presença da árvore deve ser reconhecida no âmago da sua necessidade, essa necessidade absurda de se ver uma árvore entre todos nós. Entendam a questão da árvore. Não posso expor tudo sobre a representação e significado das palavras, de cada palavra. Se também quando escrevo não sei, exatamente. O entendimento é posterior a cada palavra, a cada palavra depois de lida quando não totalmente entendida. O não entendimento se parece a um fruto. Um fruto, um fruto, um fruto. A interrogação é quase uma vida que se sente mais nova, a interrogação sendo um outro olhar ao espelho. Sim. Eu amo a interrogação diante do mundo. Você entende o porquê das árvores? Existe sempre uma árvore enquanto dou mais alguns passos. Quantos passos? E ainda tantas flores, pisando e recolhendo flores. Vou. A escrever e escrever até que o outro reconheça a mentira do eu constante. Ah, que gargalhada imensa. Se não estou e me apago a cada instante pela criação, pela criação sempre tão afoita de cada palavra. Vou.

Então, mais algumas horas nesta cadeira. Quantas horas? Agora são exatamente onze horas da manhã e onze minutos, numa cidade que não sei, numa cidade fechadinha em padrões. Então, a exigência de tantas horas a escrever, a escrever mais alegorias de uma vida que não sei qual é. Uma vida tão nova, tão nova, uma vida tão cheia de interrogações e passos. Mais passos. Ainda mais adiante? Sim. Se são necessárias novas palavras e insinuações imaginativas, se são necessárias mais interrogações que não se diminuem e se enfrentam atabalhoadas, assim, interrogações que aumentam a cada hora. E as horas são um calor profundo que afagam toda palavra, cada palavra. A palavra que necessita tantas horas em silêncio, este corpo tão manso numa cadeira, e depois tantas interrogações. A palavra que necessita tão pouco, aparentemente, e mais algumas horas. Qual a hora de cada palavra? Depois, escrever. E depois de escrever saber a hora, e enquanto escrevo olho também mais uma vez as horas, quando cada segundo acabou de passar, quando cada segundo acabou de se escrever pelo silêncio absurdo da natureza de mim.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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