Crônica

Milton Nascimento e o culto do mistério, por Luis Nassif

Publicado originalmente em 02.02.2001 na Folha

O arranjo começa com acordes de sopros, seguidos por celos ao fundo. Algumas notas ficam presas aos celos, como ecoando no fundo da memória. Depois da introdução, entram os sons cadenciados de um violão e de um piano preparando a entrada dos demais instrumentos. Quando a música inicia, piano, oboés, flautas, celos se juntam, tal qual Leo Peracchi ensinou. O arranjador é o discípulo Eumir Deodato, o gênio precoce que cedo nos abandonou por uma carreira vitoriosa nos Estados Unidos.

Do meio das cortinas sonoras, emergem duas das maiores vozes da música brasileira, Milton Nascimento e Elis Regina, renascida na voz da filha Maria Rita Mariano.

A música “Tristesse” (Milton Nascimento e Telo Borges) não é para ser ouvida sóbrio. Faz parte do CD “Pietá”, o último lançamento de Milton e mostra o gênio no auge da sua força criativa, em uma das mais lindas músicas brasileiras de todos os tempos. Pensei cá comigo: o criador não morreu.

A primeira vez que vi o mestre pessoalmente foi muitos anos atrás, lá para o início dos anos 90, ele à beira de uma piscina em um hotel de Angra dos Reis. Cheguei devagar, para pedir a benção. Sua timidez aguçou a minha, balbuciei alguma coisa daqui, ele resmungou outra dali e bati em retirada.

De longe, fiquei observando o negro tímido, fechado em copas, que parecia fera acuada quando qualquer pessoa tentava romper sua intimidade, ou ao menos dar um alô. À noite, no show que apresentou, parecia um dínamo. Os baianos haviam redescoberto os ritmos transcendentais do país.

Mas o que Milton Nascimento produzia naquele palco de hotel ia além. O meu batimento cardíaco, pelo menos, passou a funcionar de modo estranho, como se a batida do coração tivesse sido capturada pela pulsação dos ritmos que vinham do palco. Na platéia, de uma moçada de 15 anos a cinquentões, todos pareciam hipnotizados pela eletricidade que emanava do palco.

Na manhã seguinte, Milton não apareceu na piscina. Deixei de lado a economia, a palestra que iria preparar, e fiquei imerso em indagações, tentando adivinhar os mistérios, a história que haviam moldado aquela energia, o sofrimento que, às vezes lamento, às vezes explosão, produzira a mais significativa obra da música brasileira, pós Tom Jobim.

Não consegui, ninguém conseguiria decifrar o culto do mistério de Milton.

Depois, veio a doença, a perspectiva do fim, a quase despedida com os “Tambores de Minas”, a recuperação, o show histórico com Gilberto Gil. A cada novo lançamento, por conta do que escrevi sobre ele, o mestre me manda um exemplar autografado com palavras de carinho discreto, próprias dos de Minas. E a cada encontro casual, como no Festival de Avaré, em que se homenageou os 25 anos do Clube da Esquina, o bloqueio da dupla timidez sempre impede mais do que um “tudo bem?”.

A música inicial do CD, “A Feminina Voz do Cantor”, de Milton e Fernando Brandt, revela parte do mistério. “Sem as vozes que ele ouviu / quando era aprendiz / como pode sua voz ser uma Elis?”.

No “Pietá”, o mestre mergulha no passado, cutuca as feridas, sugere parte da história. Na contracapa, sua homenagem à mãe de criação, a mulher que lhe trouxe os sons das cantoras que moldaram sua voz, conta pouco, porque contar mais não é necessário. “Eu que nasci no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, fui levado de volta à Minas, terra natal de minha mãe de sangue, quando ela se foi. Era um garoto de pouco mais de um ano e fui recebido com muito carinho pela minha família, mas alguma coisa dentro de mim havia se partido, e sangrava. Pietá, para mim, é minha mãe de criação Lilia que, mesmo sem nenhum contato ou notícia minha durante muito tempo, pressentiu que algo de errado se passava comigo e veio me socorrer. Foi ela quem cuidou de mim e continuou a cuidar por toda a vida, junto com meu pai Josino”.

O véu se levanta pouco, e volta a se fechar. E, no duo de Milton e Elis Mariano sobressai o vulto de dona Lilia, guiando o cantor maior pelas fendas e sombras da vida, para o destino dolorido e complicado que o mundo reserva para os gênios, e Minas relega os seus.

Luis Nassif

Luis Nassif

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