Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Para um caderninho de Natal, por Urariano Mota

Por Urariano Mota

Crônica escrita há 11 anos.  

Uma adolescente a quem desoriento em aulas de Português vem me pedir algumas palavras sobre o Natal. Diante do meu engasgo, ela me diz que qualquer coisa serve, e sinto que ela pensa em acrescentar “qualquer coisa, até mesmo o que o senhor me diga”. E para não lhe dizer que procure pessoa mais qualificada, começo:

“O Natal é uma festa comercial, minha filha. É a data magna da hipocrisia universal. Nesse dia as pessoas dizem se amar. No Natal, as autoridades, os que têm boa vida divulgam e querem fazer crer que as diferenças acabaram entre os homens. Os ricos de bens materiais ficam subitamente espirituais, e com o estômago repleto arrotam que a melhor salvação é a da alma. (E penso, enquanto assim lhe falo, na Pequena Vendedora de Fósforos, de Andersen, mas minhas palavras não conseguem a graça dessa claridão.) No entanto, você sabe, os ricos continuam humanos em suas mansões, e os pobres continuam porcos em seus casebres, no mesmo dia 25. No outro dia, você sabe… (E penso nos Estranhos Frutos de Billie Holiday, mas minhas palavras não se iluminam com essa luz de negros enforcados em árvores no Sul dos Estados Unidos .) O Natal, minha filha …”.
E paro. O seu rosto reflete o desagrado de minhas palavras. Quem ensina a adolescentes aprende a ler nos seus olhos, nas suas bocas, o agrado ou a decepção do que pensa ensinar. Agora, enquanto escrevo, percebo que é uma vitória da sociedade de classes a crença em boas famílias, em belos pais, em generosos sentimentos, essa coisa resistente até mesmo em pessoas que só conheceram da vida a humilhação, a patada e os coices. A jovem com quem falo é uma adolescente pobre, filha natural, com somente esse adjetivo óbvio, natural, da natureza, nada mais. Como um fruto da partenogênese. À primeira vista, ela possuiria todas as condições para entender o que lhe digo. Mas o seu rosto me faz parar. Sinto o grande mal que lhe causo em procurar ser verdadeiro numa data em que todos pedem e esperam e anseiam que sejamos todos absolutamente falsos. Talvez, reconsidero agora ao escrever, o seu desagrado se dê porque sou apenas convencional, comum, de um esquerdismo vulgar, quando queria ser verdadeiro como o leite que chupei em minha própria mãe. E convencional por convencional melhor seria que eu escrevesse no seu caderninho uma frase do gênero “sejamos durante todo o ano como neste dezembro 25”. Quanta besteira, quanta excrescência, quanto excremento!

Por isso eu lhe digo agora esta verdade mais dura, sem bandeira e sem panfleto, com a coragem que só possuímos à distância:

Eu também já acreditei em Natal, minha filha. Antes de saber que os homens se matam e se barbarizam e são feras todos os dias do ano. Antes, bem antes de receber um pontapé nas costas, na bunda, de um marujo norte-americano. Sabe o que é ser expulso do paraíso, do navio, do lugar onde se comia com fartura, sabe o que é ser empurrado e não se voltar para não se ver naquele estado de ser jogado fora como um pária, ou como um pus, um catarro? Sabe o que é baixar a cabeça, morto de vergonha, com medo e com pavor que outros vissem a sua pobre pessoa ser tratada assim aos berros por um marujo ensandecido? Sabe o que é chorar e descobrir sozinho pela primeira vez que Deus não existe, porque se existisse não permitiria que jovens cheios de amor e sentimento e poesia fossem chutados como bons filhos da puta que nunca deixaram de ser? Acredite, acreditei no Natal bem antes dessa boa lição quando eu tinha a sua idade.

Antes disso, minha filha, o Natal para mim foi um par de sapatos, belos, novos e marrons, e belíssimos e lindos e tão perfeitos e artísticos e caros como uma criança pode sonhar. A minha filha sabe o que é ter uns sapatos que vestem a gente até a alma? Pois, eu os ganhei. Quase, melhor dizendo. Porque num dia 25, logo cedinho, eles estavam embaixo da minha cama. Não que eu não tivesse sapatos, sim, eu possuía uns muito velhos, gastos, enrugados, quase sem sola, de cadarços desfiados. Pois, eu quase ganhei esses absolutamente novos. Ganhei-os, digamos, até o meio-dia dos meus 7 anos de idade. E para que todos também partilhassem da minha alegria, eu os exibi ao sol da minha janela, da casinha onde eu morava. Eu pensava que a felicidade se compartilhava. Eu pensava que a felicidade era um bem impossível de ser vivida por um menino só. (E até hoje, às vezes, este velho menino teima em pensar assim. Mas só às vezes.) Pensava. Roubaram-me o par de sapatos, minha filha, num dia 25 de dezembro. E como o meu pai era um homem de lições muito fortes e pedagógicas, deu-me uma surra pela infelicidade que tive em não ter o par de sapatos. Daí talvez me veio esse ar de homem que despreza a felicidade. Esta é a razão, mocinha: ficou em mim a sensação de que a felicidade é um bem que me vão roubar. Daí que dela desconfio, quando dela não tomo segura distância. Não ter felicidade é uma forma de sofrer somente um pouquinho.

A minha filha já vê que eu não lhe poderia dizer tais verdades para um dia de tamanha fraternidade. Então anote, por favor, no seu caderninho esta meia-verdade:

O Natal é a esperança de que algum dia em algum lugar um menino vá receber um par de sapatos marrons e vesti-los até a alma. Antes que alcance a sua idade, mocinha, antes que receba alguns sapatos pelas costas.

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

13 Comentários

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  1. O portal Ig é um dos mais

    O portal Ig é um dos mais atrasados do planeta.

    Pra VC ENTRAR no seu mail precisa esperar  10 segundos de ”marquetagem

       E um dos produtos anunciados é esse sapatotênis por 99 reais,

     cOMPREI UM E GANHEI OUTRO DE NATAL.

         Assim sendo pode até ser que resolva seu sistema de ”rapto” do cliente.

                Mas isso se deu num produto.

                 Não deveria ser a norma vigente desse site.

                       Pior aqinda é quando vc entra em sites de notícias:

                       um telão grande aparece por alguns segundos, antes que vc possa ler as notícias.

                   E certos blogs, como o Antagonista, que ao clicar na notícia, aparece markenting ?

                       é MUITA APELAÇÃO.

                       nO MEU caso , pulo o anúncio e leio a notícia,

                         Comigo,anúncio, não faz filho, não;

                       Tirante o sapato : que fez dois.

  2. Caro Uraniano

    A realidade é mesmo pesada e pareçe não haver Natal que resista. O,que aconteceu conosco, com o mundo e os sonhos? Não sabiamos o que era a vida? Os deuses nos abandonaram? Ontem, enquanto ia para um jantar, ouvia algo que nuunca ouvira e meu pessimismo não esperava: Feliz Natal! gritavam crianças de uma sacada.  Que sabem da vida, pensei, de outras crianças de realidade adversa, das misérias do mundo adulto, das mazelas sociais e políticas? Enquanto lia seu texto, lembrei de Ernesto Sabato, em a Resistência, sobre suas pesadas verdades que não falaria a um jovem, e lembrei novamente do escritor argentino, dizendo através de um personagem de Sobre heróis e Tumbas que não somos só feito de racionalidade, mas também, de delírio, e não fosse a esperança, nos suicidaríamos todos. E me parece melhor que assim seja, que exista algo que não queira tumular-se, como diria Nietzsche, embora tenham sido mortos  os sonhos da juventude. Aqui, escrevendo, lutando no dia a dia, um outro Natal se celebra, se repete, rirualizando e reatualizando, a própria essência do Natal, contra  herodiases infanticidas. Por isso, Feliz Natal, companheiro, e força e fé para mantê-lo Vivo!

    1. Grato, Crieis Kelvin

      Tão pesada quanto a realidade é a memória. Mas isso, longe de abater o ânimo, é estímulo para novos dias de mais fecundo trabalho. Forte abraço. 

  3. Natal

    Que triste! E eu, que já estava engasgada neste natal (pela ausência de compreensão, solidariedade, harmonia, amor na família), vi uns sapatinhos rotos na janela da minha infância, onde podíamos encontrar algum apito e balas. Obrigada, Urariano, e Feliz Natal!

  4. Um poema, Urariano.
    Belíssimo.
    A vida nos torna mesmo assim. Receosos de sofrer o já sofrido, de penar dores pretéritas.
    Mas sempre haverá sapatos marrons, Urariano.
    Calcemo-nos com eles para celebrar a vida.
    Tenho um amigo – espírita – que sempre, sempre me conforta, como nestes últimos dias, dizendo: “Anna, o maravilhoso da vida é que tudo pode mudar, tudo pode acontecer. Simplesmente porque tudo podemos, basta querermos. De verdade.”
    Belo presente de Natal aos frequentadores do Blog. Passados 11 anos – e eu não tive a chance de lê-la então – , sinto-me percorrendo as mesmas veredas.
    Feliz 2016!
    Anna.

  5. e no meu caderninho da vida, anoto…

    crônicas ensinam mais do que a história e a religião

    que bela aula, Urariano Mota, muito obrigado pela oportunidade

    lembrou-me uma das minhas primeiras tentativas, ainda criança, para entender tudo isso,

    o uso combinado do Natal, entre mercadores e fiéis

    tentativa que, posteriormente, com o avançar ao tempo, e relento, chamei de Pés Descalços

    visão, em Pés Descalços, sugeriu que Natal nunca deixou de ser uma Roupa de Domingo

    neste então, limpei o veículo da minha alma e tentei entrar em uma Igreja, para um encontro de Natal

    de pés descalços, sem conseguir

    na época(?) era muito comum, que absurdo. De pés descalços qualquer um(?) era nada, era nenhum

    1. alguém pediu e escrevi…

      falou me alto do silêncio

      que os de pés descalços nunca sonharam flutuar sobre espinhos

      ao que acrescentei, com permissão, que jamais rogaram ou desejaram

      1. eu é que agradeço, amigo…

        muito obrigado pela consideração, amigo……………..permita-me, por favor, a proximidade amiga

        muito obrigado pela possibilidade de aprendar da vida

        e não na vida…………………………………….bem diferentes as duas situações e muitos não percebem, na e da vida

        se a vida é o que passamos nela, devemos aprender dela, da vida

        que seu caminhar pela vida seja sempre em luz própria, do seu ser, nesta ou qualquer outra futura

        e se nada houver nas outras, das outras haverá…………………………ou por nada restar que houvesse……………………………………e digo isso só pelo que muitos ainda consideram como sendo o fim……………………………..são coisas colocadas sem compromisso algum, como as suas………………………………..a literatura sim, é que há de nos ensinar e confirmar………………………………………….vindo dos muitos que já……………………………………………..queria dizer e escrever tantas coisas, mas as palavras que eu poderia usar ainda não existem……………………………………………………………………………………………………………..eu já estou cansado, dorido, limitado em palavras antigas, velhas e que, como açoites, soam decoradas, repetidas, não entendidas ou aprendidas

        eu quero sair, pois os silêncios me visitam e cobram

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