réquiem para uma abelha
por Zê Carota
hoje acordei com um casal discutindo na frente do prédio em que moro, na direção da janela do meu quarto.
levantei-me, escovei os dentes, passei um café, e a discussão seguia.
acendi um cigarro, fui pra varanda assistir à discussão, que seguia.
aquilo: “você isso”, “ah, mas você aquilo”, “claro, você tinha feito isso”, “só porque você tinha feito aquilo, esqueceu?”, enfim, aquele habitual festival de reminiscências sobre as faltas e falhas um do outro.
é babaca, isso.
na mágoa, prevalece a lembrança apenas do ruim, como se nada de bom, nunca, tivesse existido e criado, além dos afetos e tesões, a cumplicidade que gera o respeito – admiração, até –, tudo glacialmente desprezado no momento em que se faz mais necessário: no rompimento.
além de babaca, portanto, estúpido, isso.
a prova, a frase que, depois de proferida por uma das partes, encerrou a discussão:
– eu menti cada sorriso!
confesso ver nessa frase aquela beleza triste, única e inerente às verdades – e, no caso, potencializada por confessar mentiras pretéritas.
mas, claro, o efeito para a parte que a ouviu é bem outro.
sabe-se lá até quando soará como o refrão de uma balada que se dançou juntinho, sorrindo, mas que agora revelou-se falaz.
e pra parte que a disparou, que, vestida em amarelos e pretos, parecia uma abelha, soará, hoje mesmo ou nalgum amanhã, como o último movimento de um réquiem – afinal, ao ferroar, a abelha morre.
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SERÁ ?
"Eu menti cada sorriso" ou eu menti ao dizer que "menti cada sorriso" ? O jeito de dar a estocada fatal e ter a última palavra...
o sorriso esconde
Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.
Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?
Fernando Pessoa
Na hora da raiva os amantes
Na hora da raiva os amantes sabem se magoar com extremo requinte.