Sujeito crônico degenerativo, por Eliseu Raphael Venturi

Sujeito crônico degenerativo

por Eliseu Raphael Venturi*

Um sujeito médio, de sentimentos crônico-degenerativos, daqueles sujeitos que ainda se davam ao trabalho de abrir o jornal ao invés de caminhar sob o sol ou de dormir mais um pouco ou de rabiscar garatujas em papeis ou de conversar com seus amores ou de ouvir as melhores músicas de sua lista favorita ou de simplesmente ligar o obsoleto aparelho de televisão, e digo, daqueles sujeitos comuns largados no cotidiano, perdidos nas quinas da cidade, abarrotados em transporte coletivo, munidos de café com leite ou sem, e propensos mesmo a acessar alguma página de internet de conteúdo jornalístico, em tela ou em palma, geralmente aquela matéria que, nos hábitos adquiridos, melhor lhe aprouvesse, ou seja, aquela que retumbasse seus ideais mais íntimos, dando-lhe existência individual e coletiva, ou, alternativamente, aquela página luminosa que lhe passasse uma imagem de um desejado mundo factual ou objetivo que ele ansiava haver e poder conhecer para se distinguir de uma humanidade tumultuosa, ou, ainda, tocaria com prazer aquele conteúdo escrito e audiovisual que, por razões de estilo, valores e modos de dicção taquigrafada, lhe animasse o mais alto desequilíbrio interior alimentado por toda sorte de dissociação e desagregação intelectual, um caos de emoções bagunçadas desde uma irresoluta fase anal malsucedida, esse sujeito médio, simples, ordinário, comum, fungível para quase todas as relações a que se encontrava atarraxado, esse homem de carne, humores, seivas e óleos, desprezível e substituível por outro parecido, ele apenas queria, verdadeiramente, viver, simplesmente viver, um grito de vida de um corpo medíocre, sem protuberâncias, era como se apresentava ao mundo aquela única possibilidade e configuração normal de sua aparência, ele queria realizar algumas vontades, e diziam-lhe que todo homem era filósofo mas, ao mais do tempo, nenhum homem com senso de urgência quer ser filósofo, apenas quer viver, enquanto há, viver a penalidade e o milagre de ser vivente, não pensar tanto, e este ser frágil e forte, inconsciente anafado, ele se perguntava o tempo todo as razões de se dar tanta atenção a certos nós do poder, e lhe era óbvio que havia toda uma condução muito maior ali envolvida, com uma sucessão de absurdos orquestrados, o que certamente não era gratuito aos olhos de qualquer sujeito médio, poder, aliás, decisivo sobre sua vida e as vidas de quem lhe interessava fosse tudo bem, corresse tudo em ordem, e as preocupações todas do futuro cada vez mais rápido, mas o sujeito, no meio do turbilhão de inconformismo com o cenário com o qual se deparava, ele clamava por aspirinas ou congêneres, e ele apenas queria anestésicos para viver sua vida, sua vida simples sem muitos requintes ou sofisticações, das doenças e dores que lhe atormentavam a alma, suas dores e as dos outros que ele tomava emprestadas em um gesto de humanidade, de solidariedade, cujas bolsas haviam ido à bancarrota naqueles tempos em que o sujeito abstrato, como que um boneco cheio de necessidades, ou um autômato não mecânico, já não se via na carne do mundo da qual era um alheio acima, mas haviam cooptações postas de tal modo que ele se perguntava insistentemente, como que elaborando extensas listas mentais contidas em síntese, listas de casamento ou de compras, passou-lhe de relance por que se gastava tanto espaço e energia com aquela gente toda, sempre a mesma, há anos, quando haveria tanta vida por todo o lado, tanta gente produtiva, criativa, porque falávamos e líamos e debatíamos as mesmas figuras, uma novela de mesmos personagens e atores, como se não houvesse nada mais perto, nem carne nem localidade, apenas fantasmas do passado e do futuro, ocorreu ao sujeito que desistiu, esqueceu, virou-se as costas, pensou que estaria nos anos 1980 ou antes, na juventude de seus pais, no vigor dos seus filhos vindouros, pensou em como os sonhos pequenos e as coisas bobas eram plenos e bastantes em si, cuidou das suas coisas, arrumou suas gavetas, descolou um chiclete encardido da sola gasta, e aqueles projetos de poder todos, não os trocaria nunca por aquelas fotos perdidas de gaveta com sóis de amanhecer que ainda se podia desfrutar, ou carinhos pequenos que se poderia viver, e, então, para além de toda fuligem, de todo alcatrão, de toda a brasa que deixavam os homens imundos por nada, que lhes sufocava por nada, que os consumia por nada, descobriu imediatamente em si a maior revolução, profunda, verdadeira, intensa, silenciosa, tomou-na às mãos, cassou todos os títulos do mundo, revogou todos os votos dados, dos eleitorais aos de fidelidade amorosa, anulou o sentido do mundo, sentiu-se um deus não punitivo e destruidor, rebobinou todos os erros, retrocedeu todos os retrocessos, agradeceu pela manhã, matou todos os inimigos, aniquilou todos os ódios, revogou-se, revogou-lhes, bradou a revogação, como em uma crescente turbulenta em meio ao promédio do banal, viu-se, tomou-se, fez-se, era-lhe.


*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba/PR.

Redação

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