6 de junho de 1944 – 80 anos. A continuidade da guerra
por Luiz Philippe Torelly
Vivemos ainda hoje nas brumas da II Guerra Mundial. O Dia “D”, que completa 80 anos é, sem dúvida, o acontecimento mais reproduzido na literatura e no cinema da história da guerra. O filme O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, é sua representação maior no estilo hollywoodiano, capaz de ruborizar heróis gregos como Ulisses e Leônidas, e deixar Stalingrado, “a mãe de todas as batalhas”, esquecida. O episódio, a maior operação militar já vista, permitiu a invasão da França e a derrocada do nazismo em 10 meses pondo fim a mais cruenta e mortífera guerra com cerca de 70 milhões de mortos e consequências na geopolítica de todo o planeta que perduram na atualidade. Nosso esforço é uma tentativa de entender seus antecedentes e desdobramentos em um tempo em que um apertar de botão é suficiente para um cataclismo planetário.
A revolução industrial e sua congênere a revolução francesa provocaram intensas mudanças nas esferas políticas, públicas e privadas, determinando o declínio das monarquias e o surgimento de ideais de liberdade, fraternidade e igualdade que sucessivamente foram se espraiando pela Europa e suas colônias. As cidades foram crescendo e concentrando como nunca, riquezas e miséria. Vários autores como Marx, Bakunin, Proudhon e Engels, apontaram as contradições dos novos modos de produção e o quadro de submissão da classe trabalhadora. Em seu livro El Problema de La ViviendaEngels assim se manifesta: “La pedra angular de esta producción capitalista la constituye el hecho de que la organizatión actual de la sociedade permite a los capitalistas comprar por su valor la fuerza de trabajo del obrero y extraer de ella mucho más que su valor, haciendo trabajar al obrero más tempo del necessário para recuperar el precio pagado por su força de trabajo.” A concentração urbana de grandes contingentes de trabalhadores dá início a crescentes manifestações de revolta e insurreição culminadas com a “Comuna de Paris”, em 1871. Sua importância, referencial na história das lutas sociais ocorre por duas questões vitais: a classe trabalhadora estabelece um governo destituindo a ordem então vigente e de forma explícita a França, então em guerra com a Alemanha, pede auxílio ao “inimigo” para destituir o governo popular. Uma aliança ideológica é selada entre dois países em guerra, para derrotar um movimento de trabalhadores deflagrado contra a exploração desenfreada do capital. A componente ideológica passará a ser parte crescente das questões geopolíticas que comporão o cenário dos conflitos armados, internos e externos, entre povos e nações.
Poucas décadas depois a deflagração da I Guerra Mundial, em 1914, deixa evidente as dissenções entre as potências imperialistas europeias. De um lado Inglaterra, França e Rússia, de outro Alemanha e os Impérios Austro-húngaro e Otomano. O assassinato do Arquiduque austríaco Francisco Ferdinando por um nacionalista bósnio, em 28 de junho, incendeia a Europa. No bojo do conflito generalizado que seria determinante para a deflagração da II Guerra 21 anos depois surge em 1917 a Revolução Russa que iria doravante alterar o equilíbrio de forças global. Vitoriosa, a revolução desfralda temas como a estatização dos meios de produção, a ditadura do proletariado, a propriedade coletiva das terras e o fim da propriedade privada. O mundo jamais seria o mesmo.
Finda a guerra com a derrota e capitulação dos alemães e dos impérios austro-húngaro e otomano uma nova partilha territorial e política transformou a correlação de forças e o cenário europeu e mundial. Parte do território alemão foi ocupado pela França, a Renânia. A Polônia recupera sua autonomia política e territorial e o império russo dá lugar a primeira nação comunista, a União Soviética, doravante uma presença marcante e opositora aos demais regimes europeus. Se não bastasse, o império otomano é partilhado dando origem a um novo arranjo do colonialismo no Oriente Médio, com o surgimento de países que dividem povos e nações. O socialismo internacionalista se expande para o mundo passando a ser um ator político estratégico. Fundado no Brasil nos anos 20 do século passado, o Partido Comunista, a par de suas contradições e equívocos como a Intentona Comunista de 1935, passa a ser um importante agente político e social.
As consequências das novas configurações territoriais e as duras condições impostas a Alemanha pelo Tratado de Versalhes seriam determinantes para a eclosão da II Guerra, bem mais abrangente e letal que sua antecessora, e que estabeleceria o cenário econômico e político das décadas subsequentes especialmente a “guerra fria” que sobrevive com estratégias e cenários diferentes, mas aí estão a Guerra da Ucrânia e o genocídio palestino para servir de testemunho.
Inglaterra e França, com o auxílio dos Estados Unidos, as grandes vencedoras, assistiram passivamente as transformações sociais e políticas de uma Alemanha assolada pela derrota, o desemprego e a hiperinflação. Logo, as frustrações seriam habilmente canalizadas pelo nascente partido nazista se espelhando na Itália fascista de Mussollini que assume o poder em 1922 com sua famosa marcha sobre Roma. A essa altura, o espectro do comunismo já assombrava a Europa e o mundo. O fascismo cresceu rapidamente e ajudou a impulsionar o partido nazista alemão rumo ao poder, alcançado em 1933, com o esfacelamento da República de Weimar. Como na atualidade, os anos 20 e 30 do século passado foram marcados pela ascensão rápida das ideias autoritárias, racistas e negacionistas do nazi fascismo. Entre nós, o Partido Integralista de Plínio Salgado foi um fiel representante, tendo chegado a tentar um golpe de estado em 1938 para depor o Chefe do Estado Novo, Getúlio Vargas, cujo governo era marcado por simpatias ao Eixo e práticas ditatoriais.
As curtas duas décadas entre as Guerras Mundiais foram marcadas por acontecimentos como a crise das bolsas de valores em 1929, iniciada nos EUA, e a Guerra Civil Espanhola, de certa forma uma pré-estreia do conflito que iria abalar o mundo 2 anos depois, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista militar, onde a cidade de Guernica foi o laboratório dos novos meios de extermínio massivo. A Europa presenciou passiva a ascensão nazista, a perseguição aos judeus e esquerdistas, o rearmamento muito além dos limites do Tratado de Versalhes, a anexação dos Sudetos tchecos e da própria Tchecoslováquia em 1938 com o beneplácito explícito de Neville Chamberlain, Primeiro-Ministro britânico. Tudo culminaria com o pacto germano – soviético de partilha da Polônia, e de outros países do norte europeu. Um acordo que deixou o mundo atônito diante de sua contradição ideológica explícita e de seus propósitos militaristas e expansionistas. A invasão alemã a Polônia em 1 de setembro de 1939, materializa o pacto e dá início de fato a II Guerra Mundial.
A “blitzkrieg” assombraria o mundo com sua rapidez e a utilização do elemento surpresa para derrotar em tempo recorde seus adversários. Infantaria, blindados e aviação, usados em conjunto com táticas inovadoras, seriam capazes de invadir e derrotar vários países em curto espaço de tempo como a Dinamarca, a França, Bélgica e Holanda, Iugoslávia, Grécia e mais tarde, em 22 de junho de 1941, a União Soviética, na denominada “Operação Barbarossa”. A reação russa foi lenta o que provocou pesadas perdas humanas e territoriais. Os alemães chegaram as portas de Moscou no inverno de 1941 onde foram detidos por um forte contra-ataque. Ao abrir uma frente de batalha de cerca de 1600 Km e investir no verão de 1942 contra a cidade de Stalingrado, as margens do Rio Volga, a Alemanha cometeu um grande equívoco e foi derrotada pelas forças russas após uma longa batalha com grandes baixas humanas e perdas materiais. Mais uma vez o “general inverno” foi decisivo. A capitulação alemã em 2 de fevereiro de 1943 fez com que o panorama sofresse rápidas mudanças pois o exército nazista também foi derrotado em maio de 1943 no norte da África. A invasão da Europa começaria dois meses depois pela Sicília e Itália. O dia “D” já estava em preparação.
Iniciada um ano antes da invasão da Normandia, a “Operação Overlord” foi planejada minuciosamente para enfrentar as fortes defesas alemãs acasteladas na denominada “Muralha do Atlântico” que se estendia da França a Noruega. A proximidade geográfica entre França e Inglaterra, separadas pelo Canal da Mancha, tornavam óbvio que uma invasão do continente em larga escala aí teria sua origem. Manobras diversionistas, como a simulação de falsos equipamentos e exércitos, foram utilizadas para dissimular o local de ataque. Um ano de preparativos e utilização de inovações tecnológicas como portos artificiais para o desembarque de soldados, provisões, equipamentos e armamentos.
Desnecessário entrar em maiores detalhes sobre o desembarque exitoso, embora tenha enfrentado resistências esperadas em face de seu caráter determinante para o desfecho da guerra já então claramente desfavorável aos alemães. Em pouco mais de dois meses Paris e a França estavam libertadas e o cerco a Alemanha se intensificava com o forte avanço das forças russas a oeste. Cerca de 3 milhões de soldados de várias nacionalidades desembarcaram até o final de agosto de 1944. O Terceiro Reich e suas atrocidades já sabidas foram então desvendadas a opinião pública. O holocausto judeu e de milhões de civis mortos para satisfazer a sanha ideológica do nazismo quando os rumos da guerra já estavam definidos deixa claro o seu caráter escatológico e messiânico.
Decorridos 80 anos causa perplexidade que muitos países que estiveram diretamente envolvidos nessa hecatombe, como os EUA, Rússia, Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Japão, que se dizem repositórios da cultura e da ciência, ainda fomentem conflitos com objetivos ideológicos e financeiros, como os da Ucrânia e Palestina. O planeta, com uma população quatro vezes maior que os 2 bilhões de meados da década de 40, um consumo per capita que exaure os recursos naturais finitos e gera uma crise climática que se agrava anualmente, vê seriamente ameaçada sua existência. O fascismo, o negacionismo e ideais de supremacia destruíram e mataram mais de 70 milhões de pessoas. Quantos seriam mortos em uma nova guerra mundial? Eric Hobsbawn nos alerta em seu livro síntese A Era dos Extremos: “Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.”
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista formado na Universidade de Brasília em 1979. É especialista em Desenvolvimento Urbano, Patrimônio Cultural e Finanças Públicas. Trabalhou na Caixa Econômica Federal por 29 anos e 2 na FUNCEF. Exerceu várias funções como Gerente Nacional, Superintendente Nacional, Chefe de Gabinete da Presidência, Diretor do Banco Interamericano de Poupança e Empréstimo, Diretor Geral da CAIXA-PAR, Diretor de Participações Societárias e Imobiliárias. Foi também Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano e Presidente do Instituto de Planejamento Territorial e Urbano do Governo do Distrito Federal. Por duas Vezes foi Diretor do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É autor de livros, ensaios e artigos nas temáticas de sua especialidade. [email protected]
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Ainda me intriga om fato de que o (talvez) verdadeiro objetivo do Dia D tenha sido, na verdade, a necessidade premente de evitar que a Alemanha caísse nas mãos de Stalin. O Exército Vermelho, na esteira da vitória em Stalingrado, vinha empurrando as tropas alemãs de volta, e, no caminho, instalando governos comunistas nos países que ia sucessivamente libertando do domínio alemão. O leste europeu se tornava um cinturão de proteção a URSS – por que não a Alemanha? Aí não seria o caso de proteger-se do Ocidente, mas de desequilibrar as forças a seu favor. E os americanos seriam forçados a despejar suas bombas atômicas sobre a Alemanha – matando cristãos brancos de olhos azuis, vejam que horror – em vez do Japão, onde morreram asiáticos infiéis, além de amarelos, com o perdão da incorreção política. Mas a imprensa ocidental só faz exaltar o Dia D como decisivo para a derrota da Alemanha e libertação da Europa. Ora, como se diz aqui na Bahia, me faça uma garapa!