Nossa língua portuguesa e a internet, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A língua é um fenômeno histórico e, portanto, sujeito a transformações. O português usado por Cruz e Souza no final do século XIX para compor “Dança do Ventre” já era bem diferente do empregado por Basílio da Gama em “O Uraguai”. Paulo Leminski se distanciou muito de ambos na segunda metade do século XX quando compôs Invernáculo.

  

 

Fumam ainda nas desertas praias

Lagos de sangue tépidos e impuros

Em que ondeiam cadáveres despidos,

Pasto de corvos. Dura inda nos vales

O rouco som da irada artilheria.

MUSA, honremos o Herói que o povo rude

Subjugou do Uraguai, e no seu sangue

Dos decretos reais lavou a afronta.

Ai tanto custas, ambição de império!

E Vós, por quem o Maranhão pendura (Basílio da Gama, O Uraguai)

Torna, febril, torcicolosamente,

numa espiral de elétricos volteios

na cabeça, nos olhos e nos seios

fluíam-lhe os venenos da serpente (Cruz e Souza, Dança do Ventre)

 

Esta língua não é minha,

qualquer um percebe.

Quem sabe maldigo mentiras,

vai ver que só minto verdades.

Assim me falo, eu, mínima,

quem sabe, eu sinto, mal sabe.

Esta não é minha língua.

A língua que eu falo trava

uma canção longínqua,

a voz, além, nem palavra.

O dialeto que se usa

à margem esquerda da frase,

eis a fala que me lusa,

eu, meio, eu dentro, eu, quase. (Paulo Leminski, Invernáculo)

 

A distância entre estes três escritores não é só poética, mas principalmente sintática, ortográfica e semântica. Basílio da Gama usa frases invertidas (Fumam ainda nas desertas praias), Leminski prefere construções mais simples (Esta não é minha língua). No século XVIII Fumam ainda só poderia ser entendido como a fumaça do incêndio provocado durante a guerra. Os fumantes (de cigarro e de maconha) ainda não eram comuns nas praias desertas e habitadas.  O advérbio inda, empregado por Basílio da Gama, caiu em desuso. Artilheria é grafado artilharia há muito tempo.

A metáfora espiral de elétricos volteios construída por Cruz e Souza no final do século XIX não seria sequer imaginada no século XVIII (época da vela, da lamparina e do lampião). O dialeto que se usa à margem esquerda da frase de Leminski é singelo, não contém arcaísmos (tépidos) ou vocábulos inventados (torcicolosamente). Leminski, contudo, transformou a língua portuguesa em temática e transformou a própria língua na medida em que a considera um fluxo continuo (semelhante a um rio) passível de ter duas margens (uma margem direita, rejeitada pelo autor  e uma margem esquerda na qual o poeta deseja ficar junto com seu leitor).  Ao se referir à fala que me lusa o poeta do século XX invoca a língua usada por Basílio da Gama no XVIII, quando português utilizado no Brasil era mais próximo do empregado em Portugal e paradoxalmente a moderniza (lusa no contexto da poesia não é nem um substantivo nem um adjetivo).

Leminski morreu em 1989, portanto, muito antes da internet se tornar uma realidade no Brasil. Fiz as digressões acima apenas para demonstrar como a língua portuguesa (culta, escrita) foi transformada nos três séculos que precederam a cibercultura.

Na última década inovações drásticas tem ocorrido na nossa amada língua portuguesa. Fiz algumas reflexões sobre esta questão ao estudar as variações do uso da palavra corrupção na internet   http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/a-gramatica-e-a-linguistica/.

Deletar (versão brasileira do vocábulo inglês delete), por exemplo, já se tornou verbo de uso corrente com direito a verbete em dicionários virtuais https://pt.wiktionary.org/wiki/deletar. Hoje uma amiga minha usou o neologismo roubartilhei (roubar + compartilhei) para dizer que havia compartilhado no Facebook algo postado por mim sem minha autorização. Ela obviamente não precisava de autorização para compartilhar algo (esta é uma atividade amplamente permitida pela rede social de Zuckerberg). A ousadia verbal dela, contudo, me chamou a atenção. A criação deste vocábulo não seria possível  a não ser como um produto de um relacionamento virtual.

Roubar é um crime, portanto, não pode ser considerado uma atividade virtuosa. Compartilhar algo sem autorização é possível no Facebook, mas pode ser considerado deselegante. Roubartilhar um conteúdo, pode, portanto ser considerada uma forma sofisticada e lúdica de confessar o “não é crime”, pedindo autorização retroativa para fazer o que já foi feito.  

Roubartilhei e roubartilhar eram uma novidade para mim. Mas não são exatamente novidade na internet. O primeiro vocábulo tem 10.500 referências no Google e já ganhou uma comunidade no Facebook https://www.facebook.com/Roubartilhei com 206 pessoas.  O segundo já foi usado 9.900 vezes segundo o Google. O gerúndio roubartilhando existe e foi usado 11.200 vezes, também tem até uma comunidade no Facebook https://www.facebook.com/Roubartilhando-203041563078495/ (6.311 curtidas na data de hoje).

As palavras nascem quando começam a ser usadas e morrem quando seu uso deixa de ser um fenômeno histórico. Quando os portugueses cá chegaram eles entraram em contato com mais de mil línguas diferentes. Destas apenas 15% não estão mortas http://prodoc.museudoindio.gov.br/noticias/retorno-de-midia/124-de-mais-de-mil-linguas-indigenas-so-15-permanecem-vivas-no-brasil. As palavras só tem uma vida duradoura quando seu uso é registrado por escrito, pois apenas a escrita permite a comunicação entre homens separados por séculos e até por milhares de anos.

As regras da língua falada são, obviamente, diferentes das regras da língua escrita. Nenhuma criança precisa ler textos de gramática antes de aprender a falar. Mas é impossível escrever bem sem conhecer a descrição formal da língua e sem recorrer aos dicionários. No passado, a velocidade de transformação da língua falada era maior que o da língua escrita. Na fase atual (em que nos comunicamos muito através da internet) as transformações da língua escrita tendem a ser tão rápidas quanto as da língua falada. Quantas palavras já nasceram e morreram na internet por deixarem de ser roubartilhadas?

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  • Texto bom, mas uma ressalva

    "Mas é impossível escrever bem sem conhecer a descrição formal da língua e sem recorrer aos dicionários."

    Nao é impossível nao, nenhum escritor atual escreve segundo a "descriçao formal da língua", até porque essa deveria ser chamada de "descriçao formol da língua". Foi feita com base no uso literário da segunda metade do século XIX. Desde o Modernismo os escritores literários deram uma banana para ela -- e o Modernismo já está quase fazendo cem anos. Depois disso a língua evoluiu imensamente, principalmente devido às mudanças no sistema pronominal. Aconselho a leitura dos textos da Professora Maria Eugênia Duarte, da UFRJ, sobre a língua ESCRITA de hoje. E nao é a da web nao, é a dos cronistas, pesquisadores e jornalistas, ou seja, escrita a que nao se pode negar o estatuto de "norma culta". Porém norma REAL, nao aquela inventada pelos gramáticos normativos.

     

    • "Enquanto a língua é um rio caudaloso, a gramática é um igapó"

       

      " Você sabe o que é um igapó? Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem para a gramática normativa. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto a água do rio/língua, por estar em movimento, se renova incessantemente, a água do igapó/gramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia. Meu objetivo atualmente, junto com muitos outros lingüistas e pesquisadores, é acelerar ao máximo essa próxima cheia..."

      Marcos Bagno, professor, filólogo, linguista e escritor

      • Obrigadíssima, Gilberto, amei, a metáfora é ótima

        Vou guardar essa citaçao para talvez usá-la, é maravilhosa. E o objetivo que ele coloca nela é importantíssimo (se bem que eu, pessoalmente, prefiro nenhuma normatividade, porque qualquer normatividade será discriminatória com os que nao usam aquela variedade da língua). Vou te devolver com duas citaçoes de Maurizzio Gnerre que eu adoro, que mostra a importância do que está em jogo nesse tipo de questao:

         

        "Talvez exista uma contradiçao de base entre ideologia democrática e a ideologia que é implícita na existência de uma norma linguística. Segundo os princípios democráticos, nenhuma discriminaçao dos indivíduos tem razao de ser, com base em critérios de raça, religiao, credo político. A única brecha deixada aberta para a discriminaçao é aquela que se baseia nos critérios da linguagem e da educaçao"

         

        E mais importante, sobre o caráter pseudo progressista da defesa do "ensino da norma" (piada, porque de fato ela é ininsinável na fala; escrita é outra coisa):

        "Se as pessoas podem ser discriminadas de forma explícita (e nao encoberta) com base nas capacidades linguísticas medidas no metro da gramática normativa e da língua padrao, poderia parecer que a difusao da educaçao em geral e do conhecimento da variedade linguística de maior prestígio em particular é um projeto altamente democrático que visa a reduzir a distância entre grupos sociais para uma sociedade de 'oportunidades iguais' para todos. Acontece, porém, que este virtual projeto democrático sustenta ao mesmo tempo o processo de constante redefiniçao de uma norma e de um novo consenso para ela. A própria norma é constantemente redfinida e recolocada na realidade sócio-histórica, acumulando assim ao mesmo tempo a própria razao de ser e o consengo. Os que passam através do processo sao diferentes dos que nao o conseguiram, e constituem um contingente social de apoio aos fundamentos da discriminaçao com base na legitimaçao do saber e da língua que eles (formalmente) dispõesm"

         

        O livro é Linguagem, Escrita e Poder, da Martins Fontes.

  • Negoçar

    Já ouvi, mais de uma vez , adolescentes usando o verbo negoçar. Quando a atividade (o "negócio") não é explicável no curso da conversa, as ações a serem procedidas para que o objetivo seja alcançado viram "negoçar", principalmente quando se referem a comandos em games ou a uma sequência de  cliques em diferentes teclas no PC ou no note. 

    Então, negoçar seria exercer atividades com vistas a obter resultados com o "negócio"  - aquele que eu não sei explicar a você como ele é, mas tenho certeza de que você sabe a que estou me referindo - mas também não sabe "traduzir" tal coisa para nossa fala habitual.

     

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