Embora o filme trate da perda da memória de um indivíduo, ele também nos leva à reflexão sobre a falta de memória coletiva, por parte de uma parcela da população brasileira, sobre o golpe ocorrido há cinquenta anos, envolvendo e alterando o rumo de um país por duas décadas.
Considero que a personagem principal de Trago Comigo é a memória. Sabemos da importância da memória para todos nós. Tudo o que vivenciamos é possível de ser esquecido ou lembrado. Normalmente esquecemos o que consideramos desimportante, ou, como no caso do filme, o esquecimento pode ser um recurso para nos defender do convívio com o que nos é insuportável. Também a memória pode desaparecer pelo recalque (processo inconsciente), mas a situação (verdade) recalcada não é eliminada e se manifesta em forma de sintoma neurótico. O neurótico expressa o recalcado através da compulsão à repetição do sintoma. A sociedade que suprime em nome da ordem, a revelação da experiência histórica das violações dos direitos contra o cidadão, tende a repetir a violência negada. Tentar apagar os fatos pode produzir sintomas sociais graves. Se a memória é fundamental para nossa vida psíquica, a memória histórica também o é para um país. O que se observa hoje no Brasil é que os jovens têm pouco ou nenhum conhecimento sobre o golpe de 64 certamente porque a classe dominante não tem interesse em divulgá-lo, ou, quando o faz – o golpe é apresentado como algo necessário na época e sem o peso do seu papel devastador, sob o pretexto de que o país estava sendo ameaçado pelo comunismo. No filme, essa desinformação fica clara quando durante os ensaios da peça, jovens atores fazem comentários alienados acerca do tema, irritando o diretor.
Por isso é importante o resgate da memória daquele período, para que haja reflexão sobre sua origem, seu significado e o que ele representa para o país. Mas sobretudo, para que não se repita ou que seus resquícios perversos, deixem de ser encarados como procedimentos “normais”, muitos deles repetidos até hoje, como a tortura de presos ou a violência policial nas ruas que, embora ilegais, não tolerados e até considerados necessários por grande parte da população brasileira. Sabemos que a maioria da população carcerária é de jovens negros e pobres, sequela ainda da escravidão, que não foi suficientemente elaborada nos corações e mentes dos brasileiros. Outro resquício da escravidão é a exploração do trabalho doméstico que só recentemente passou a fazer jus aos direitos trabalhistas. Sabemos que as leis, embora necessárias, não garantem, por si sós, que, a partir de sua publicação (ou aprovação) ocorram as mudanças propostas. Assim, não bastou o fim do regime militar para que a democracia se instalasse em toda a sua plenitude. Ainda hoje lutamos pelo estado de direito, pela universalização dos direitos humanos, sobretudo agora que vivemos uma onda obscurantista (não só no Brasil). É assustador ver que essa situação tem favorecido que indivíduos e grupos enalteçam o regime militar, propondo sua volta como algo positivo e até desejável. Paira no ar uma ameaça às conquistas democráticas conseguidas a tanto custo. Parece estar havendo um retrocesso histórico que estimula o que há de pior na sociedade e na condição humana: extremismos (religiosos, políticos, raciais), exacerbando a bipolarização, que é um terreno fértil para a violência, em vez do diálogo. Nesse cenário, um lado vê o outro como inimigo cheio de defeitos e que merece ser punido ou até exterminado. Pessoas são agredidas só por terem posições políticas ou ideológicas opostas ao agressor. Com isso, o sonho de um país mais justo parece ficar mais distante.
O pedido de volta dos militares ou a preferência significativa por políticos conservadores extremados parece representar um desejo infantil de ser dirigido por um punho forte (pai poderoso e severo) que toma as decisões sobre as quais não se pode questionar. Na verdade, essa delegação é uma dificuldade em assumir a responsabilidade sobre sua própria vida e as inevitáveis consequências certas ou erradas de suas escolhas.
O título do filme é muito significativo. Aparentemente ele se refere a uma espécie de jogo ou brincadeira, como proposta de compartilhamento. Ao revelar ao outro o “Trago comigo… (um sentimento, uma proposta, uma notícia, etc)”, eu estou dividindo com ele o que trago. Nesse momento, eu sou o que declaro trago comigo, pois é assim que eu me apresento ao outro. Acho que o título vai além desse jogo. Ele tem a ver, na verdade, com a questão da memória, que permeia todo o roteiro. Mesmo que não tenhamos consciência de tudo o que trazemos, temos conosco o nosso passado, nossos sonhos sonhados, nossas experiências, nossos desenganos. Mesmo quando nossa memória não é fiel aos fatos ocorridos, ainda assim trazemos conosco nossa interpretação. Até quando esquecemos, não é impossível que o esquecido possa eventualmente emergir. Trazemos a dor dos limites de nossa própria humanidade e a trágica clareza de nos sabermos incapazes de superá-los.