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Sebastião Nunes: Aprendendo a escrever com Graciliano Ramos


Sebastião Nunes
O que de fato provocou radical mudança em nossa maneira de pensar e escrever foi a invasão dos bárbaros nordestinos e –acima e além de todos –Graciliano
Publicado no Jornal OTEMPO em 07/04/2013

Coelho Neto e Humberto de Campos morreram no final de 1934, com 70 e 48 anos respectivamente, fechando um ciclo na literatura brasileira. Graciliano Ramos foi preso em março de 1936 (13 meses depois), aos 43 anos, inaugurando outro.

O ciclo enterrado com Neto e Campos foi o do parnasianismo delirante (como todo movimento e escola), que durou do final do século XIX às primeiras décadas do XX. Claro que o Modernismo já dera as caras e mostrava sinais de vida. Mário de Andrade, Bandeira, Drummond, Oswald, Villa-Lobos e Tarsila são prova disto, antes e depois da quase desapercebida Semana de Arte Moderna, de muita fumaça e pouco fogo.

O que de fato provocou radical mudança em nossa maneira de pensar e escrever foi a invasão dos bárbaros nordestinos: José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e – acima e além de todos – Graciliano Ramos.

PINGANDO OS IS

A prisão de Graciliano em Maceió foi importante por dois motivos: colocou o escritor em contato direto com intelectuais do “Sul” e propiciou sua migração definitiva para o Rio de Janeiro. Besteira pensar que, caso permanecesse no Nordeste, teria alguma importância, ainda que escrevesse os mesmos livros. Foi o Rio que lhe deu visibilidade. Foi a prisão que o tornou não só conhecido como admirado. Graças à ditadura de Getúlio, quem diria!

Rachel, Zé Américo, Jorge Amado e Zé Lins eram bons escritores? Sim, não só bom como ótimos. Além disso, seus temas eram nordestinos: engenhos de cana, bagaceira, casa-grande, seca, retirantes, caboclos, cangaceiros. Apesar dessas diferenças essenciais, faltava o toque de refinamento: o “estilo nordestino”.

Este, quem criou, quem fez dele marca registrada, foi o Velho Graça, em todos os seus livros, cada qual mais radical.

O NORDESTE A OLHO NU

Vou estabelecer algumas diferenças. Uma coisa é nosso Guimarães Rosa criar, pela linguagem, um sertão artificial e enxertá-lo entre os buritis de Minas. O “Grande Sertão” nasceu com ele, viveu com ele e morreu com ele. Ninguém o repetirá, por ser impossível. Ninguém viverá nele, por ser absolutamente artificial.

O mesmo não acontece com Graciliano. Para começar, cada livro seu é radicalmente diferente de outro e, às vezes, o seguinte supera o anterior, como nas parelhas “Caetés” – “São Bernardo” e “Angústia” -“Vidas Secas”.

“Caetés” é um romance de província, com suas vidinhas miúdas e rasteiras, tentando alçar voos impossíveis. “São Bernardo” é a crônica áspera do latifúndio e do latifundiário, retratando um sujeito seco e duro, individualista, terrivelmente ciumento e machista – o retrato vivo do patriarca nordestino. Terá mudado muito? Não, não mudou. O Nordeste é o que é porque os “senhores” continuam sendo o que foram. Há exceções, é lógico.

“Angústia” é o drama horroroso de um homem apavorado, que se torna assassino sem querer, recriado numa linguagem psicologicamente vertiginosa. “Vidas Secas” é quase um elogio do silêncio, com seus viventes toscos e de raras palavras, suas carências fundas como cisternas e rasas com rios de lama seca.

NUNCA REPETIR

Creio que Graciliano Ramos odiava se repetir, embora seu estilo possa ser descrito como a “arte da repetição”. Minucioso, vai e volta, repisando o mesmo assunto vezes sem conta. Só a leitura atenta, muito atenta, faz notar que esse ir e vir não passa de um artifício genial para dar vida a conflitos que é preciso fazer crescer na imaginação do leitor.

Seus quatro romances são completamente diferentes uns dos outros, como se o autor acreditasse – e acho que acreditava – que basta um exemplo para dar o recado. Como existem situações e vivências infinitas, seria necessária uma obra infinita para dar conta de cada uma dessas vivências e situações.

O Velho Graça se contentou com quatro. Mas, diversamente da maioria de nossos bons e maus escritores, nunca repete um mundo que descreveu. Temos a pequena sociedade urbana em “Caetés”, simbolizando todas as pequenas cidades do mundo, já que todas se parecem. Vemos o latifúndio completo, com senhores, servos, desavenças econômicas e sociais em “São Bernardo”, e todo o Nordeste com seu patriarcado vive ali. As angústias do homem eternamente enrolado sobre si mesmo estão em “Angústia”.
Como todos os retirantes estão em “Vidas secas”, com seus trastes, seus filhos e seus bichos.

REGRAS DE LINGUAGEM

Quando foi preso, Graciliano já publicara os dois primeiros romances e havia entregue ao editor, embora constrangido, o terceiro. Na juventude, vivera alguns meses no Rio, como revisor de jornais, retornando a Alagoas quando da morte de alguns irmãos, e com o intuito de ajudar o pai. Isso significa que, num dos casos mais estranhos da literatura brasileira, três quartos de sua obra romanesca foi produzida na solidão quase absoluta da província, alimentada por livros que encomendava às dúzias, inclusive em francês, inglês e italiano, que lia sem falar, ou falando mal e porcamente.

Não, meu estimado e esperto leitor, não me refiro ao autor de um primeiro livro, seja ficção ou poesia, matutado, escrito e editado na província. Isso é comum. Mesmo quando impresso em Lisboa, Paris ou, no caso de mineiros e nordestinos, no Rio, esse primeiro livro era apenas a alavanca que catapultava para a metrópole o “jovem promissor”. Eu não teria espaço para citar todos os que agiram assim.

A linguagem de Graciliano Ramos é única e pessoal. Seu rigor sintático e prosódico beira o exagero. Teria chegado a essa pureza aperfeiçoando a fala bruta do sertanejo com quem conviveu? Pode ser que sim.

Imagino que, ouvindo a prosa redundante de seus vizinhos, amigos e parentes, passou a lima nas frases, nos verbos, nos pronomes e nos adjetivos, até chegar ao cerne da linguagem literária que buscava.

Talvez tenha sido assim, simples assim. Hoje não existe mais escritor provinciano em termos físicos. Sobrevivem os provincianos mentais, aos milhões, como em todas as épocas. Seria contudo impossível a existência de um novo Graça, porque a internet, as redes sociais e o celular não deixam. Precisamos inventar um nome para essa pós-pós-modernidade.


O escritor SEBASTIÃO NUNES escreve no Magazine aos domingos.
Luis Nassif

Luis Nassif

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