Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Qual o quê!, por Ana Laura Prates

Certamente passaremos a eternidade discutindo se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte, de tão amigas que ambas são – como diz Caetano.

Qual o quê!

por Ana Laura Prates

No terceiro episódio da belíssima e necessária série “O canto livre de Nara Leão”, Chico Buarque comenta a canção “Com açúcar com afeto”, de sua autoria. Chico diz que fez a canção a pedido de Nara, inspirado em tantas outras do cancioneiro popular, nas quais o marido cai na gandaia e a mulher fica em casa chorando.  Ele diz ainda que entende o incômodo que a letra provocou nas feministas, embora, dialeticamente, considere o contexto da época em que a música foi composta. Acrescenta que não pretende mais cantá-la, e que imagina que Nara tampouco o faria se estivesse viva. Jamais saberemos, infelizmente! Na sequência, assistimos a uma entrevista antiga de Nara dizendo que adora esse tipo de canção: “cê vê que eu também canto minhas bobagens”, ela diz.

“Com açúcar com afeto” foi composta em 1967, ano em que nasci. A história da minha vida é desde sempre acompanhada pelas canções de Chico e interpretações de Nara e, no meu imaginário infantil, eles formavam um casal romântico perfeito. Cresci ouvindo minha mãe, feminista não militante, contar as histórias da bossa nova e da mpb, muitas delas testemunhadas ao vivo e a cores por ela e meu pai: as dissidências, as (o)posições políticas, as tretas entre Nara, Elis e Maysa, a história de cada uma delas, etc. Lembro-me nitidamente de minha mãe – que era especialista em Grécia antiga – me explicando que a letra de “Mulheres de Atenas” era irônica. Foi uma aula da concepção grega de mulher como homem inacabado, mas também de ironia enquanto recurso retórico e literário. Talvez por isso eu sempre tenha escutado “Com açúcar com afeto” do mesmo modo: no fundo ela faria uma espécie de caricatura sofisticada de “Camisa amarela”, transformando em romantismo lírico uma situação humilhante e opressora para a mulher. O eufemismo do final: “abro os meus braços pra você” ao invés de “minhas pernas” parecia ser a prova cabal dessa interpretação que, talvez, só existisse na minha cabeça – quem sabe para salvar minha dupla de heróis infantis!

Um debate sério sobre a relação entre a obra de arte, o contexto sociopolítico e cultural e, mais ainda, as posições pessoais assumidas pelos autores é extremamente complexo. Exigiria passar pela questão da indústria cultural, com Adorno, pela questão sobre o que é um autor, com Foucault e tantas outras e outros. O certo é que há artistas conservadoras e conservadores em toda a história da arte, que, no entanto, produziram obras extraordinárias. Há ainda artistas geniais que apoiaram regimes e ideias totalitárias. Absolutamente não é o caso nem de Chico, nem de Nara, ambos – embora brancos e oriundos da classe dominante – críticos contundentes da ditadura e sensíveis às questões das desigualdades sociais e raciais no Brasil. Mas, é certo também, que artistas são pessoas de seu tempo, mesmo aqueles que estão à frente da mentalidade da época. Chico e Nara, enquanto sujeitos, também! Aliás, ao longo da série, vamos acompanhando as transformações da artista Nara, mas também da mulher –que se recusava a ficar dentro da caixinha, como se diz hoje em dia, e que não tinha medo de mudança e de autocrítica. Chico não fica atrás, e pôde várias vezes rever suas posições ao longo da vida, o que de modo algum as invalida, no contexto em que foram tomadas.

Assim como o artista enquanto sujeito, a obra em si mesma e em sua relativa independência em relação ao autor, tampouco é isenta do julgamento da história. Certamente passaremos a eternidade discutindo se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte, de tão amigas que ambas são – como diz Caetano. Mas não podemos ser ingênuos a ponto de considerarmos a arte uma transcendência universal acima do bem e do mal e a-histórica, imune a seus movimentos dialéticos e, portanto, indiferente à crítica. É evidente que há um abismo intransponível entre a obra e a crítica, mesmo que haja obras com função crítica e críticas – embora mais raramente – que se tornam obra de arte. Uma vez publicada, entretanto, a obra ganha mundo e autonomia e será mastigada e digerida por suas contradições.

Chico está no mundo, ativamente. E sua declaração fazendo uma autocrítica em relação a sua canção, a partir da provocação de algumas feministas contemporâneas me pareceu muito bem-vinda e só reafirmou minha admiração por ele. Eu mesma passei a me incomodar com a letra de “Com açúcar com afeto”, sobretudo nos últimos anos, quando aprofundei meus estudos da feminista italiana Silvia Federici sobre a exploração do trabalho doméstico, de procriação e cuidado, como sendo a base invisível da exploração do proletariado – algo que a Pandemia escancarou em nosso país. É dela a famosa frase: “O que vocês chamam de amor, eu chamo de trabalho não remunerado”. Incomoda, né? Pois é! A letra de “Com açúcar com afeto” é –   como Chico, homem inteligente e sensível se deu conta – um “caso tipo” desse diagnóstico, romantizando o que seria uma vocação natural da mulher para o carinho, o cuidado e a compreensão. Em uma palavra: afeto (ou amor incondicional). Há anos já não como mais açúcar e não ouço mais essa bela canção sem sentir um grande mal-estar, como se fosse uma piada que perdeu a graça. Aconteceu comigo, poderia não ter acontecido, mas aconteceu.

Qual não foi minha surpresa, entretanto, ao ler comentários e textos – sobretudo de homens – indignados com a declaração de Chico. Minha surpresa se deve menos ao mérito da questão em si em torno da letra da canção – que, aliás, me parece muito bem-vindo, e em relação ao qual há bons argumentos contra ou a favor que merecem ser mais desenvolvidos com a profundidade que exige assunto tão delicado. Minha surpresa se deve à acusação de que “As feministas” haviam censurado e intimidado Chico. Como bem lembrou Margarete Pedroso: “Primeiro: não existe a entidade movimento feminista, muito menos a articulação das mulheres é única, mesmo porque mulheres não são únicas. Segundo: ninguém impôs qualquer tipo de censura ao Chico Buarque, se houve críticas à letra de uma música, essa crítica simplesmente foi acatada por seu autor (…) muito provavelmente porque concordou com a observação ou porque algo passou a incomodá-lo na letra da música que, em outros tempos e com outra cabeça, não o incomodava”. E ela ainda acrescenta: “Tanta celeuma apenas nos mostrou o quanto na nossa sociedade falta afeto e empatia aos movimentos sociais e que pouco ainda se entende sobre feminismo e liberdade”.

De fato, nós feministas, militantes ou não, realmente não formamos uma unidade. Aliás, os movimentos que defendem as diferenças e diversidades, por óbvio costumam ser plurais, às vezes divergentes e tendem a ter mais dificuldade em construir consensos e unificações. Mas o curioso é que o mesmo campo progressista que ainda ontem mostrou-se legitimamente indignado com o absurdo artigo de Antonio Risério sobre um suposto racismo reverso, agora praticamente inventa uma categoria igualmente inexistente: o feminismo – quando deveríamos falar “os feminismos” – como sendo uma espécie de “machismo reverso” ou uma delirante opressão proporcional de mulheres sobre homens! Ora, no Brasil, ocorreram 1350 casos de feminicídio em 2020, a maioria de mulheres negras e pardas. A maior parte desses crimes, bem como de abusos e violências físicas, psicológicas e sexuais ocorrem dentro de casa. O isolamento mostrou que quando os homens param em casa, realmente é pior. Essa realidade nada romântica poderia sensibilizar alguns intelectuais e artistas, como sensibilizou o Chico, e fazê-los contar ao menos até três. Se precisar, contar outra vez – seguindo o conselho de Erasmo e Roberto – antes de, numa inversão descabida, sentenciar mulheres que estão lutando para construir uma sociedade na qual nossas filhas não precisem viver com medo. Eles poderiam se perguntar por que para algumas mulheres, a letra de uma canção bela, sutil e ambígua possa ferir e machucar. Porque não as escutar, ouvir seus argumentos? Mesmo que algumas se excedam, radicalizem… seus gritos ainda têm um alcance muito pequeno. Por que ainda é tão difícil reconhecer e ceder privilégios?

Se algumas feministas incomodam muita gente, o machismo mata. Qualquer incômodo provocado ainda é muito desproporcional ao tamanho da violência que vitimiza as mulheres e é inadmissível que, num malabarismo retórico, se inverta o sinal e transforme as feministas em censoras. Enquanto a intelligensia refinada e culta fica discutindo seu doce predileto e reduzindo um dos maiores compositores populares vivos no Brasil a um tolo manipulado pelas bruxas, 8 mulheres são agredidas por minuto, algumas fazendo doce pro agressor parar em casa. Qual o quê!

Ana Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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  1. Comentários não são artigos, ou textos elaborados com método e vagar; são reações imediatas, provocadas – no meu caso, pelo menos – pela leitura de textos que abordam temas que nos são caros, ou que, de alguma forma, nos afetam ou despertam a atenção.
    De comentários não se podem inferir idéias acabadas e refletidas, e muito menos, postulados.
    Entendo perfeitamente que nem toda feminista é adepta ou participante de movimentos identitários; e que nem todo(a) militante identitário é, de fato, o que aparenta ser. Se, em lugar de fazer um comentário, estivesse preparando um artigo, teria tido tempo para refletir sobre isso – e me penitencio por atribuir ao Chico Buarque um constrangimento, próprio ou induzido, que não sei se foi o caso – e nem é de minha conta saber.
    De resto, continuo cheio de desconfiança em relação ao destino desses movimentos ditos identitários; não só parecem ser, desagradavelmente, um espelho simpático ao velho e tenebroso “dividir para conquistar”, com que o colonialismo, e, depois, o imperialismo, puseram em prática nessa banda do hemisfério, para conquistar nossos corações e mentes (ou, ao menos, os corações e mentes daqueles setores da população nativa que podiam fazer a diferença a favor deles), o simples fato de a propaganda das grandes corporações, dos bancos, ou uma entidade como a Rede Globo, ter adotado, rápida e maciçamente, essa visão do mundo, com tudo que ela implica, deveria ser o bastante para fazer levantar alguns sobrecenhos por aí.

  2. O texto é preciso e delicado, a canção é belíssima e ficará na memória das nossas gerações, e o gesto do Chico é mais uma obra de arte eternizada no instante.

  3. Me incomoda a série de ilações do texto para, partindo da obra analisada, chegar ao resultado feminicídio. Análise a-histórica é a que despreza o passado e situa a obra ou o fato pretérito na atualidade sem ponderar os contextos extremamente diversos com todos os ingredientes do anacronismo. Sem dúvida, não seria uma obra tipo Com açúcar Com afeto, ouvida apenas por intelectuais, que iria contribuir com o aumento da violência contra a mulher. O excesso de criticismo leva a irrelevância de temas importantes, porque cai na vala comum da irrelevância: “é apenas mais uma crítica”.

  4. Retomo meu argumento: não entendem “Com Açúcar, Com Afeto”. Esta canção não conta como é bom ser um homem salafrário e aproveitar-se de uma mulher. Não conta como o vadio e cachaceiro maltrata fisicamente sua companheira. Conta, com todas as letras, a consciência dela de seu sofrimento, a dor profunda que sente, o esforço sobre humano que é fazer algo com afeto para quem não liga.
    Vou parar de ser educado.
    Que merda! Vocês todas e todos que criticam a música nunca ficaram reféns de uma paixão? Nunca se anularam como pessoa diante de quem só lhe trazia dor? São os tais que nunca levaram porrada? Com Açúcar, Com Afeto fala dessa dor, desse ser alguém que, a despeito de todo o mal que recebe em troca, vê o mal encarnado – maltrapilho e maltratado – e ainda se vê tomada dessa paixão, desse amor doentio e infernal.
    Não é a ode ao macho dominador. É o réquiem de uma alma torturada pelo se saber desprezada, tratada como lixo, e ainda assim prisioneira dessa paixão. É a vida de milhões de mulheres – e também de muitos homens – por todo o mundo, aprisionadas na cela invisível de suas emoções.
    E vocês aí querendo que elas sejam racionais, que se livrem desse amor malfazejo, que se afirmem como mulheres. Se fosse fácil não sucumbir aos sonhos e às paixões, não veríamos as milhares de mulheres, de mocinhas recém púberes a senhoras idosas, às lágrimas com as centenas de canções de “sofrência” horrendas e tantas sim machistas, que dia sim e outro também vemos.
    Com Açúcar, Com Afeto é uma lição. Uma lição para que todos, homens e mulheres, nos esforcemos para resistir às paixões, ao amor-dependência, à submissão. Não é para ser esquecida, é para ser ensinada. Para ser tocada e depois perguntar às suas filhas, irmãs, mulheres ao seu redor: é isto que vocês querem ser? Alguém que abdica de si por uma pessoa?

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