Sobre corpos caindo do céu e a ânsia de sobrevivência e liberdade, por Adriana Coelho Saraiva

Não será muita miséria ética e de criatividade intelectual termos de arcar com uma escolha tão extrema como aquela entre a invasão imperialista e um governo fundamentalista?

Reprodução vídeo Al Jazeera

Sobre corpos caindo do céu e a ânsia de sobrevivência e liberdade

Ou

Sobre a Empatia na Esquerda

por Adriana Coelho Saraiva

Posso imaginar o terror dos afegãos. Posso imaginar o medo tomando conta de seus corpos e mentes, a ponto de fazê-los se agarrar a aviões em pleno voo, despencando dolorosamente no vazio. Posso vislumbrar seu horror nos amontoados de gente no aeroporto, nas ruas, rezando, implorando por um espaço nas máquinas que os levariam para fora de uma ameaça talibã.

Não é difícil nos colocarmos em seus lugares. Basta lembrarmos como nos sentimos, muitos de nós no Brasil, na iminência da posse de Bolsonaro. Fomos tomados por um terror insano (sofri, então, o primeiro – e único – ataque de pânico de minha vida e tenho certeza de que não fui a única). Talvez o terror não tenha feito jus aos fatos imediatamente subsequentes à posse do presidente de nossos pesadelos. Talvez a memória de cenas, vividas ou contadas da ditadura de 50 anos atrás, não tenham se confirmado de imediato.  Mas, certamente, nós sabemos, foram um tipo de presságio tenebroso que anteciparam o atual estado de coisas, nada suaves, pelas quais estamos passando. E, vale notar, não fomos tomados por uma ditadura fundamentalista em toda sua extensão.

Talvez o novo governo talibã se apresente mais ‘civilizado’ (?), menos violento e misógino, dizem alguns. E consiga se contrapor às tremendas violências – ocultadas ou não (mas certamente invisibilizadas para nós, no ocidente), promovidas pela invasão estadunidense. Talvez o talibã promova melhores condições para a jovem população (masculina) do país, dizem outros e consiga, inclusive, controlar o tráfico de ópio que grassa na região. Talvez, quem sabe, com as novas ou possíveis conexões estabelecidas com Rússia e China, façam uma ‘virada ideológica’ no movimento e contribuam para a reconfiguração da geopolítica global, abrindo novas perspectivas para a derrocada dos Estados Unidos. Talvez, ainda, parte das cenas terríveis que temos visto pela mídia corporativa sejam cenas ‘construídas’ (?!), exploradas, com o intuito de causar comoção social e um subsequente possível apoio a uma nova possível operação de guerra no país. E, embora seja absolutamente crítica quanto à capacidade manipulativa da mídia – a verdadeira responsável pelo surgimento do fenômeno a que damos hoje o nome de Fake News, considero que esta não tem o poder de criar realidades do nada, embora possa ampliar ou reforçar percepções em alguma direção. Ou seja, há algo de muito real no horror da população afegã à possibilidade do regime talibã e esse fato não é negado por estudiosos e especialistas sobre o tema.

Finalmente, ainda é possível que o talibã adira, simplesmente, à moda atual de promover governos autoritários com uma maquiagem de democracia. Chegarão a tanto?  Custo a crer, entretanto, que consigam lapidar o pensamento e a prática fundamentalistas que os caracteriza a esse ponto. Mas, nesse mundo de pós-verdades, tudo pode parecer o que não é. Ou até mesmo ser.  Então, resta-nos esperar.

Em minha opinião, o que não é possível fazer é perder o bom-senso (muito menos a esperança) e precisar escolher entre uma ocupação imperialista e um governo fundamentalista. E não perder a perspectiva de que esse fundamentalismo, tendo sua origem justamente na exploração imperialista, se constituiu como resposta ao caos e à destruição promovidos por sucessivas invasões a seu território e autonomia, (e muito provavelmente sob o estímulo desses poderes que os querem destruir e subjugar), mas nem por isso expressa, necessariamente, uma resposta libertadora para seu povo.

De tudo o que tenho lido e ouvido sobre o tema (e estou muito longe de me postar como alguém que entende em profundidade aqui) veem-me à mente algumas reflexões: Não será muita miséria ética e de criatividade intelectual termos de arcar com uma escolha tão extrema como aquela entre a invasão imperialista e um governo fundamentalista? Ou seja, para reconhecer a realidade geopolítica imperialista que nos oprime e tenta nos manipular ao longo dos séculos, é preciso nos tornar defensores de outros regimes opressores?

Pode ser uma utopia libertária (etnocêntrica?) de minha parte e, nas atuais circunstâncias de capitalismo tardio, neoliberal, ultra explorador e concentrador em que vivemos, sem quaisquer perspectivas concretas de implantação. Pode mesmo revelar uma falta de conhecimento da complexidade vivida pelos afegãos, levando à ‘supervalorização’(?!) de dimensões como a dominação absoluta das mulheres ou da reconhecida violência e autoritarismo impetrados contra a sociedade em geral. Mas nada me convence de que é possível apoiar qualquer sistema político que embuta em suas entranhas o esmagamento dos direitos mais essenciais ao ser humano. 

Assim, prefiro continuar a acreditar e a lutar por uma sociedade igualitária, autônoma e coletivista do que me render à dura realidade de um governo violento, fundamentalista e misógino como alternativa contemporânea, mesmo que supostamente provisória, ao neoliberalismo e imperialismo. Resta ainda uma pergunta que considero essencial: falta a parte da esquerda (brasileira?) a imaginação para pensar alternativas que não sejam a mera repetição de processos socioculturais e políticos fundados na reprodução da opressão ou na negociação transigente com esse sistema?

Adriana Coelho Saraiva – Doutora em Ciências Sociais pelo centro de Estudos Latino Americanos –ELA / UnB. Analista em Ciência e Tecnologia – Senior do CNPq

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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