Uma data, um mito e um mitômano, por Ivan Colangelo Salomão

Dois séculos depois, um psicopata de mesmo acrônimo trabalha incansavelmente para desconstruir a engenharia social que, a duras penas, unificou o país. Estamos à beira de uma guerra civil.

Dois séculos depois, um psicopata de mesmo acrônimo trabalha incansavelmente para desconstruir a engenharia social que, a duras penas, unificou o país. Estamos à beira de uma guerra civil.

Uma data, um mito e um mitômano

por Ivan Colangelo Salomão

Poucos são os brasileiros que tiveram a oportunidade de imprimir de forma tão clara suas próprias digitais na história do país. Conquanto se reconheça a primazia de interesses e instituições sobre o voluntarismo individual de determinados atores, o encadeamento da história guarda algum espaço para as circunstâncias contingenciais e, eventualmente, para a ação humana.

José Bonifácio de Andrada e Silva foi um deles. A dedicação tardia à causa emancipacionista legitima a controvérsia acerca da alcunha com que ficou afamado. Extemporâneo e transigente, o rompimento por ele proposto – independência política, sob um regime monárquico liderado pelo príncipe herdeiro português – acabou encoberto pela necessidade pátria de criação de heróis. Dono de temperamento irascível, arrogante e autoritário, apresentava enorme capacidade de colecionar inimigos, motivo pelo qual foi alijado do poder antes de o Brasil independente completar 1 ano.

Ainda que derrotado em sua mais importante causa, o fim da escravidão, o Patriarca da Independência logrou conduzir o processo que resultou na emancipação. Intelectual de vasta cultura e atestada experiência na máquina pública lusitana, JB pensou um país jamais materializado. Não se tratava exatamente de um revolucionário, mas a defesa de ideias absolutamente vanguardistas justifica o lugar no panteão dos brasileiros ilustres. JB empunhou o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravatura. A esse respeito, argumentava com inegável coerência: “É de espantar que um tráfico tão contrário às leis da moral humana e às santas máximas do evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dura há tantos séculos entre homens que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram”. Advogou a convivência pacífica e respeitosa com os brasileiros originários. Lutou por um por uma reforma agrária que distribuísse terras improdutivas a negros e indígenas. Propôs educação universal e tolerância religiosa. Foi um dos primeiros e mais aguerridos ambientalistas em defesa da preservação das florestas nativas. Trata-se de projeto memorável mesmo para os padrões hodiernos; preconizado há 200 anos, contrariou tantos interesses que não poderia ter outro destino senão a derrota.

Apesar dos inúmeros fracassos, sua contribuição para independência não pode ser minimizada. A começar pela ruptura de Pedro I com as Cortes de Lisboa, que exigiam o retorno imediato do príncipe-regente a Portugal. O Fico, “o alea jacta est da emancipação brasileira” teve todos os dedos de JB, uma vez que o jovem herdeiro cogitava, de fato, embarcar para a Europa. Ao ser nomeado ministro dos Negócios do Reino e Estrangeiros, em janeiro de 1822, JB se tornou o primeiro brasileiro a ocupar oficialmente o Gabinete Real, reforçando a ira dos portugueses que não aceitavam a crescente influência dos locais nos rumos do país.

Ainda que menos reconhecida, sua mais importante obra se deu pela manutenção da unidade do território nacional, um dos mais controvertidos fenômenos históricos e sobre o qual a historiografia não oferece resposta consensual. Resultado de uma confluência de fatores – políticos, econômicos, sociais, geográficos e circunstanciais –, a união do país recém-criado ao redor do Rio de Janeiro parecia objetivo tão difícil quanto improvável.

Em primeiro lugar, havia a ameaça republicana das ex-colônias hispânicas. JB mantinha alguma desconfiança em relação ao soft power das experiências “democráticas” observadas na porção ocidental do subcontinente; para ele, “as repúblicas da América nenhum amor tinham ao Brasil”. Além disso, a resistência portuguesa em algumas localidades mais afastadas – principalmente na Bahia e no Maranhão – foi equacionada somente após o fim dos confrontos armados. Para tanto, JB organizou uma força marítima e contratou o oficial Thomas Cochrane – um mercenário escocês que havia atuado na libertação do Chile, e que, meses depois, seria o responsável pela prisão do próprio Andrada – para liderar as tropas brasileiras no conflito. E assim inaugurou-se oficialmente a Marinha brasileira, à qual o patriarca empresta o nome a três de suas belonaves. Daí a importância da permanência de Pedro I no Rio de Janeiro. Na ausência da força centrípeta representada pela presença do príncipe, não haveria contrapeso que mantivesse a união com as províncias brasileiras distantes da capital.

Por fim, o medo que a elite branca nutria em relação a uma revolta negra nos moldes do que se observara no Haiti levou essa corja diminuta a articular a composição em torno da Coroa. A despeito das inúmeras rivalidades regionais e da insatisfação com a centralização política (e tributária) do Rio de Janeiro, o pavor de uma insurreição dos cativos selou o destino continental do país: antes rompidos com Portugal do que obrigados a conviver com negros livres.

Inobstante o inegável poder de que gozou naquele momento histórico, o principal erro político de José Bonifácio foi ter tentado civilizar a elite brasileira. JB falhou ao procurar mostrar que seus interesses estavam contemplados pelas reformas por ele propostas. Ao defender desenvolvimento econômico com ordem interna, buscou oferecer um futuro mais glorioso a uma elite que desejava apenas um presente mais lucrativo, tendo sido, por ela mesma, facilmente silenciado.

Embora tenha sido posteriormente reconhecido como um dos mais importantes homens públicos brasileiros, a trajetória política de Bonifácio foi marcada muito mais por derrotas do que pela glória. O “homem que construiu o Brasil” não viu a grande maioria de seus projetos se tornar realidade, sobretudo os de cunho social. A posterior materialização de algumas das bandeiras por ele defendidas, no entanto, sobrepujou a sua derrocada para, muito tempo depois, honrar a justeza de suas ideias.

Dois séculos depois, um psicopata de mesmo acrônimo trabalha incansavelmente para desconstruir a engenharia social que, a duras penas, unificou o país. Estamos à beira de uma guerra civil.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Redação

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