Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
[email protected]

A crise da educação como crise da formação cultural, por Michel Aires Dias

Na sociedade semiformada, a educação perdeu a finalidade de ser um instrumento de formação cultura e de conscientização

A crise da educação como crise da formação cultural

Por Michel Aires de Souza Dias [1]

A crise da educação tem uma relação intrínseca com a crise da formação cultural no mundo contemporâneo. A escola não é um fenômeno isolado, uma vez que está submetida às relações de poder que estão presentes na sociedade. Desse modo, a educação é o resultado inevitável da dinâmica atual do processo produtivo, econômico e político. Na sociedade capitalista, estratificadas pelo poder do capital, a classes dominantes impõe suas ideias a todas as esferas da vida social. Como Marx bem observou: “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa sociedade é também o poder espiritual dominante” (MARX, 1976, p. 48). Desse modo, a educação surge no capitalismo como reflexo das relações econômicas, uma vez que ela é parte da superestrutura ideológica que determina a direção moral e intelectual do corpo social. Assim, a escola é um local de dominação simbólica, uma vez que reproduz a cultura e os valores da burguesia para a manutenção da sociedade de classes.

Se analisarmos a escola a partir de sua estrutura, de sua organização, dos conteúdos disciplinares e dos objetivos almejados, chegamos à conclusão de que toda sua estrutura tem como única finalidade, preparar os indivíduos para o mercado de trabalho. Como avalia Libânio (2006), na sociedade brasileira atual, a estrutura social se apresenta dividida em classes e grupos sociais com interesses distintos e antagônicos; esse fato repercute tanto na organização econômica e política quanto na prática educativa. Assim, a finalidade e meios de educação subordinam-se à estrutura e dinâmica das relações entre as classes sociais, ou seja, são socialmente determinadas.  Isso significa que os objetivos e os conteúdos do ensino e o trabalho docente estão determinados por fins e exigências sociais, políticas e ideológicas.

Desde sua origem, a escola foi perdendo o seu sentido original, como formação para autonomia, para o aperfeiçoamento moral e para a participação política. O primeiro Comitê de Instrução Pública da Assembleia Legislativa Francesa surgiu em 1792, três anos depois da revolução francesa. O objetivo desse comitê era propor os fundamentos de uma escola universal, pública, laica e gratuita.  A partir dos princípios iluministas, buscava-se engendrar uma pátria regenerada, capaz de efetivar os princípios de uma sociedade verdadeiramente democrática. Sendo assim, supunha-se ser a escolarização um dos veículos prioritários na construção da nacionalidade (BOTO, 2003). O presidente do comitê era Condorcet, um dos grandes enciclopedistas, que tinha como preocupação fundamental melhorar a vida dos mais pobres e do povo para dirimir as grandes desigualdades de talentos e equalizar as oportunidades por meio da escolarização. Desse modo, o conhecimento traria uma característica emancipatória posta na formação da consciência livre; do sujeito capaz de pensar por si mesmo, sem o recurso à razão alheia. Nesse esquadro, a instrução pública seria estratégia dos poderes seculares dirigida a promover a equidade, a razão autônoma e o primado da diferença de talentos sobre a diferença de fortunas (BOTO, 2003).

As ideias de Kant nortearam os princípios daquele comitê. Para o filósofo iluminista, a educação seria o grande segredo para o aperfeiçoamento da humanidade, pois ela deveria preparar os indivíduos para a autonomia de pensamento, para a moralidade e a cidadania. Por meio da educação, o indivíduo deveria ser preparado para o esclarecimento e para o pensamento autônomo. Ele deveria refletir sobre os problemas urgente de seu tempo, adquirindo um papel ativo na sociedade, fazendo o uso público de sua razão. Nesse sentido, o esclarecimento seria a única forma de saída do homem de sua menoridade, entendido como a incapacidade dele se servir de seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem. Separe Aude (Ouse saber), isto é, tenha a coragem de fazer uso de seu próprio pensamento era o grande lema que definiria o esclarecimento (KANT, 2008). Como avalia Dalbosco, “o próprio progresso do esclarecimento é o resultado de um primado pedagógico inerente a ideia de maioridade, uma vez que o pensar por conta própria não ocorre por mera obra do acaso, mas é consequência de um processo formativo educacional” (DALBOSCO, 2011, p.89).

Os iluministas de modo geral acreditavam que o homem como construtor da cultura deveria ser capaz discernir, avaliar e agir com autoconsciência para modificar sua própria vida e da existência social como um todo. Para eles, promover a felicidade e a dignidade humana deveria ser o fim último da educação. Assim, o Estado era o maior interessado na formação dos indivíduos, até para que viessem a público os sujeitos mais meritórios; os talentos; as aptidões de cada um – o que conduziria a um aprimoramento geral da sociedade (BOTO, 2003).

Se a educação em sua origem buscava o aperfeiçoamento integral dos indivíduos para o aprimoramento da sociedade, por que a educação abandonou aqueles princípios? Por que a educação perdeu suas características de experiência formativa, de esclarecimento e conscientização da realidade?  Como dissemos no início do texto, a crise da educação tem uma relação intrínseca com a crise da formação cultural no mundo capitalista. Nos séculos XVIII e XIX, se entendia a cultura como o entrelaçamento entre o mundo espiritual com o plano da reprodução material da sociedade, ou seja, o entrelaçamento entre o mundo físico e simbólico. Contudo, houve uma grande transformação no mundo moderno, a cultura burguesa separou essas duas esferas. O mundo espiritual foi expulso do plano material e histórico da sociedade. Em consequência disso, a arte e a cultura tornaram-se ideológicas. Os ideais iluministas de igualdade, liberdade e felicidade somente foram aceitos no plano da arte e da cultura espiritual burguesa, não sendo aceitas no plano material da civilização (MARCUSE, 1997).

A burguesia somente conseguiu uma dominação progressiva sobre o trabalhador porque monopolizou a formação espiritual. Segundo Adorno (2005), a desumanização implantada pelo processo capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação cultural. Todas as tentativas educacionais para impedir essa situação se transformaram em caricaturas. Toda a chamada educação popular nutriu-se da ilusão de que a formação, por si mesma e isolada, poderia revogar a exclusão do proletariado, que sabemos ser uma realidade socialmente constituída. Nesse sentido, foi a própria realidade objetivada pela reificação e pelo trabalho social que impediram uma formação plena do trabalhador.

Com o advento da sociedade de massas, no início do século XX, o capitalismo liberal foi substituído pelo capitalismo monopolista. Foi a época dos regimes totalitários e do socialismo planificado. Com isso, o mercado perdeu sua função de controle na coordenação da economia e da produção. O papel de regulação, organização e controle passam para as mãos do Estado. O foco deixa de ser econômico, mas político. O aparato técnico torna-se fundamental não somente para a objetivação da realidade, mas para a produção da subjetividade. Com isso, a própria consciência torna-se objeto de controle e coordenação em larga escala para a manutenção das estruturas de poder.  Surge, a partir daí, uma nova indústria cujo objetivo é produzir cultura para as massas.

Na época do capitalismo monopolista, os controles técnicos tornam a sociedade cada vez mais administrada. Com o desenvolvimento do enorme aparato de produção e distribuição de mercadorias, os bens culturais são mercantilizados. O que caracteriza aquela época era a união entre as esferas da indústria e da cultura. A indústria cultural substitui a cultura genuinamente espontânea e popular por entretenimentos e produtos padronizados para o grande público. Com isso, a cultura foi abalada em seus próprios alicerces, ela tornou-se ideologia.

\A função dessa indústria cultural foi a de introjetar a visão de mundo, os valores, as formas de comportamentos e os padrões de conduta capitalista na interioridade do indivíduo massificado. A partir disso, a formação cultural converteu-se em semiformação, entendida como uma espécie de semicultura, cuja característica é ser unidimensional e limitada. A semiformação é uma formação “definida a priori”, que se tornou a “forma dominante da consciência”, convertendo-se em “semiformação socializada”, sob a determinação da indústria cultural (ADORNO, 1996). A partir disso, as imagens passam a fazer a mediação entre o indivíduo e a realidade. Como afirma a filósofa americana Susan Sontag (1981), uma sociedade torna-se moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens, quando as imagens passam a determinar nossas exigências com respeito à realidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, à estabilidade política e à busca da felicidade individual.

Quando a semiformação se torna o espírito da nossa época, o indivíduo não tem mais acesso direto à realidade. Esta surge como engenharia, como um construto, como falsa consciência, ou seja, como mera ideologia. O mundo produzido pelas imagens aparece como um fato natural, a reprodução de seu conteúdo na consciência converte-se em verdade. Desse modo, a educação se torna impotente para produzir uma verdadeira consciência da realidade.

Na concepção de Adorno, “a formação nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva” (ADORNO, 2009, p.2). Contudo, na sociedade semiformada, a educação perdeu a finalidade de ser um instrumento de formação cultura e de conscientização. Como afirma Crochík (2009), para a reprodução dessa sociedade não é mais necessário a formação intelectual e cultural, mas aquela que dê conta da racionalidade técnica, que é o pensamento que relaciona meios e fins. Desse modo, a educação historicamente foi perdendo seu sentido, se colocando a serviço da reprodução e manutenção do capitalismo. Como avaliou Adorno (1995), a finalidade da educação não deveria ser apenas transmitir conhecimentos ou modelar os indivíduos a partir de uma necessidade exterior, mas deveria ser, antes de tudo, a produção de uma verdadeira consciência da realidade. Esse fato é uma exigência política. Isso porque, uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado.

[1] Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]


Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor
Wiesengrund. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

ADORNO, Theodor. Teoria da Semicultura. Revista Educação e Sociedade. Campinas:
n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411.

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Educação – Para quê? In: ADORNO, Theodor
Wiesengrund. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.139-154.

BOTO, Carlota. Na revolução francesa, os princípios democráticos da escola pública,
laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 84, p. 735-
762, setembro 2003.

CROCHÍK, José Leon. Educação para a resistência e contra a barbárie. Revista
Educação: Adorno pensa a Educação (Coleção Biblioteca do professor). São Paulo:
Editora Segmento, ano 2, nº 10, p.16-25, 2009.

DALBOSCO, Claudio Almir. Kant & Educação. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2011.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é iluminismo?. In: KANT, Immanuel. A
paz perpétua e outros opúsculos. Petrópolis: Vozes, 2008.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 2006.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã. Lisboa. Editorial Presença, 1976.

MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e sociedade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a Fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Ed. Arbor, RJ,
1981.

 

 

 

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

16 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Excelente artigo e participação na atpc (sul3), onde traz a explanação que o processo pedagógico deve contribuir para o reflexão entre os fenômenos e a totalidade que os condiciona.

  2. Realmente , discutirmos a questão da Educação no Brasil exige certos preceitos, uma vez que ela, a Educação tem assumir seu papel não só na formação do individuo na ou para a Sociedade, mas também na implementação de uma série de outros valores Culturais que foram se perdendo por imposição de ideologias totalitárias das classes dominantes. É necessário uma reflexão por parte da categoria com relação à retomada de um série de conceitos que ao longo dos anos foram se perdendo de forma conjuntural. A Educação assume uma grande responsabilidade na retomada desses Valores Culturais que estão sendo deixados de ser essência da própria cultura.

  3. Excelente contribuição para o ATPC na D.E sul 3.
    Artigo de Dias, Michel nos leva para uma reflexão a respeito da educação na atualidade.
    Att

  4. Atualmente, o dinheiro parece ser o único valor inquestionável da sociedade, seu único padrão. A melhor medida para dizer se uma sociedade vai bem ou vai mal é o desenvolvimento econômico. Basta que um país tenha dinheiro, não entram em cena questões como a felicidade da população, o respeito ao meio ambiente, os valores democráticos, os direitos humanos ou a possibilidade do desenvolvimento humano dos seus indivíduos.

    1. Concordo com a colega Glauciane i dinheiro parece ser o mais um importante na nossa sociedade, a pergunta que fica é como estarão o aprendizado e conhecimento daqui a algum tempo? Qual relação teremos com o meio ambiente, com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária?

  5. ATPÇ hj foi muito boa, A Crise na Educação no mundo contemporâneo, fez todos nós refletirmos sobre a educação e a cultura e o palestrante faz você entender de forma clara e objetiva. Parabéns.

  6. A crise na educação faz nós refletirmos sobre a cultura dominante e como ela se impõe no mundo capitalista.
    Palestra muito boa.

  7. Maravilhosa a contribuição de hoje no nosso ATPC. O tema nos leva a uma reflexão mais aprofundada sobre a crise da educação no mundo contemporâneo e a cultura dominante em detrimento do capitalismo.

  8. Riquíssimo a contribuição do Artigo apresentado por Dias, Michel trouxe momentos de reflexão sobre o processo ensino aprendizagem diante de uma cultura padronizada inserida no mundo capitalista. Parabéns, a palestra foi de extrema relevância.

  9. A escola parece que perdeu seu rumo ao longo da história, assim como o profissional da educação perdeu o respeito como profissão e como ser humano

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador