Muito “mitido”, só porque ganhou o Torneio Início (1959), por José Carlos Faria

Opinião do menino Luis Nassif sobre o Flamengo, em carta ao seu Tio João

O GLOBO 06/07/59 – NO CAMPO O TROFÉU JOÃO HAVELANGE – BABÁ DEU O TÍTULO AO FLAMENGO

Muito “mitido”, só porque ganhou o Torneio Início (1959)

por José Carlos Faria

No “Encontro com os Nassif” do último domingo, dia 06/03, na condição de “nosso historiador de futebol”, nas palavras do próprio, fui perguntado se lembrava dos jogos narrados por ele, aos nove anos, em carta endereçada ao seu Tio João. Reproduzo-a, a seguir, ipsis litteris:

Poços de Caldas, 28 de julho de 1959

Prezado Tio João

Como vai o senhor; e tia Tereza, o priminho Mario, a tia Noca (Deca), o tio Evandro, o Francisquinho e o Evandrinho. Nós aqui estamos muito bem…O Flamengo é tão grosso que para empatar com o Olaria pagou para o goleiro deixar passar gols; porque se não fosse isso era para perder de 3×0 mas o Olaria também divertiu-se muito dando muitos bailes no Flamengo. O Flamengo está muito “mitido” só porque ganhou o torneio início. Quando foi jogar com o Vasco, quis ficar brincando mas como o senhor sabe o VASCO não é de brincadeira e jogou firme conseguindo assim o empate de 2×2. Em aspirantes o VASCO venceu o Flamengo por 2×1. O Botafogo é outro fundo empatou com o Bangu que é um time muito ruim de 0x0.

Muito obrigado

Do seu sobrinho

Luis Nassif

Respondi ao Nassif que, daquela época, lembrava do Super-super-campeonato do Vasco em 1958, objeto de conversa nossa em “Encontro” anterior, quando foi relembrado o time vencedor: Barbosa, Paulinho, Beline, Orlando e Coronel; Écio e Roberto Pinto; Sabará, Rubens, Almir e Pinga. Erradamente, tínhamos escalado o Vavá, depois bicampeão mundial, que só atuou em três jogos no início do certame, quando foi vendido para o Atlético de Madri.

O Vasco foi considerado super-super-campeão, pois para decidir o título foram realizadas duas rodadas adicionais entre ele, o Flamengo e o Botafogo, que haviam terminado os dois turnos do campeonato, com o mesmo número de pontos. Numa primeira rodada, cada um obteve uma vitória, sendo necessária uma nova, em que o Vasco venceu o Botafogo, por 2×1, e empatou com o Flamengo em 1×1.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS 20/01/59 – Beline o grande capitão do Vasco recebe a faixa das mãos do prefeito da cidade – PAU DE SEBO Colocação final dos clubes

Acrescentei na resposta que os jogos citados na missiva deveriam ser do Campeonato Carioca de 1959, que lembrei ter sido vencido pelo meu Fluzão. Despertada a minha curiosidade, pesquisei, em jornais da época, notícias sobre as partidas mencionadas por ele na carta. Queria entender o contexto do desdém do menino Nassif para com o Flamengo, considerado por ele estar “mitido”, só porque ganhou o Torneio Início. Ele já estava inoculado pelo germe da rivalidade, que alimenta até hoje os adversários no “Clássico dos Milhões”.

Na pesquisa, verifiquei que os jogos Flamengo 3×3 Olaria e Botafogo 0x0 Bangu, citados na carta, eram da segunda rodada do primeiro turno do carioca de 1959. Os outros resultados da mesma rodada foram: Vasco 6×0 São Cristóvão, Fluminense 1×0 Bonsucesso, América 0x0 Canto do Rio e Madureira 0x0 Portuguesa, conforme a coluna jornalística “Pra ler no bonde”, transporte público muito utilizado na época.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS 28/07/59

O Torneio Início, menosprezado pelo Nassif, era chamado, também, de “Initium”. Foi criado para apresentar as equipes que iriam disputar o campeonato estadual e realizado, com certa regularidade, de 1916 a 1967, no Rio de Janeiro. Uma maratona de jogos, realizados num domingo, num mesmo estádio, que começava pela manhã e muitas vezes terminava com os refletores acesos.

As partidas eram eliminatórias, em dois tempos de dez minutos. Se terminasse empatada, ganhava o time que conseguisse mais escanteios a favor. Havendo empate neste critério, disputava-se em três pênaltis, batidos pelo mesmo jogador, e sem alternância. A partida final era em dois tempos de 30 minutos e prorrogação.

Nas suas primeiras edições eram torneios prestigiados, pois os clubes compareciam com as equipes principais e suas novas contratações. Depois, passaram a ser disputados pelos “clubes grandes” com times mistos, formados por reservas e juvenis (até 18 anos). Os chamados “times pequenos”, no entanto, iam com seus melhores jogadores e algumas vezes conseguiam até ser campeões, como o Olaria em 1960, o Madureira em 1957 e o simpático clube de Niterói, o Canto do Rio, em 1953.

No Torneio Início de 1959, a equipe do Flamengo era formada com quase todos os titulares, ao contrário dos outros “grandes”. Sagrou-se campeão, após vencer a final contra o Madureira (4×2). Na semifinal, eliminou o Vasco (1×0), derrota que deve ter ficado atravessada na garganta do Nassif.

O GLOBO – 06/07/59
O GLOBO – 06/07/59

Outro jogo citado, Flamengo 2×2 Vasco, foi o da primeira rodada. Era uma tradição que o jogo de abertura fosse entre o campeão e o vice-campeão do ano anterior. Nassif se vangloriou na carta de que o Vasco venceu a preliminar de aspirantes, por 2×1. Na época, antes da partida principal, havia a de aspirantes, entre os mesmos clubes.

Não havia substituições nos jogos, somente a do goleiro. Para manter em atividade os jogadores reservas, foi criada a categoria de aspirantes. Atuavam nela, também, os que tinham “estourado” a idade de juvenis (18 anos). Era, portanto, uma mescla com jogadores mais veteranos, nos quais se incluíam, também, os “come-dorme”.

Colagem de matérias de O GLOBO EDIÇÃO ESPORTIVA – 13/07/59

Para desmerecer o time rubro-negro, Nassif no comentário do jogo em que empatou com o Olaria por 3×3, deu a entender que o goleiro do Olaria foi subornado: “O Flamengo é tão grosso ….. que pagou para o goleiro deixar passar gols”. Acrescentou, ainda, que o Flamengo levou “muitos bailes”. Pelas reportagens do jogo, realmente o Flamengo jogou muito mal e o “Olaria quase lhe prega uma peça”, segundo a coluna “Pr’a ler no bonde”. O empate veio no último minuto, com uma cabeçada de Dida. O time esteve em desvantagem em 2×1 e 3×2.

O GLOBO EDIÇÃO ESPORTIVA – 27/07/59

Em sua carta, Nassif extravasa sua paixão cruzmaltina contra o rival, realçando uma simples vitória nos aspirantes, ao mesmo tempo em que menospreza a conquista do Torneio Início pelo rubro-negro. Segundo ele, isto não seria motivo de ele estar “mitido” (com a letra “i”).

Esse termo, acredito que uma abreviação de “metido a besta”, me era bem familiar, por escutá-lo muito em Santa Rita do Sapucaí – MG, cidade da minha família paterna, onde costumava passar férias. Na convivência com meus primos, percebi que o campeonato estadual que despertava mais interesse na cidade, assim como, acredito, em toda a região sul-mineira, era o carioca, provavelmente em razão de aqui ser a capital federal.

Nassif, na sua resenha futebolística, além de falar mal do Flamengo, lança críticas ao Botafogo (“é outro fundo”) e ao Bangu (“é um time muito ruim”). Só não fez nenhuma menção ao meu Fluzão, que ao término da segunda rodada já era o líder isolado com zero pontos perdidos, como se contabilizava na época (por derrota se perdiam dois pontos, por empate, um).

O GLOBO EDIÇÃO ESPORTIVA – 27/07/59

O Fluminense conquistou duas vitórias apertadas por 1×0, contra o América e o Bonsucesso. Segundo o humorista Otelo Caçador, que publicava o PENALTY, no Caderno Esportivo de O GLOBO, eram as “goleadas” do técnico tricolor ZZ Moreira, como ele escrevia Zezé Moreira.

O GLOBO EDIÇÃO ESPORTIVA – 27/07/59 

O Fluminense acabou como campeão carioca em 59, com a escalação que jamais esqueci: Castilho, Jair Marinho, Pinheiro, Clóvis, Edmilson e Altair. Maurinho, Paulinho, Valdo, Telê Santana e Escurinho.

A carta do menino Nassif ao seu tio representa bem o espírito de gozação do torcedor, manifestada ali na mais tenra idade, e que alimenta a rivalidade entre os clubes, até hoje.

Facsimile da carta de Nassif ao seu tio João, datilografada em papel timbrado da farmácia de seu pai

Redação

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