Luis Felipe Miguel
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
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Bananistão ao norte, por Luis Felipe Miguel

Sistema de garantias institucionais dos Estados Unidos não resiste à devastação promovida por Trump. A resistência internacional é pífia.

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Bananistão ao norte

por Luis Felipe Miguel

O governo Trump está fazendo muitas vítimas: a democracia, as liberdades, os direitos humanos, a diplomacia, a globalização, a ciência, a educação, o bom senso, o planeta. Um lugar de menor destaque, entre estas baixas, deve ser reservado às verdades convencionais da Ciência Política. Em três meses, todo o aparato de “freios e contrapesos”, de controle constitucionais, de engenharia institucional para evitar a tirania – tudo aquilo que os cientistas políticos ensinavam que devia ser feito para garantir a estabilidade de um sistema democrático está simplesmente ruindo.

De sua cadeira na Casa Branca, o magnata alaranjado lança uma medida aparentemente despropositada depois da outra. Está extinguindo o Departamento de Educação, fechou a agência de ajuda externa dos Estados Unidos, promete tomar a Groenlândia à força, lançou uma cruzada contra a diversidade, está determinando mil taxações a produtos estrangeiros sem qualquer cálculo de quais serão as consequências, transformou um notório desequilibrado mental e toxicômano em grã-vizir do seu governo. A lista é quase interminável.

Por trás do aparente caos, há método. Trump voltou à presidência com um programa bem definido de restauração conservadora, produzido principalmente por um think tank ultrarreacionário, a Fundação Heritage. O momento é disso mesmo: de destruição. Não se trata de construir nada, mas de pôr abaixo aquilo que já existe em termos de políticas sociais, de políticas ambientais, de promoção de equidade e de garantias individuais.

Ao mesmo tempo, Trump pavimenta o caminho para a instauração de uma ditadura pessoal. Pode parecer exagerado, mas não é. A rota traçada nos Estados Unidos de hoje é equivalente a que percorreu a Turquia de Recip Erdoğan.

Há ofensivas em pelo menos três frentes, que evocam com clareza o modelo turco de transição para a ditadura.

(1) Trump e Musk estão dizimando o funcionalismo público, fazendo com que a lealdade incondicional ao presidente seja o critério para a permanência nos postos.

(2) Há um ataque contra a autonomia da pesquisa científica e do ensino superior. A exigência de repressão contra os estudantes que se manifestam pelo fim do genocídio do povo palestino é uma espécie de teste, que revela o quanto as universidades estadunidenses estão dispostas a ceder, em troca de verbas federais. A resposta, até agora, pode ser sintetizada em uma palavra: tudo.

A bem da verdade, quem abriu as portas para isso foi o governo Biden, que orquestrou a campanha macarthista para calar os protestos antissionistas. Trump aproveitou e, junto com o apoio à limpeza étnica promovida por Israel, vem a agenda antidiversidade, o negacionismo climático etc.

(3) As condições para a operação do sistema de justiça estão sendo rapidamente erodidas. Por um lado, Trump descumpre ordem judiciais inequívocas, como no caso da deportação dos pretensos integrantes de uma gangue venezuelana, baseada numa interpretação absurda de legislação do século XVIII. Por outro, persegue abertamente escritórios de advocacia que encampam causas contra o governo, chegando ao ponto de emitir decretos proibindo que funcionários de certas bancas entrem em prédios públicos.

O senador Chris Murphy, do Connecticut, uma das vozes mais ativas da oposição, teme que o Partido Democrata seja dizimado nas eleições legislativas do ano que vem. Não porque as políticas de Trump o tornam imensamente popular – na verdade, ainda que o circo esteja agradando à sua base mais fiel, o caos causado pela política econômica e pelo desmonte do Estado já começa a se fazer sentir.

Mas porque o governo central vai fazer minguar as contribuições das grandes empresas aos democratas, ameaçando com retaliações – e, nos Estados Unidos ainda mais do que aqui, dinheiro grosso é o combustível essencial para quem deseja se eleger.

Além disso, as firmas de advocacia evitarão trabalhar para candidatos de oposição – e, lá como aqui, uma boa parte da disputa eleitoral se vence nos tribunais.

Uma vitória grande em 2026 credencia Trump para a reeleição em 2028. A Constituição, com a emenda nº 22, ratificada em 1951, não permite. Mas quem duvida de que esse obstáculo também pode ser superado?

Há pouca oposição nos Estados Unidos. Murphy ou Cory Booker, o senador de Nova Jersey que ontem quebrou o recorde com seu discurso de mais de 25 horas contra Trump, são exceções num Partido Democrata que não apenas não sabe como reagir quanto também parece desanimado para esboçar qualquer reação. Uma parte grande de seus congressistas prefere fingir que está tudo normal e até colabora com Trump, aprovando matérias de seu interesse para não deixar o governo paralisado.

Oi? Se a ação do governo é destruir o Estado, deixá-lo paralisado não seria mais negócio?

A resistência internacional também é pífia. A estratégia trumpista de shock and awe (choque e pavor) tem dado efeitos.

Eu ouço alguns podcasts estadunidenses e é espantoso ver o grau de alienação de muitos jornalistas, políticos e professores progressistas diante do contexto mundial. Logo nos primeiros dias, quando Trump forçava a mão nas ameaças contra o Canadá e o México, ouvi um jornalista importante reclamando que o novo presidente não era capaz de entender como os Estados Unidos tinham sido “abençoados“ com vizinhos tão bons. Nem lhe passava pela cabeça perguntar o que esses países achavam de serem vizinhos dos Estados Unidos…

Mais recentemente, um dirigente da USAID, a agência de cooperação internacional que Trump e Musk estão liquidando, dizia que eles não percebiam como ela era importante para manter a boa imagem dos Estados Unidos no mundo!

ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel

Todo o arranjo institucional que fazia dos Estados Unidos a “democracia mais estável do planeta”, um arranjo exportado como modelo para tantos países, está desabando como um castelo de cartas. A nação líder do “mundo livre”, vejam só, está se tornando uma grande república das bananas.

No Congresso, já surgem propostas de culto a personalidade: colocar o retrato de Trump nas cédulas de dólar, transformar seu aniversário em feriado nacional, esculpir sua cabeça como quinto presidente no Monte Rushmore.

Podem ser tomadas como piadas, claro – mas Trump também era uma piada, até se eleger pela primeira vez, em 2016.

A verdade é que nenhuma engenharia institucional funciona se não há uma correlação de forças que a sustente. A partir do momento em que os muito ricos sentiram que podiam exercer seu domínio sobre a sociedade sem travas, a democracia liberal estava sob ameaça.

Se a gente não derrotar os ricos, não teremos futuro.

Luis Felipe Miguel – Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coodenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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3 Comentários

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  1. “We will not capitulate – no, never! We may be destroyed, but if we are, we shall drag a world with us – a world in flames.” – Adolf Hitler

    Todo o arranjo institucional que fazia dos Estados Unidos a “democracia mais estável do planeta”, um arranjo exportado como modelo para tantos países, está desabando como um castelo de cartas. A nação líder do “mundo livre”, vejam só, está se tornando uma grande república das bananas.

    A democracia mais estável do Planeta invadiu países, dizimou populações e se apropriou indebitamente de suas riquezas. Eles chama isso de meritocracia.

  2. òtima reflexão. Só não concordo com tratar os EUA de Trump como um bananistão. Estamos falando da maior potencia militar-nuclear do mundo.
    Tudo bem que a academia ainda não formulou um conceito científico pra republica bananeira. Mas desde “Repolhos e Reis” que a expressão “república das bananas” é destinada a paises periféricos, de uma elite agro-exportadora e extrativista, com golpes militares e classe política patrimonialista ao extremo. Mesmo com Trump, os EUA estão longe disso.
    Na falta de melhor terminologia, é o neofascismo do século XXI, ainda em formação.

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