CPAC e a integração conservadora Brasil-EUA, por Otávio Dias de Souza Ferreira

Até agora pouco conhecida no Brasil, a CPAC foi criada em 1974, em meio ao escândalo de Watergate envolvendo o então presidente Richard Nixon, e logo se constituiu em um marco importante para o movimento conservador estadunidense

Presidente Reagan discursa na CPAC de 1986, nos EUA (Crédito: Cynthia Johnson, The LIFE Images Collection/Getty)

do OPEU – Observatório Político dos Estados Unidos

CPAC e a integração conservadora Brasil-EUA

por Otávio Dias de Souza Ferreira

Em 14 de agosto de 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, anunciou em rede social que a cidade de São Paulo seria sede, em cerca de dois meses, da Conservative Political Action Conference (CPAC) – o “maior evento conservador do mundo”. Cumprindo a promessa, o evento realizou-se em um hotel da capital paulista em 11 e 12 de outubro de 2019, contando com a presença de público significativo e com a transmissão simultânea pela rede mundial de computadores. Em que pesem tantas referências pejorativas aos inimigos e governos antecessores e a seu terrível legado, o ambiente predominante foi de otimismo e de euforia, com a perspectiva do futuro do Brasil sob as diretrizes conservadoras.

Pelo universo das temáticas tratadas e dos conteúdos dos discursos, de um lado, identificamos um papel propositivo do evento, visando a fomentar o conservadorismo no Brasil com base na experiência e nas contribuições do conservadorismo estadunidense. Do outro, notamos um papel político de busca de fortalecimento de determinados atores em detrimento de outros. De modo mais evidente, a CPAC se coloca contra todo espectro político da esquerda, os progressistas e o “esquerdismo” dos expoentes e órfãos da Maré Rosa. De modo mais sutil, a CPAC se introduz como recurso de um determinado grupo conservador na disputa interna no campo da direita, objetivando o protagonismo político.

Movimento contra a Maré Rosa

Até agora pouco conhecida no Brasil, a CPAC foi criada em 1974, em meio ao escândalo de Watergate envolvendo o então presidente Richard Nixon, e logo se constituiu em um marco importante para o movimento conservador estadunidense, empenhado no ambicioso projeto de chegar ao poder da nação, superando o caráter de movimento intelectual já consolidado desde meados dos anos 1970. Desde a abertura daquele primeiro evento, protagonizada por ninguém menos que Ronald Reagan, justamente aquele que em 1980 concretizaria a missão do Movimento Conservador de alcançar a Presidência, a CPAC foi ganhando mais notoriedade.

Vem sendo organizada todos os anos nos Estados Unidos pela American Conservative Union (União Conservadora Americana) e já rendeu outras edições no exterior além dessa nossa, como na Austrália, no Japão e na Coreia. Em palestra na abertura do evento, o anfitrião Eduardo Bolsonaro assim o definiu:

Esse evento aqui não é o Foro de São Paulo invertido. Esse evento não serve como uma maneira para traçarmos uma estratégia para alcançar o poder. Esse evento aqui é para dizer quem nós somos, o que é ser conservador, como se posicionar como conservador em debates como por exemplo o aborto, a ideologia de gênero. (…) O CPAC não é o Foro de São Paulo porque aqui a nossa sede não é de poder. Nossa sede é de saber quem somos, saber nos organizar. Se porventura a gente vier a eleger alguém, isso daí é consequência. Mas nunca será o nosso objetivo principal. (…) Porque não adianta nada você colocar o primeiro candidato, o número um nas pesquisas eleitorais, se ele não vai ser a favor da família, se ele não vai saber como defender o direito à legítima defesa, né, ao armamento, ou as outras pautas que são tão caras a nós, como a redução do Estado e assim por diante.

Na mesma sessão de abertura do evento, o representante da American Conservative Union, Matt Schlapp, contou que a proposta de Eduardo que o seduziu envolvia a fundação de um movimento conservador no Brasil, tanto no Governo, como na Cultura, na sociedade.

Não foi pouca a propaganda difundida no evento a respeito dos resultados supostamente extraordinários conquistados nas mais diversas áreas de políticas públicas ao longo deste primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro. Financiada pela Fundação Índigo (Instituto de Inovação e Governança), ligada ao PSL, a CPAC Brasil 2019 reuniu influenciadores e lideranças políticas do Brasil e dos Estados Unidos. Não por acaso, exclui-se “políticos de fora do espectro governista”.

Desdobramento do esforço de alinhamento de atores do continente americano com o conservadorismo estadunidense que teve na Cúpula Conservadora das Américas, em dezembro de 2018, o marco inicial, a CPAC incorpora a preocupação com a consolidação de um movimento intelectual e político conservador no Brasil, na pretensão de fomentar o conservadorismo no âmbito da educação da militância, da cultura e da institucionalidade política.

Parcela significativa dos anseios de integração corresponde a uma reação contra a tendência recente no continente da Maré Rosa, especialmente contra a orientação que negava os ditames do Consenso de Washington e que tentava resistir à hegemonia estadunidense no continente.

O amplo espectro de inimigos

Inúmeros foram os inimigos destacados pelos palestrantes e debatedores: “climatismo”, “iluminismo” [em Ernesto Araújo]; “globalismo” [em Flávio Morgensen]; “marxismo”, “socialismo”, “comunismo” e “esquerdismo” [em várias palestras, destacando-se a de Mike Lee, a de Matt Schlapp, e nos vídeos da Brasil Paralelo]; a “Escola de Frankfurt” [em Ana Campagnolo]; os Conselhos de Políticas Públicas e o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos [em Damares Alves e em Taiguara Fernandez]; a Folha de S. Paulo, Rede Globo, The New York Times, El País, The Guardian [na mesa sobre Fake News e na entrevista com Eduardo Bolsonoro]; a Venezuela [em Eduardo Bolsonaro, Abraham Weintraub, etc.] e Cuba [em Matt e Mercedes Schlapp, especialmente]; o “Foro de São Paulo” [em Oxyx Lorenzoni]; a ONU e as ONGs ligadas a George Soros [em Dom Bertrand]; e pessoas como Dom Claúdio Hummes [em Dom Bertrand e Bernardo Kuster], Antonio Gramsci [em Eduardo Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, Ana Campagnolo e na mesa em homenagem a Olavo de Carvalho] e György Lukács [em vídeo do Brasil Paralelo], Karl Marx, Engels e Lenin [em Ana Campagnolo], Jean Willis [em Damares Alves], Voltaire, Slavoj Zizek e Alain Badiou [em Ernesto Araújo] e Marilena Chauí [em Abraham Weintraub].

Entre os políticos inimigos, Lula foi, indubitavelmente, o mais lembrado, junto a seu partido vinculado a uma imagem de “corrupção generalizada” [em Filipe Martins]. Fernando Henrique Cardoso também recebeu algumas menções. Seu nome esteve associado ao início do projeto da esquerda. Onyx Lorenzoni apresentou Lula e Fernando Henrique de mãos dadas, afirmando que essas duas figuras “são a mesma coisa”.

A maioria dos ataques aos opositores foi muito agressiva. O inflamado discurso da ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo, conclamou ao enfrentamento dos “sanguinários e violadores de direitos”, pertencentes à esquerda que governou o país. Acrescentou que “não podemos subestimar o cão, não podemos subestimar o mau”. Destoando da média dos palestrantes, por adotar um tom mais brando e moderado, que reivindicou o diálogo com todos, inclusive com a esquerda, merece lembrança a fala de Ana Paula Henkel sobre o ativismo feminino conservador, especialmente no esporte.

Embora fosse um evento conservador, o pensamento do marxista italiano Antônio Gramsci recebeu uma atenção considerável, especialmente no tocante à apropriação de sua ideia de “hegemonia” a partir do terreno cultural, que chegou ao campo da direita brasileira pelas mãos de Olavo de Carvalho. Sob essa orientação, dois dos vídeos da produtora Brasil Paralelo transmitidos ao vivo no telão situado no palco do evento acusaram a Esquerda de ter orquestrado uma estratégia de hegemonia, partindo da ocupação das instituições educacionais, culturais e da mídia. Um dos vídeos propunha a releitura da história da redemocratização e da Constituinte de 1988, e o outro, a da história dos movimentos políticos de 1968. Nessa linha de raciocínio, Bernardo Kuster assim se posicionou em sua palestra na CPAC Brasil 2019: ”Não é só porque Bolsonaro chegou ao poder que tudo está resolvido. Como foi dito, não temos uma Universidade conservadora, não temos uma alta cultura conservadora, não temos mídia conservadora”.

Olavo, a principal referência intelectual

Acreditaria o leitor se lhe dissesse que o pensador campeão de referências foi Olavo de Carvalho? Pois foi. E isso não é “fake news”. Uma mesa inteira foi formada por quatro de seus ilustres alunos [Filipe Martins, Rafael Nogueira, Flávio Morgensen e Taiguara Fernandez] em sua homenagem. Os dois ministros de Estado de Bolsonaro que abriram e fecharam os trabalhos da CPAC no sábado, Ernesto Araújo (Ministério das Relações Exteriores) e Abraham Weintraub (Educação), respectivamente, juntam-se ao time de ex-alunos e discípulos do filósofo. O próprio organizador do evento, Eduardo Bolsonaro, declarou na abertura da CPAC que “nosso querido Olavo” seria, “para ele, o maior líder dos conservadores do Brasil”.

A lista dos notórios admiradores que foram destaque na CPAC ainda inclui Bernardo Kuster e o jornalista Allan dos Santos. Este último não constava da programação oficial, mas comandou a Sala Interativa do evento, em um auditório onde entrevistou vários palestrantes e participantes da Conferência. Nada mais simbólico para um evento que trata da integração conservadora Brasil-Estados Unidos do que a consagração de um intelectual brasileiro que vive na Virgínia e bebe diretamente da fonte do pensamento conservador americano.

Para além da identificação dos inimigos, do tratamento despendido para eles e da centralidade da guerra no terreno da cultura, há que se destacar os conteúdos mais propositivos. A defesa da livre-iniciativa, do livre-mercado e de valores do libertarianismo apareceu em vários momentos, sempre em oposição às mazelas da burocracia estatal e do Estado ineficiente e intrinsecamente inimigo das liberdades. Referências à orientação econômica compartilhada por Milton Friedman e Paulo Guedes foram recorrentes. Neste ponto, ressaltam as falas de Christine Wilson, de James Roberts e de Weintraub.

Outra questão recorrente foi a defesa do patriotismo e da soberania do território, especialmente da Amazônia, na resistência contra o comunismo [em Mike Lee] contra o “climatismo” e o “globalismo” do “esquerdismo” contemporâneo [em Ernesto Araújo e em Dom Bertrand].

A defesa da família e dos valores cristãos conservadores [em Damares Alves, Dom Bertrand e Bernardo Kuster] foi sustentada em oposição às orientações da Teologia da Libertação, a qual, segundo Dom Bertrand, “que também de libertação não tem nada, por que essa libertação leva à tirania da esquerda, a esquerda vermelha, comunista”.

O direito de autodefesa por meio da liberdade do uso de armamentos foi tematizado em uma sessão específica [de Benê Barbosa], mas também foi elogiado por outros palestrantes [como por Eduardo Bolsonaro].

Outra questão recorrente foi o negacionismo em relação a vários aspectos da nossa história: desde a negação do genocídio dos índios e da história de racismo em nossa sociedade [em Dom Bertrand], até a negação do golpe militar de 1964 e da própria existência da ditadura militar [em Eduardo Bolsonaro e em vídeo do Brasil Paralelo]. Fez-se a defesa da democracia, a partir, sobretudo, da ênfase contemporânea na representação eleitoral e da “maioria silenciosa” conservadora que esteve alheia ao poder durante a Maré Rosa.

A visão de direitos humanos centrada na defesa da vida foi preconizada pela ministra Damares Alves, segundo o direito natural e o credo cristão, em detrimento da visão liberal do controle das arbitrariedades das autoridades do Estado.

Tradição brasileira

Diversamente dos esforços mais antigos dos think tanks neoliberais e libertários de construção de uma rede integrada no Brasil e na América Latina no âmbito da Atlas Network e de outras iniciativas de aliança, o movimento conservador brasileiro é mais fragmentado e padece historicamente de institucionalidade e de organização em rede.

O Brasil dispõe, sim, de tradição conservadora na sociedade civil e na política, contando com referências intelectuais no pensamento político desde pelo menos Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Alberto Torres, José de Alencar e Visconde de Uruguai, com organizações na sociedade civil e com influenciadores e lideranças de orientação conservadora. Em sua forma de ação como um movimento intelectual e político, tem-se desenvolvido de modo fragmentado e com pouca capilaridade na sociedade.

Depois da ampla aliança de vários setores sociais e de todo bloco da direita na sociedade contra a Maré Rosa e os governos petistas, tivemos, após a derrubada de Dilma Rousseff em 2016, uma crescente cisão e diferenciação no espectro político da direita em busca da ocupação dos espaços de poder. A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 conduziu um grupo determinado da direita à Presidência da República, mas não encerrou essas disputas.

Ao fim de todo um discurso preconizando um vínculo natural entre liberalismo econômico e o que entende por “atitude conservadora”, em oposição ao “Totalitarismo” próprio do “Esquerdismo” e ao “Globalismo”, quando o ministro Ernesto Araújo reivindicou a consolidação da “Aliança Liberal-Conservadora”, ele explicitou a tentativa de retomar aquela aliança, porém sob a liderança dos conservadores. Embora negasse que o conservadorismo se constituísse propriamente em ideologia, a parte inicial do discurso se aproximou da leitura do conservadorismo feita por Karl Mannheim, quando ataca frontalmente o culto à razão do Iluminismo, o qual incorporaria “o máximo da arrogância do ser humano” e teria afastado gerações e gerações do caminho da “verdade”.

Perto do final dessa primeira Conferência no Brasil, Eduardo Bolsonaro e Matt Schlapp subiram ao palco, sob efusivos aplausos da plateia, para assinarem publicamente um termo de compromisso para garantir a realização de futuras edições da Conferência no Brasil. Enquanto a Cúpula Conservadora das Américas, que tem a edição prevista para o final do ano no nordeste do Brasil, volta-se para a integração conservadora no continente, a CPAC Brasil seguirá como um esforço bilateral, mais voltada para afetar a realidade brasileira sob a inspiração da construção institucional estadunidense. Combinando as posturas reativa e propositiva, ambas as iniciativas visam essencialmente “afinar os discursos” [conforme as palavras de Eduardo Bolsonaro em entrevista para Allan dos Santos] dos conservadores no Brasil e no continente americano.

 

* Sugestões de leitura *

Burgos, R. Contra o ‘socialismo’, Direita se reúne em busca de uma identidade. Entendendo Bolsonaro. 13 de out. 2019.

Ferreira, G. N.; Botelho, A. Revisão do pensamento conservador. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2010.

Lievesley, G., & Ludlam, S. Introduction: reaction and revolt. In: F. Dominguez, G. Lievesley, & S. Ludlam. Right-Wing Politics in the New Latin America: reaction and revolt. London, New York: Zed Books, 2011.

Mannheim, K. Sociologia. São Paulo: Ática, 1982.

Poggio, C. G. Análise: ‘Conferência da Direita não tem raizes robustas’. O Estado de São Paulo. 11 out. 2019.

Ramírez, H. Neoliberais do Cone Sul e suas alianças. In: E. Bohoslavsky, R. P. Motta, & S. Boisard. Pensar as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2019.

Rocha, C. Direitas em rede: think tanks da direita na América Latina. In: S. V. Cruz; A. Kaysel; G. Codas (orgs). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.

 

Nota: Todas as palestras e inclusive as entrevistas na Sala Interativa do CPAC Brasil 2019 estão disponíveis para acesso livre no YouTube.

 

Otávio Dias de Souza Ferreira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, membro do corpo docente da Maestria Estado, Gobierno y Politicas Públicas da FLACSO Brasil e do Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

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