Disputa imobiliária despeja denúncias sobre a prefeitura de Salvador

O crescimento desordenado de Salvador ao longo dos últimos 50 anos – quando a cidade saiu de pouco mais de 300 mil para cerca de 3 milhões de habitantes – foi patrocinado em larga medida pelos negócios do capital imobiliário. Grandes fortunas e carreiras foram construídas nas últimas décadas em torno deste mercado.

Curiosamente neste momento estamos assistindo à crise da demolição das barracas de praia que ocorre sem que tenham sido tomadas medidas prévias para a manutenção das atividades de subsistência de algumas milhares de pessoas. Enquanto nos surpreendemos com a violência contra os barraqueiros assistimos uma violência muitas vezes maior, envolvendo construtores não de barracas mas de casas e apartamentos.

Há dez dias a política de Salvador está sendo pautada pelo chamado escândalo das Transcons, que se tornou público através de denúncias veiculadas no jornal A Tarde a partir do último dia 14 de agosto, quando a ex-secretária de Planejamento da prefeitura de Salvador, Kátia Carmelo, denuncia uma negociata, apresenta nomes de um grupo, que está sendo chamado de “máfia das Transcons”. A denúncia joga luz sobre as atividades de empresários do ramo imobiliário que realizam há anos a operação financeira, apoiada e orientada por assessores diretos do prefeito João Henrique, que ocupavam e ocupam cargos de primeiro escalão para beneficiar tais empresas e empresários que disputam palmo a palmo o poder e o território de Salvador.

Há dez dias sustentando as denúncias, o jornal publica na edição desta terça-feira, dia 24 de agosto, dia de São Bartolomeu a manchete “Utilização de Transcon na orla é ilegal, afirma jurista”, e quem afirma é nada mais do que o diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Celso Castro, doutor em direito público. Novos prédios que estão sendo construídos na orla de Salvador e cuja altura foi negociada por meio das Transcons correm risco de demolição caso a lei do PDDU seja cumprida, é o que diz o professor doutor.

O pequeno texto abaixo da manchete noticia também que o empresário do ramo imobiliário Alcebíades Barata, um dos beneficiários do esquema denunciado pela ex-secretária afirma que entrará na justiça para fazer valer o direito de usar as Transcons para a orla, apesar da lei.

Os sentimentos e movimentos daqueles que lutam pela dignidade da vida humana requerem ação política, ação política cidadã. E o texto da manchete informa ainda que amanhã, quarta-feira, associação de bairros – mas não só faltou dizer – realizarão um protesto “por conta da máfia das transcons”.

A Transcon é a “transferência do direito de construir”, um crédito concedido a donos de terrenos desapropriados. Os proprietários desses terrenos são procurados por agentes do mercado imobiliário que negociam os créditos das Transcons com as empresas que pretendem aumentar a área de seus projetos, a altura dos seus prédios  em qualquer lugar da cidade, inclusive na orla marítima. A aplicação da Transcon dar-se-á, segundo a lei, “mediante autorização da prefeitura”.

Ocorre que o uso das Transcons na orla marítima é proibida pela lei municipal., o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Ali deveria ser usado um outro recurso, o da outorga onerosa, pelo qual a empresa deveria obter direito de aumentar área de construção pagando uma taxa para o município.

Curiosamente o atual PDDU considera a operação é ilegal – ocorre que, apesar de ter havido muita coisa obscura na aprovação do PDDU na Câmara, há uma parte boa do projeto original do PDDU aprovada na Câmara rque ecebeu a contribuição de especialistas de alto gabarito, pois a princípio todos aqueles envolvidos na questão do urbanismo e no desenvolvimento da cidade tinham interesse no debate, que acabou sendo minimizado.

 O esquema, segundo a ex-secretária, seria operado pelo atual superintendente da Sucom, Cláudio Silva, pelo empresário Alcebíades Barata e pelo secretário do prefeito, Ricardo Araújo, que seria pessoa próxima do empresário da construção civil Carlos Suarez, o famoso “S” da empresa OAS.

O Superintendente Cláudio Silva, por sua vez, explica que o uso das Transcons na orla teria amparo num parecer de uma procuradora do município. A procuradora nega que o seu parecer, que foi sobre uma questão particular, legitime as operações que estavam em curso.

A secretária diz mais: além de uma operação ilegal, por envolver a orla marítima, saldos das Transcons negociadas deveriam ser publicados regularmente no Diário Oficial – o que não vem ocorrendo há meses, configurando-se “um saldo que nunca diminui”, para usar subtítulo do próprio jornal.

Segundo a ex-secretária esta “orientação” para o uso das Transcons que os gestores públicos oferecem aos empresários do ramo imobiliário teriam gerado um prejuízo em torno de R$ 750 milhões, uma bagatela para a prefeitura que vive de pires na mão, sempre sustentada pelo Estado.

Diante da intensidade da repercussão das denúncias, o escândalo chega até a Câmara Municipal onde o superintende da Sucom afirma que o mesmo esquema teria sido praticado durante a gestão da ex-secretária, que teria beneficiado outros empresários do ramo imobiliário e que tal prática teria gerado outros prejuízos aos cofres públicos da ordem de R$ 500 milhões, outra bagatela dispensada pelos nossos gestores para os combalidos cofres da prefeitura de Salvador.

A crise instalada na prefeitura se rebate por todos os órgãos. Coma história é antiga, o Ministério Público estava há quase um ano pedindo informações ao superintendente da Sucom, Cláudio Silva, que só mandou para os procuradores uma parte da papelada nos últimos dias, depois das denúncias publicadas. O Tribunal de Contas dos Municípios está apurando as denúncias.

Ontem o prefeito fez publicar no Diário Oficial um decreto para validar a lei e determina que a Secretaria de Desenvolvimento, Habitação e Meio Ambiente (Sedham), que autoriza o uso das Trancons, repasse para a Procuradoria Geral do Município todos os processos que autoriza uso de Transcons na orla, afinal sobre a PGM pesa a responsabilidade de avaliar a legalidade dos atos do poder executivo municipal.

Correm nos bastidores notícias que não podem ser checadas de que estaria ocorrendo queima de arquivos. No decreto o prefeito requer que toda a papelada sobre o caso seja  fornecida para o MPE e o TCM, que está investigando o escândalo. O prefeito havia até ontem classificado o escândalo de “denuncismo”. O decreto ordena a instalação de uma comissão de sindicância interna na Sedham e a suspensão do uso de Transcons na orla, o que já é vetado pela lei municipal.

Ao mesmo tempo em que anuncia a criação da comissão de sindicância interna, a ser feita pela própria secretaria onde ocorreram os problemas denunciados, o prefeito que tem maioria folgada na Câmara Municipal está sufocando o papel constitucional do legislativo, que é de fiscalizar os atos do poder executivo municipal. A maioria do prefeito na Câmara está impedindo a convocação da CEI. Resta saber se a pressão da opinião pública conseguirá fazer os vereadores governistas mudarem de opinião neste período eleitoral (!!).

A postura do jornal A Tarde que deu mais três páginas hoje ao caso está empurrando os fatos para a perspectiva de investigação, esclarecimento e, se assim a justiça entender, de punição. Hoje ouvi numa rádio, pela manhã, um ouvinte propondo o impeachment do prefeito João Henrique. Acho que este seria um movimento saudável para Salvador. A prefeitura está um marasmo para a cidadania, os negócios imobiliários e correlatos dominam todas as jogadas, uma mediocridade dilacerante em meio a tantas energias da Cidade prontas para detonar novos processos humanos. Neste momento a gestão do atual prefeito representa um entrave para o desenvolvimento humano da cidade.

Um diagnóstico da qualidade da gestão atual na prefeitura certamente mostraria um quadro desolador. A imprensa tem feito isso diariamente. A população sofre com a péssima qualidade dos serviços públicos, sobretudos os serviços sociais e de saúde, que deveriam ser prestados com qualidade pela prefeitura. Rios de dinheiro dos programas sociais federais são usados de modo precário, amador através da contratação de mão-de-obra terceirizada, em muitos casos despreparada para as funções de chefia de órgãos públicos. Enquanto o correto seria fazer os devidos concursos públicos para a contratação de pessoal que é de alta importância para o papel público e social da prefeitura. Só para citar um dos inúmeros problemas.

Mas há uma barreira enorme neste caminho de uma mudança mais profunda. Na Câmara Municipal o prefeito tem ampla maioria parlamentar. São 33 vereadores contra oito da oposição e mais cinco que se desgarraram dos 33 e votaram a favor de uma comissão parlamentar de inquérito, que se chama CEI (Comissão Especial de Investigação). Ao invés do Poder Legislativo cumprir com o seu dever, a maioria governista tem se submetido ao arbítrio do prefeito e pretende indicar três vereadores para compor a comissão de sindicância interna da prefeitura. Ao recusar-se a cumprir o seu dever de fiscal público, fiscal do povo, a Câmara deverá perder ainda mais a estima e a consideração da população.

Redação

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